sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Engenho, Sim - Vila da Rainha, Não.

Os pesquisadores do Museu Nacional, ao que parece, continuam insistindo em intitular as ruínas do antigo Povoado de Limeira do Itabapoana como sendo os restos da quinhentista Vila da Rainha, fundada por Pero Góis da Silveira nas proximidades da foz do rio Itabapoana.

Já tecemos várias considerações a respeito em posts anteriores do Blog. Todos os documentos e indícios levam a crer que, não, as ruínas "inéditas" (sic) "descobertas" (sic sic!) não são os restos da Vila da Rainha.

Infelizmente, para fundamentar, impossível ser sucinto, por se tratar de matéria relativamente complexa.


Há ainda pequena controvérsia sobre o ano que Pero de Góis chegou nas terras que lhe foram cedidas pela Coroa. Pero de Góis da Silveira recebeu em doação a Capitania, que seria cognominada de São Tomé, em Alvará datado de 1534, com Carta de Doação passada em 1536. É já pacificado pelos historiadores o fato de que, na data que foi lavrado o Alvará, Pero de Góis não estava em Portugal, mas sim em São Vicente, aonde chegou em 1531 na Armada de Martim Afonso de Sousa. Nas terras que posteriormente seriam a atual Santos, inclusive, Pero de Góis fundou o Engenho chamado de "Madre de Deus", levantado em 1532. Em abril de 1537 estava em São Vicente, segundo os Apontamentos de Azevedo Marques. Em agosto de 1539, comprovadamente, já estava na Vila da Rainha.

Alguns autores antigos acreditam que Pero de Góis chegou ao Itabapoana, então chamado de Managé pelos silvícolas locais, ainda no ano de 1536. Atestam eles que Góis, recebendo a notificação do Alvará, viajou à Portugal, ocasião que lhe foi passada a Carta de Doação. Segundo eles, tão logo recebeu a Carta de Doação, retornou ao Brasil para tomar posse de sua Capitania. Como tinha interesses em São Vicente, aonde possuía um Engenho, esteve lá em 1537 por breve período, onde angariou mais alguns colonos e de onde levou as primeiras mudas de cana para a sua Capitania.

Autores modernos, como o famoso Alberto Lamego, são da opinião que Pero de Góis chegou ao Managé e fundou a Vila da Rainha somente em 1539. Atestam esses autores que Pero de Góis permaneceu em São Vicente, organizando sua expedição e tratando de seus negócios. Toda a historiografia moderna adotou a data de 1539 como a da fundação da Vila da Rainha. Fato aceito por toda a historiografia, também, é que as mudas de cana levadas por Góis à São Tomé eram provenientes de São Vicente.

Fundada em 1536, como atestam alguns, ou em 1539, como afirmam outros, fato é que com as mudas que trouxe consigo de São Vicente iniciou as plantações de cana e, possivelmente, a construção de Engenhos. Ato contínuo, fundou, nas proximidades da foz do Itabapoana, a Vila da Rainha. Era prerrogativa dos Donatários a fundação de Vilas em suas Capitanias; quando um Povoado ou Arraial era erigido em Vila, transformava-se ele em "Município", com a designação dos ouvidores, meirinhos e mais oficiais da justiça, e eleições dos juízes e mais oficiais do Conselho (Câmara), após a apuração da lista dos "homens bons", que os devia eleger.

Em abril de 1542 estava Pero de Góis em Pernambuco, em viagem para o Reino, segundo atesta Carta de Duarte Coelho, Donatário daquela Capitania. Seguia para Portugal objetivando angariar fundos e mais alguns colonos.

Abaixo transcrevemos trecho do livro do consagrado historiador antigo Frei Vicente de Salvador, que serviu de base para a também consagrada obra de Francisco Adolfo de Varnhagem:

"Depois de attrahir a si seu irmão, Luiz de Goes, com alguns outros parentes e mais colonos, foi tomar posse das suas 30 leguas de costa brazilica, onde assentou alguns ranchos e tapujares, a que deu o nome de Villa da Rainha. Com o seu limitrophe Vasco Fernandes fixou a demarcação, que não estava bem designada nos respectivos títulos, ficando por commum accordo o rio Itapemerim servindo de barreira ás pretensões futuras dos seus descendentes."

[Nota nossa: os limites das Capitanias do Espírito Santo e de São Tomé foram assinados pelos respectivos Donatários em 14 de agosto de 1539, com confirmação régia datada de 12 de março de 1543, quando Vasco Fernandes e Pero de Góis estavam em Portugal.]

