quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Monte Agá

O MONTE AGÁ: SIGNIFICADO E HISTORIOGRAFIA


"No monte Aghá
Eu te quero, eu te vejo, eu te encontro lá
Oh! Que lindo lugar de ver Deus
Oh! Que doce lugar pra se amar"
KAUÊ, Beto. Piúma.


No lugar onde passo parte do verão no sul do Espírito Santo, tenho uma bonita vista de toda a larga enseada que começa na Ponta de Castelhanos, em Anchieta, e termina em Marataízes. Da minha varandinha, diviso ao longe a bela Ilha dos Franceses e o imponente Monte Agá. Sentado, entre um gole e outro de café, contemplo essas belezas espírito-santenses e divago em formular histórias sobre esses nossos lindos monumentos naturais. Sempre me interessei muito pela nossa história, e pesquisar a "origem" dos nomes das nossas localidades me atrai. A pesquisa toponímia, especialmente a dos lugares do nosso Estado, me desafia e me diverte.

Já há bastante tempo que a "tradução" do que significaria "Agá", do monte, me intriga. Rezam alguns que o termo "Agá" significa "lugar de se ver Deus", e é essa definição a que mais se propaga por matérias e sites pela internet afora. Tal assertiva foi eternizada poeticamente, inclusive, na canção "Piúma" de Beto Kauê, a "música símbolo" do balneário. Quem era jovem na década de 1990 e passou carnaval em Piúma, certamente já andou atrás de um trio elétrico com o Beto Kauê cantando sua música mais famosa à época.

Basta uma pequena busca no Google para observar que o famoso copy/paste sobre o significado corrente do topônimo "Monte Agá" (aproveito para informar que atualmente o monte é grafado "Aghá", mas me servirei da forma mais simples e antiga de grafá-lo) reina soberanamente em revistas e jornais, sites e blogs, dentre outros. Divergem apenas na língua de origem do termo: alguns dizem que é puri, outros que é tupi, e uns poucos misturam no mesmo balaio puri, tupi e até botocudo.

O Monte Agá faz parte da área de proteção ambiental (APA) da Lagoa Guanandy
e foi tombado pelo Conselho Estadual de Cultura em 1985. (foto: site da Folha Vitória)

É fato bem conhecido dos estudiosos mais criteriosos de nossa história que a esmagadora maioria dos nomes dos acidentes geográficos e localidades do Espírito Santo, quando de origem indígena e já nominados até o século XVIII, é de língua tupi. Assim, termos atuais como Guarapari, Itapemirim, Iriri, Meaípe, Piúma, Itaipava, etc, lugares de nosso litoral espírito-santense e com suas mais diversas grafias no curso da história, são todas de origem tupi e, logo, possuem alguma "tradução" ou "significado". O Monte Agá já é assim grafado em mapas da primeira metade do século XVII. Assim, superada discricionariamente em nossa sentença essa que poderia ser a primeira "discussão" do presente artigo, asseveramos conclusivamente que o termo "Agá" é de origem tupi. Portanto, precisamos encontrar o seu significado com base na língua tupínica.

Seria estranho se o Monte Agá não fosse representado nos mapas antigos que retratam a costa do Brasil e do Espírito Santo. Esses mapas dos séculos XVI e XVII eram feitos principalmente para a navegação, e assim eram referenciados os acidentes geográficos do litoral tais como os nomes dos rios, cabos, enseadas, baixios e serras ou montanhas  próximas; essas últimas serviam como ponto de referência para balizar os navegantes. A visão dos contemporâneos para a localização era, portanto, de costas para o mar e virados para a faixa costeira. Na faixa do litoral sul espírito-santense a qual nós nos focamos presentemente, há alguns acidentes que, via de regra, estão elencados nesses mapas. A ponta dos castelhanos, a enseada do rio Benevente (antigo Ireritiba) e sua foz em Anchieta, a boca do Piúma, o rio Itapemirim, a Ilha dos Franceses, as falésias de Marataízes e, é claro, o nosso aqui estudado Monte Agá, costumam aparecer. E foi com base em alguns desses mapas e em uma escritura de acordo entre donatários, todas fontes primárias ou documentos contemporâneos, que consegui fazer a tradução.

