sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Ocaso das Minas do Castello

Recorte de mapa de 1846, com a localização das antigas minas do Castelo.

No dia 25 de maio de 1786, na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim, foram crismadas nove ou dez crianças pelo reverendo visitador Vicente José da Gama Leal, comissionado pelo Bispo do Rio de Janeiro e que ali estava em viagem pelas paróquias do norte do Bispado. Nessa época, as freguesias da Capitania do Espírito Santo integravam aquela circunscrição eclesiástica. Uma dessas crianças crismadas se chamava [Seba]stiana (assim presumiu quem registrou), de cinco anos de idade, filha de Sebastião e de Maria, escravos de um certo Domingos Ra[mos](sobrenome presumido pelo autor dessas linhas). Sebastiana era natural e batizada na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Castelo.

Sempre me fascinou a história dessas célebres minas de ouro situadas nos contrafortes a oeste da serra que corre, mais ou menos, de sul a norte entre o rio Castelo (afluente do rio Itapemirim) e a costa do Espírito Santo. Apesar de não muito conhecidas, muito já se escreveu, e ainda se escreve, sobre as Minas do Castelo. É surpreendente conhecer seus primeiros tempos e notável estudar seu desenvolvimento; e é intrigante saber como foi o seu ocaso. Imaginar que essas minas foram povoadas e formaram (segundo a tradição) quatro arraiais e uma povoação que foi sede de uma Freguesia, e que depois tudo isso foi abandonado para ser enterrado pela vegetação e esboroado em ruínas.

Essas fascinantes minas nunca foram, porém, muito povoadas se comparadas com outras tantas minas de ouro que existiram na história do nosso Brasil. Segundo o grande pesquisador Alberto Lamego, que estudou esse assunto e teve acesso a então inéditas fontes primárias e documentos, no seu período de maior prospecção as Minas do Castelo chegaram a abrigar cerca de 400 mineradores; não é um número elevado de pessoas, mesmo para a época que a população do Espírito Santo e do Brasil era uma ínfima fração do que é nos dias de hoje. Sua existência, do início ao ocaso, se remete ao século XVIII; descobertas e inicialmente povoadas por paulistas e seus bandos que percorriam o interior do continente, incrementadas depois por povoadores campistas após estabelecidas as minas, e depois e abandonadas pelo esgotamento das jazidas e pela pressão dos indígenas. Tudo isso ocorreu no recorte temporal de menos de um século.

Apesar das teorias de que as Minas do Castelo já eram exploradas muito tempo antes da chegada dos paulistas  (as datas variam conforme as construções teóricas e os agentes envolvidos), qualquer historiador e pesquisador mais criterioso e fiel à metodologia da ciência histórica desconsidera essa remotíssima possibilidade. O próprio Lamego, sempre fiel à pesquisa histórica em fontes primárias e à análise crítica das fontes, considera que foram os paulistas seus incontestes descobridores. Outros estudiosos da história das Minas do Castelo endossam essa assertiva, como Tristão Araripe; e alguns poucos, como o memorialista Gomes Netto, entendem que as minas já eram exploradas por indígenas e jesuítas no século (ou séculos, dependendo do memorialista) anterior; meras teorias sem embasamento documental e simples conclusões eivadas de vício. De todo modo, esse imbróglio não é o foco do presente artigo e não interfere em nossas conclusões.

O ocaso das Minas do Castelo é assunto bastante tratado pela historiografia espírito-santense. Mas não há nenhum documento contemporâneo aos fatos que tenha sido até hoje encontrado e/ou publicado por algum pesquisador, seja memorialista ou historiador. O que temos são algumas presunções, e datas mais ou menos aproximadas fundadas em algum fato específico. No Espírito Santo, foram os memorialistas positivistas de finais do século XIX, como Basílio Daemon, que começaram a tentar encontrar uma data para o abandono das Minas do Castelo; Daemon chegou a entrevistar, "em 1865, uma velha moradora daquele lugar" que o relatou episódios da luta com os indígenas. Fatos narrados que não há motivos para serem postos em cheque, mas que acabaram criando a imagem de que o abandono dos arraiais e povoado das Minas do Castelo tenham ocorrido em um único, ou principal, evento de combate entre moradores e indígenas.