"Suppõe-se que em 1536 estaria já estabelecido na sua respectiva capitania, ou que para ella partiria, por ser n'aquelle anno que se effeituou a nomeação de Antonio Teixeira para seu feitor e almoxarife regio. Senhor das fecundíssimas lezírias do Parahiba, Pero de Goes cuidou desde logo de introduzir de S.Vicente alguma Planta de canna, que começou a cultivar ainda antes de pensar no modo de conseguir os meios de estabelecer um engenho. Para conseguir esses meios veiu a Portugal, onde alcançou entender-se com um mercador de ferragens, que lhe devia fornecer os artigos de resgate para pagar as roças que fizesse o gentio, e mandar-lhe novos operarios e colonos. Com esta importante acquisição voltou ao Parahiba do sul para ir testemunhar o desastre que na sua nascente colonia fizera a Sua curta ausencia, tendo-se desbaratado toda ella pela deserdo dos colonos, á frente dos quaes figurou o seu proprio administrador, um tal Jorge Martins."


O RETORNO DE PERO DE GÓIS

Em 1545 Pero de Góis retornou à Vila da Rainha, após sua viagem à Portugal, segundo todos os historiadores e pesquisadores. E é das duas cartas existentes que ele escreveu ao seu sócio português (em agosto de 1545) e ao Rei (em abril de 1546) que, provavelmente, origina-se a "confusão" dos pesquisadores do Museu Nacional.

Ao chegar, Góis encontrou a Capitania desbaratada pelos ataques dos silvícolas e pelos desentendimentos entre os colonos. A despeito do quadro desolador, o Donatário novamente se pôs à trabalhar pelo levantamento de sua donataria. Fez paz com os silvícolas, reuniu os colonos remanescentes, e juntamente com os portugueses que com ele vieram reiniciou a reconstrução de plantações, engenhos, arraiais e povoados.

A carta remetida por Pero de Góis ao seu sócio Martim Ferreira, datada de 18 de agosto de 1545, relata os trabalhos feitos após seu regresso à Capitania. A carta remetida ao Rei Dom João, datada de 29 de abril de 1546, relata o estado que encontrou a Capitania quando regressou de Portugal, os trabalhos de reconstrução, e também a nova destruição que acometeu a Capitania. Pouco depois de escrever essa última carta, cercado pelo gentio e sem meios de continuar a luta, Pero de Góis retirou-se de São Tomé com o que restava dos colonos, resgatados por Vasco Fernandes Coutinho. Importante salientar que ambas as cartas foram escritas da Vila da Rainha, aonde se encontrava Pero de Góis.

Das cartas extraímos claramente a informação de que Pero de Góis, logo após regressar do Reino e dar início a reorganização da Capitania de São Tomé, começou a construção de um Engenho movido à água no curso médio do rio Managé, no ponto até onde ele era navegável, pouco antes das primeiras cachoeiras. Trata-se, com toda certeza, do sítio aonde séculos depois se formaria o Povoado de Limeira do Itabapoana, onde hoje se encontram as ruínas "descobertas" pelos pesquisadores do Museu Nacional. Abaixo, podemos ler trechos das cartas aonde inferimos o fato de que, sim, Pero de Góis iniciou construção de um Engenho na região onde hoje está sendo escavado o sítio arqueológico.

Trechos da carta remetida à Martim Ferreira:
"Ora por este rio a riba, onde começa de cahir de quedas, e a se onde boamente podem as barcas ir, fui a vêr e achei poderem-se fazer todos quantos engenhos quizermos, por ser um rio onde entram e podem entrar navios, como esse que veio, vindo em tempo de agoas."
"Em baixo, na borda do rio, que está tao perto como esse mar, de casa, fica o engenho tao perto do rio, como essas casas d'onde V. Mce. está, e podem chegar as barcas, assim como ahi chegam; ficando os mestres, muito satisfeitos da terra ; e, de feito, e muito extremada terra, de massapezes grudentos Ihe chamam elles, e da maneira que elles desejavam."
"Ora nao tem mais esta terra sendo ser dez legoas por agoa, pelo rio, que nao Ihe faz nada nojo, e obra de sete legoas por terra, onde Ihe mandei abrir um caminho, que pode um carro sem molhar pe chegar ao engenho, e cavallos e tudo o que homem quizer."
"Anda-se em um dia por terra, quem quer ; e quem não quer ir pelo rio, vae por terra : assim que, pelo rio, se pode acarretar o assucar, sem trabalho ; e por terra servirem-se por mais presteza. Isto se passa da propria maneira que Ihe escrevo."

Trecho da carta remetida a El Rei Dom João III:
"Senhor — Por hora que, logo que a esta sua terra cheguei, Ihe escrevi, Ihe dei conta de quão desbaratada achei a minha capitania, ou antes alevantada, pois toda a gente que n'ella tinha deixado havia fugido com o Capitão ; assim que, mais por servir a Vossa Alteza, do que pelo gosto que então d'ella tive, a não larguei e deixei, mas antes assentei e do novo comecei a povoar por um rio acima, obra de dez leguas do mar, por nao haver aguas mais perto, onde fiz uma mui boa povoação, com muitos moradores, muita fazenda, a qual, a elles'e a mim, custou muito trabalho, por ser pela terra dentro."