Não é preciso ser um grande tupinólogo ou especialista na língua tupi para perceber que a expressão "lugar de se ver Deus" não é a tradução correta do significado do topônimo "Agá". Com um conhecimento rudimentar da língua tupi é possível afirmar isso com boa dose de certeza. Mas então, qual seria a tradução do termo? Para sabermos, precisamos primeiro conhecer as grafias e termos originais do nosso monte.

Logo nos primeiros anos da colonização europeia nas américas alguns nomes de localidades começaram a se firmar em topônimos que ainda hoje as nominam. Em meados do século XVI, por exemplo, no sul do Espírito Santo já estavam firmados os nomes Itapemirim e Guarapari (nomes indígenas de origem tupi, com grafias diversas) e Ilha dos Franceses (nome português para a ilha frequentada pelos franceses, também no singular). Alguns nomes de origem indígena, possivelmente, já nominavam acidentes geográficos antes mesmo da chegada dos europeus. Uns nomes, sejam da origem que for, "pegam"; outros, não. Assim, o nome Managé (atual Itabapoana), provavelmente de origem goitacá (não falante do tupi) não pegou, firmando-se depois o nome tupi Camapuã. Outros nomes se firmam, mas se transmutam em corruptelas que, por vezes, os descaracterizam a ponto de formar um termo bem diverso do original. Podemos citar para esse caso o mesmo Camapuã, que se transmutou em Cabapuan e depois em Tabapuan (atual Itabapoana) no século XIX.

Em princípio, acreditei que o termo "Agá" pudesse ser uma dessas transmutações de um nome maior, ou então parecido. E deitei-me em estudos e pesquisas nas fontes e dicionários, aproveitando o conhecimento que adquiri em um "curso rápido" de tupi que certa feita fiz. Vamos às fundamentações e conclusões.

Várias gravuras do Monte Agá em diversos mapas do século XVII, com recorte temporal entre 1640 e 1675.
Fonte: site "História Capixaba" (montagem de recortes de vários mapas, pelo autor).

A mais antiga referência que temos sobre a possível origem do nome do monte Agá é um documento firmado entre os donatários das Capitanias do Espírito Santo e de São Tomé, respectivamente Vasco Fernandes Coutinho e Pedro de Góes, que tratou dos limites das duas jurisdições em 1539. Convencionaram os dois donatários em estabelecer a divisão em um rio que os indígenas chamavam "Tapemiri" (atual Itapemirim), diante da imprecisão de se divisar como limite o Baixio dos Pargos, divisa original das duas Capitanias. Até batizaram o rio com o nome Santa Catarina, mas esse nome "não pegou"; o nome tupi prevaleceu no correr do tempo. Nesse documento citado, há menção a "uma terra do dito Vasco Fernandes que se chama Aguapé", "obra de duas léguas pouco mais ou menos" do rio Itapemirim. Obviamente, ao norte desse caudal.

Verificando os acidentes geográficos da região, observamos que ao norte do rio Itapemirim corre uma longa e funda praia de águas agitadas que começa a ser quebrada por algumas pontas pedregosas na altura das atuais Itaoca e Itaipava. Bem perto do pouco protegido abrigo de Itaipava, também ao norte, fica do monte Agá. Depois inicia-se uma calma praia em uma enseada muito rasa, que é novamente quebrada por uma formação de rocha que fecha a boca do rio Piúma. No lagamar do Piúma há melhor abrigo para as embarcações. Assim, considerando a precisão aproximada da medida de distância no mar em léguas à época, a Aguapé do documento de Vasco e Pedro só poderia ser dois acidentes: ou o nosso monte Agá, ou o estuário do Piúma. Ou até mesmo um nome comum ou aproximado para ambos.

Não é impossível que a boca do Piúma pudesse ter sido chamada de um nome parecido: Iguape. Em tupi, essa palavra designa o local de uma enseada ou um lagamar que recebe a influência da água do mar e das águas do(s) rio(s) próximo(s). A formação léxica desse termo tupi vem de Y(rio) + Kuá (redondo) + 'Pe (sufixo de local). Assim, Iguape seria algo como local de enseada, lagamar ou estuário de rio. Mas, em relação ao Piúma, isso não vem ao caso. Exemplifiquei apenas para destrinchar a raiz dessa palavra tupi que tem a chave para a nossa resposta. Não há nenhuma fonte ou tese que abra a possibilidade de que a foz do Piúma possa ter sido chamada de Iguape.