Em princípio, firmou-se o ano de 1771 como tendo sido o do abandono das minas. Essa data foi a do provimento de um vigário para a Paróquia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim, recentemente criada. Como desde o século XIX já havia a tradição de que as imagens e paramentos da Igreja de Nossa Senhora da Conceição das Minas do Castelo haviam sido trasladados para a Igreja Matriz em Itapemirim, em uma espécie de transferência da Paróquia, imaginou-se que esse evento fosse uma prova da data do abandono. Hoje se sabe que a Freguesia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim foi instituída em 1768, ano inclusive que há provas documentais que as Minas de Castelo ainda existiam; portanto, não houve naquele momento uma transferência da sede da Paróquia.

Depois, com a descoberta de um documento de inquérito (devassa) sobre um crime ocorrido contra a vida de um certo Manoel Monteiro, morador no Ribeirão do Meio (que fica no distrito das Minas do Castelo), em 1776, relativizou-se o abandono das minas: alguns passaram a entender que o abandono foi progressivo, e que ainda restavam alguns poucos moradores na região. O evento de 1771 não foi, porém, deixado de lado. As datas de 1771 e 1776 começam a conviver como sendo os possíveis anos do abandono das Minas do Castelo, embora alguns entendessem que o evento de 1771 ainda era o principal fato.

Alguns pesquisadores ainda de finais do século XIX, porém, começaram a rever essas datas. O pesquisador e memorialista Antônio Marins, escrevendo no início do século XX sobre o assunto, entende que as Minas do Castelo teriam sido abandonadas entre 1776 e 1780, e informa que um estudioso que publicou um artigo em 1883 já havia concluído que as minas haviam sido abandonadas entre 1779 e 1780, quando "teve lugar a trasladação da velha imagem de S. Benedito". Surgiam, cada vez mais, provas de que o ocaso das Minas do Castelo não teria sido em 1771, mas sim alguns anos depois.

Diante da ausência de fonte contemporânea que ateste um ocaso abrupto, nos parece cada vez mais claro que o abandono das Minas do Castelo foi progressivo, fazendo parte de um processo; processo este que abarcou episódios factuais de confrontos entre mineradores e indígenas, e de esgotamento das jazidas ao alcance das forças e técnicas da época. Desde o estabelecimento legal das minas, as décadas de 1750 e 1760 foram as de maior ocupação e exploração; na década de 1770 começa o processo de esvaziamento. É a partir dessa época que os documentos começam a atestar investidas dos indígenas em algumas regiões no entorno. O progressivo esvaziamento das minas do Castelo também contribuiu para a evasão e extravio do ouro que fugia do fisco: o último documento fiscal, até hoje conhecido, que trata da arrecadação do quinto na região data de 1768. E depois chega o dia que nas Minas do Castelo não resta mais habitante algum.

Interessante é que os indícios de que o ocaso das Minas do Castelo havia ocorrido em ano posterior ao de 1771 já estavam bem evidentes para os historiadores de meados do século XX. Enquanto as publicações sobre a matéria ainda fiavam algum ano da década de 1770 (1771, que ainda era o mais citado, 1776 e 1779), novas fontes trazidas a luz colidiam com essas datas sedimentadas pela historiografia local de então. Fontes documentais estas, importante salientar, primárias. Algumas contemporâneas, mas de região diversa; outras não contemporâneas aos fatos, mas que estavam muito mais próximas temporalmente dos acontecimentos do que os escritos dos pesquisadores memorialistas da segunda metade do século XIX. Essas fontes são várias, e citarei apenas algumas delas no presente artigo.

Primeiro, falaremos de uma fonte contemporânea: os manuscrito de Couto Reis, que escreveu sobre Campos e seu entorno, em 1785. Nessa obra, quando trata dos povos indígenas da região, Couto Reis fala dos índios puri que, nessa época, se estendiam desde o rio Muriaé até as Minas do Castelo, "aonde tem feito lastimosos estragos". Importante lembrar que os campistas tinham mantido por muitos anos uma relação bem próxima com as Minas do Castelo, e o fato dessas minas terem sido citadas no documento é revelador. Em 1785, quando foi concluído, o manuscrito atesta que as Minas do Castelo ainda eram existentes e que sofriam com as investidas dos índios puri; assim, apesar de sofrer estragos dos indígenas, ainda eram habitadas na primeira metade dos anos 1780. Devido as acuradas e bem atualizadas informações de Couto Reis sobre seus objetos de estudo em seu trabalho, não cremos que ele estivesse defasado em mais de dez anos no que toca as Minas do Castelo.