Talvez com base nesses trechos supra aludidos, feito de próprio punho pelo Donatário Pero de Góis, os pesquisadores do Museu Nacional tenham "chegado à conclusão" de que o Donatário fundou nova Vila, rio acima, e que essa Vila seria a quinhentista Vila da Rainha. Mas ler apenas alguns trechos das cartas pode induzir o pesquisador a erro grosseiro.


Mas, vamos a outros trechos; primeiro, mais pedaços da carta remetida à Martim Ferreira:


"Escrevo-lhe isto para que o saiba : n'este rio, como digo, determino fazer nossos engenhos d'agoa ; e n'este primeiro dia de Agosto, que em boa hora vira, deve ter partido um mancebo — Tigoa, comum homem, que vinha por feitor pera Luiz de Goes, ao qual promettemos dar dez mil
reis por este primeiro anno e a Tigoa quatorze."
"Estes dois homens com outros dois, que para isso assoldadei, vao a roçar e a fazer com os indios muita fazenda, a saber : plantar uma ilha que ja tenho pelos indios roçada de canas, e assim fazer toda quanta fazenda pudermos fazer, para que, quando vier gente, ache ja quo comer, e canas e o mais necessario para os engenhos."
"Entretanto que estes homens roçam, faço eu cá no mar dois engenhos de cavallos, que moia um delles para os moradores, e outro para nós somente ; e isto, presentemente, para os entreter, porque, para estes dois engenhos, Bemdicto seja Deus, tenho gente ; e o mais que Ihes pertence, que sao canas, planto agora, e, querendo Nosso Senhor, da feitura d'este a anno e meio, poderei, Deus querido, mandar um par de mil arrobas de assucar nosso, d'estes engenhos, e d'ahi para diante mais. N'isto eu porei toda a diligencia que puder, e Deus pora a virtude. Isto determine ao presente."

Nota-se que Pero de Góis estava esperançoso com os trabalhos que estavam sendo executados. Em outro trecho desta carta, Góis chega à pedir que se remetam, ainda para o ano, 60 negros da Guiné, pois era grande a expectativa de produção. O Donatário estimava a produção em 2 mil arrobas de açúcar, à ser produzida nesse ano e meio.

O grifo em negrito acima é de nossa autoria. Lê-se muito bem que, enquanto alguns colonos, junto com índios, roçavam na região das atuais ruínas "descobertas" no interior, Pero de Góis fazia CÁ NO MAR dois engenhos movidos por tração animal. E a carta foi escrita a partir da Vila da Rainha.

Continuando, agora com a carta remetida ao Rei:

"Estando assim muito contentes, com ter a terra muito pacifica, e um engenho d'agoa, quasi de todo feito, com muitos canaviaes, sahio da terra de Vasco Fernandes Coutinho um homem por nome Henrique Luiz com outros, e em um caravelao, sem eu ser sabedor, se foi a um porto
d'esta rainha capitania, e, contra o Foral de V. Alteza, resgatou que quiz ; e, nao contente com isso, tomou por engano um indio, o maior principal que n'esta terra havia, mais amigo dos christãos, e o prendeu no navio, pedindo por elle muito resgate."
"Depois de por elle Ihe darem o que pediu, por se congragar com outros indios, contrarios d'este que prendera e o levou e entregou preso, e Ih'o deu a comer, contra toda a verdade e razão, por d'onde os indios se alevantaram todos, dizendo de nós muitos males, que se não assem em nós, que não mantinhamos verdade, e se vieram logo a uma povoação minha pequena, que eu tinha mais feita, e estando a gente segura, fazendo suas fazendas, deram n'elles e mataram tres homens, e, fugindo os outros, queimaram os canaviaes todos, com a mais fazenda que havia, e tomaram toda quanta artilharia havia, e deixaram tudo extruido."
"Indo as novas a mim, acudi com toda a gente que pude, e quaudo ja fui, era tudo extruido... assim no mar, como onde eu estava, se via tudo alevantado para me matarem e a toda a gente, pelo que me foi forgado, n'este aperto em que me poz, por de mim nao dar conta, acudir ao mar e recolher toda a gente a mim, e fazer-me n'elle forte, com perder vinte e cinco homens, que mo mataram, dos melhores que tinha, e toda a fazenda, que feita tinha, como la pode, querendo, ver, por uns instrumentos, que para mais mandei tirar."

Os grifos em negrito são nossos. Inferimos dessa importante carta o que ocorreu para que os silvícolas de levantassem contra os colonos, e toda a destruição que fizeram aos canaviais a aos engenhos e fazendas. Esses fatos ocorreram entre os intervalos das duas cartas remetidas, isto é, entre 18 de agosto de 1545 e 29 de abril de 1546.

Dela nós concluímos, novamente, que Pero de Góis estava na beira do mar; e a carta também foi escrita da Vila da Rainha, quando esta estava sitiada pelos silvícolas e transformada em praça forte, com a fuga e concentração de todos os colonos que estavam em outros sítios, no interior ou não. Inferimos também a informação que os engenhos não chegaram a moer as canas que haviam sido plantadas e, mais, que o Engenho movido à água estava "quase todo feito", não chegando a moer também.


Assim, resta bem clarividente que a Vila da Rainha, como atestam todos os autores que de debruçaram por escrever a história da malograda Capitania de São Tomé, estava defronte ao mar, e não no interior. No sítio onde foram "descobertas" as ruínas, Pero de Góis iniciou, sim, a construção de um Engenho movido à água, que não chegou à ser de todo concluído, e lá ergueu também uma "boa povoação" de colonos.

Importante também aqui discorrer sobre a legislação portuguesa que tratava da fundação de Vilas por parte dos Donatários. Como dissemos, os Capitães tinham a prerrogativa de erigirem Vilas em suas donatarias, levantando Pelourinho e Casa de Câmara. Ora, Pero de Góis fundou a Vila da Rainha em 1536 ou 1539, conforme os entendimentos dos historiadores. Nessa "primeira fase" da Capitania de São Tomé, os colonos não se aventuraram por penetrar no interior, e as plantações das roças e de cana ficaram circunscritas ao entorno da Vila recém fundada. Somente quando regressou de Portugal, em 1545, foi que Pero de Góis subiu o Rio Managé e constatou que a região das "ruínas recém descobertas" era muito boa para se formar Engenho e canaviais.

A primitiva Vila da Rainha, fundada, segundo todos os historiadores, próximo ao mar, perto da embocadura do Itabapoana, "na enseada do retiro, poucas braças ao sul do Managé" (Augusto de Carvalho, Apontamentos para a História da Capitania de São Tomé, Campos, 1888), teria sido "transferida" para o médio curso do rio, bem no interior, numa época aonde todas as Vilas e Povoados eram formados em portos e enseadas no litoral? Não parece ser isso crível.

Pero de Góis também é enfático ao afirmar que o núcleo formado no médio curso do Managé era um "Povoado", e não uma "Vila". Para quem estuda o Brasil quinhentista, esses termos fazem toda a diferença; Vila era um status administrativo, que conferia o privilégio de ter Concelho, Câmara, Pelourinho, e os oficiais que a governavam - era um Município. Povoados e Arraiais eram núcleos que não tinham essa prerrogativa. Ser erigida em Vila era encarado como um privilégio para uma povoação.

As ruínas de Limeira podem, quem sabe, até terem os restos desse Povoado e Engenho fundados por Pero de Góis na região até onde o Managé era navegável, pouco antes das primeiras cachoeiras. Definitivamente, não são os restos da quinhentista e extinta Vila da Rainha. E, dificilmente, são os restos daquele Engenho e povoação. A extensão das ruínas, com grandes áreas de calçamento, várias fundações de pedra, e até a Capela que ainda insiste em ficar de pé, demonstram o contrário. Vila Velha e Vitória, por exemplo, ficaram anos e anos com suas casas feitas de taipa, e numa ocasião que Vitória foi ameaçada por corsários temeu-se que a Vila fosse totalmente incendiada, pelo fato de quase todas as habitações serem de taipa e forradas com palha em seus "tetos". Quando o primeiro jesuíta aportou na Vila do Espírito Santo (atual Vila Velha), em 1549, havia apenas umas vinte edificações, e nenhuma delas possuía fundações de pedra; muito menos havia ruas calçadas.

É crível aceitar que, no espaço de cerca de apenas um ano (1545/1546), os poucos colonos que habitaram o Povoado na região de Limeira construíram todas aquelas edificações? Pouquíssimo provável; quase impossível.

Gerson Moraes França


Fontes Bibliográficas:

Apontamentos para a historia da Capitania de S. Thomé
Por Augusto de Carvalho - 1888

A terra Goytacá á luz de documentos inéditos
Por Alberto Lamego - 1925

História Geral do Brasil
Por Francisco Adolfo Varnhagen
Com revisão e notas de José Capistrano de Abreu

História do Brasil
Por Robert Southey
Edição brasileira

Historia do Brazil
Por Frei Vicente de Salvador

Um comentário:

  1. Muito interessante - também estudo a época quinhentista do Brasil com minha página do facebook:
    https://www.facebook.com/Hans-Staden-Sua-Alma-Minha-Alma-132550057611597/
    Gostaría de convidá-lo como amigo para uma visita!
    Abraços
    Gunter

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