Segundo, falaremos de alguns dos viajantes estrangeiros que transitaram pela Capitania do Espírito Santo em princípios do século XIX. Maximilian Wied e Saint-Hilaire estiveram em Itapemirim nos anos de 1815 e 1818, e escreveram interessantes relatos que hoje são muito utilizados como fonte histórica primária em trabalhos acadêmicos sobre o Espírito Santo. Ambos colheram relatos e tradições locais em seus escritos, e ambos são unânimes em afirmar que as Minas do Castelo teriam sido abandonadas em meados da década de 1780. Saint-Hilaire, que desce a detalhes e informa até mesmo o número de colonos mortos em refregas e ataques indígenas nos últimos quinze anos, é bem categórico em afirmar que as minas foram abandonadas (de vez) trinta anos antes, ou seja, por volta de 1785.

Por fim, elenco um testemunho que deveria receber toda a credibilidade, por ser praticamente contemporâneo ao tempo e pelo cargo de relevo que exerceu: trata-se de Manoel Vieira da Silva Albuquerque Tovar, que governou a Capitania do Espírito Santo entre os anos de 1804 e 1812. Em uma memória que escreveu e citado pelo pesquisador e escritor Levy Rocha, o governador Tovar informou que as Minas do Castelo foram abandonadas mais pela pobreza das suas lavras do que pelo receio dos índios, e que tal ocaso teria se concluído entre 1783 e 1784.

Todas essa fontes por mim elencadas, não necessariamente descartadas pela historiografia, mas relegadas a um plano dosimétrico inferior aos trabalhos históricos escritos pelos memorialistas a partir de fins dos anos 1870 (cem anos depois de terem sido largadas as minas), são bem elucidativas. Convergem para um abandono definitivo ocorrido por volta de 1785; é praticamente certo que o governador Tovar tenha feito sua memória com base em fontes (documentais, ou não) bem confiáveis, e que as datas por ele levantadas sejam as reais do ocaso das Minas do Castelo: entre 1783 e 1784.

Nessa mesma época outras minas "clandestinas", pouco fiscalizadas ou pouco rentáveis estavam sendo proibidas e fechadas pela ação do governo geral. Muitas das lavras situadas entre as indefinidas divisas das Capitanias de Minas Gerais com o Rio de Janeiro e Paraíba do Sul (região campista) foram fechadas, como as de Cantagalo e as Novas Minas de Castelo, e bandos de garimpeiros como os chefiados pelo célebre "Mão de Luva" estavam sendo dispersados e presos. É importante conjunturar essa situação geral, pois o definitivo ocaso das Minas do Castelo é contemporâneo a esses fatos.

Quando Ignacio João Mongeardino tomou posse do cargo de Capitão-Mor da Capitania do Espírito Santo, em 1782, as Minas do Castelo ainda existiam. É o que extraímos de algumas de suas primeiras medidas administrativas. E em 1790, quando Mongeardino enviou longo e pormenorizado relatório sobre o Espírito Santo para o Governador da Bahia, as Minas do Castelo já tinham sido abandonadas. E essa fonte, combinada com outra que "garimpei" (uma correspondência do Vice-Rei para o nosso Capitão Mor, reprovando uma incursão de uma ordem religiosa nas abandonadas minas, no mesmo ano) denota que o governo da Capitania estava obedecendo alguma determinação de manter fechado o acesso à região das minas do Castelo. Mongeardino, em seu relatório, informa que as "Minas do Castello, se achão cheias de mattos, por eu impedir a limpa dellas, afim de evitar a sua communicação".

Assim, tudo nos leva a crer que as memórias escritas pelo Governador Tovar devem ser vistas com mais seriedade, pois são verossímeis. O ocaso das Minas do Castelo foi o culminar de um processo de esvaziamento, iniciado possivelmente na década de 1770 e que teve seu desfecho em 1783 ou 1784. As investidas dos indígenas puri e o esgotamento das lavras foram os fatores determinantes para a queda populacional, coroada depois por uma determinação do governo em fechar as minas e impedir a sua comunicação; e não apenas nas nossas Minas do Castelo, mas em várias minas nas zonas montanhosas entre Minas Gerais e as Capitanias da costa. As afamadas Minas do Castelo passariam para a memória, a despeito de algumas tentativas e pequenas empreitadas para se reexplorar as lavras anos mais tarde.

E voltando para o crisma da pequena Sebastiana em maio de 1786, tratado logo no começo do presente artigo: essa fonte só nos foi possível de ser legada por causa das anotações em diário do Bispo Pedro Lacerda, em sua visita ao Espírito Santo de 1886/87. Bispo da Diocese do Rio de Janeiro, Lacerda visitou as paróquias sob sua jurisdição e copiou várias passagens dos livros de registros das Igrejas, que entendia interessantes de tombar. Assim, estando em Guarapari, escreveu que "em um livro achei uma folha avulsa em parte mutilada sem os pedaços que faltam. Parece-me que pertence a livros de Itapemirim". E transcreveu o que conseguiu ler desse interessante registro.

Sebastiana, filha de Sebastião e de Maria, escravos de Domingos, tinha 5 anos na ocasião. Teria nascido, portanto, por volta de 1781. Era natural e foi batizada na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Castelo, que foi instituída nas Minas de Castelo em 1754. Essa é mais uma fonte cabal: dez anos após a data que em princípio os memorialistas de finais do século XIX acharam que as minas haviam sido abandonadas, uma criança nasceu e foi batizada pelo vigário na Igreja Matriz da paróquia, denotando que o povoado ainda existia e a Igreja ainda funcionava. Cinco anos depois, porém, Sebastiana foi crismada não em Castelo, mas sim em Itapemirim. Sua família e, com grande chance, o seu senhor, haviam deixado as montanhas e estavam na costa. Muito possivelmente por causa do evento que estamos aqui tratando: o ocaso das Minas do Castelo, ocorrido provavelmente nos anos que o governador Tovar, citado por Levy Rocha, informou em seu escrito: 1783 ou 1784.

E para finalizar, embora não seja o escopo do presente trabalho, é preciso que tratemos um pouco sobre o famoso Livro Tombo de Itapemirim, hoje usado como fonte por alguns pesquisadores para fundamentar o início da exploração das minas do Castelo no primeiro quartel do século XVII. Tal livro informa que foram os jesuítas que iniciaram a exploração do ouro na região, e que foram ali fundadas várias missões que abrigaram milhares de indígenas em 1625. O próprio Bispo Lacerda que supra aludimos teve acesso aos escritos desse livro tombo, que estava sendo então confeccionado pelo vigário da freguesia à época da visita do referido Bispo; portanto, cerca de cem anos depois do abandono das Minas do Castelo, e duzentos e cinquenta anos depois da suposta fundação dessas fantasiosas Missões do Monte Castelo. E Lacerda aponta em seu diário que o vigário de Itapemirim estava inventando fantasias quando tratava desse passado mais longínquo...

O Livro Tombo de Itapemirim é uma obra importantíssima para a pesquisa da história regional do sul do Estado do Espírito Santo, principalmente quando começa a tratar da instituição da paróquia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim em diante. Mas é preciso ao historiador ter muito critério em sua leitura, para não incorrer em erros e vícios que uma errônea interpretação das fontes pode levar. Sem usar de metodologia científica, sem fazer o devido processo das críticas interna e externa das fontes, sem fazer as necessárias comparações com os documentos primários contemporâneos, o pesquisador acaba por reproduzir os equívocos cometidos pelo vigário que confeccionou o livro. Assim, o citado Livro Tombo é uma fonte documental maravilhosa de informação, mas que precisa ser trabalhado com muito critério pelo historiador.

Em meados do século XIX, quando os posseiros começaram a abrir posses no vale do rio Castelo, para que depois os fazendeiros formassem as futuras ricas fazendas cafeeiras, encontraram as ruínas das edificações dos arraiais e do povoado que formaram as extintas Minas do Castelo. Encontraram várias obras de exploração, inclusive com desvio de ribeirões e córregos, bem como ferramentas e várias árvores frutíferas, restos de pomares então misturados com a vegetação que retomava seu espaço. Sim, a história das Minas do Castelo e de suas "cidades desaparecidas" me fascinam imensamente.

Pesquisa e texto: Gerson Moraes França