Já a palavra Aguapé tem outra formação. Vem, segundo o dicionário Houaiss e outras fontes de dicionários tupi que consultei, de Agwa (redondo) + Pé (flexão de "Peva" e suas variantes: achatado, plano). É como os indígenas tupi chamam algumas plantas de águas paradas, como a linda Vitória Régia (redonda e chata). Em princípio, então, teria a Aguapé de Vasco Coutinho relação com essa palavra que designa uma planta? Parece que não, a não ser quando extraímos dessa palavra, assim como da palavra Iguape, a sua raiz. E a raiz dessas duas palavras é o termo tupi para "redondo". Desenha-se a nossa tradução.

A palavra "redondo" é dita de duas formas em tupi: Puã (e suas variantes, como puá, poá, etc), e Awa (e suas variantes que veremos). E a palavra Awa é a chave para entendermos o nome do nosso Monte Agá. Essa raiz da palavra tupi para "redondo" é flexionada de diversas formas: Akuá, Kuá, Agwa, Goá e Guá, por exemplo. A pronúncia de Awa é gutural, com a consoante oclusa K ou G manifestando-se quando a palavra é dita, principalmente quando há vogal que a precede. Assim, voltando à palavra tupi Iguape, teríamos as raízes Y (água) + Awa (redondo) + 'Pe (sufixo de local): a aglutinação de Y com Awa oblitera o primeiro A átono e faz saltar o fonema K ou G: Iguá ou Igoá. Junto com o sufixo 'Pe, forma-se a palavra Iguape, com a sílaba tônica no "Gua". Em Aguapé, as raízes são, como vimos, Awa (redondo, pronunciando-se Aguá) + Peb(v)a (plano, chato; a sílaba tônica no "Pe" faz desaparecer a sílaba final): forma-se Aguapé, com sílaba tônica no "Pé".

Antes de prosseguir, abro aqui um adendo: sou historiador e não tenho formação em linguagens. Uso da linguística como ciência auxiliar da História, e provavelmente aqui cometo erros na denominação de algum fenômeno dessa área de estudos. De todo modo, tal fato não desvirtua o presente artigo. Sigo, pois.

Vimos acima que uma das possíveis denominações antigas do Monte Agá pode ter sido Aguapé. Acredito, porém, que houve erro de tonificação da sílaba quando a palavra foi grafada naquele documento firmado entre os dois donatários vizinhos. O mais provável, considerando as outras fontes que estão nos mapas antigos e fazendo comparações, é que a palavra fosse pronunciada com a sílaba tônica no "Gua": Aguape. Explico.

Nos mapas portugueses do litoral do atual Brasil e do Espírito Santo datados do século XVII, há menção expressa do nome "Monte Agá" já com essa grafia. Mas há alguns mapas pouco anteriores, ou então mapas de autoria de estrangeiros que usavam de informações antigas, que grafam o nosso monte com nomes similares e que identificam a sua provável raiz. A propósito, a pesquisa em mapas hoje é muito facilitada devido ao belo trabalho do historiador Fabio Paiva Reis, que pesquisou, catalogou, identificou e digitalizou dezenas de mapas que retratam o Espírito Santo, e os alocou no site "História Capixaba".

Há um mapa do cartógrafo Luis Teixeira, datado de cerca de 1590, que cita o nome "Goape" entre o Espírito Santo (região da baía de Vitória) e o rio Managé (atual Itabapoana), ao norte do "Baixo dos Porgudos" (antigo Baixios dos Pargos, defronte às falésias da atual Marataízes, entre o Itabapoana e o Itapemirim). Essa localidade - Goape - não é citada como sendo um rio. Começam a aparecer as similaridades: "Goá" (uma das flexões de "Agwa", redondo), e 'Pe (sufixo de lugar).

TEIXEIRA, Luis. Roteiro de todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas, e derrotas que há na costa do Brasil
desde o cabo de Santo Agostinho até ao estreito de Fernão de Magalhães.
 ca. 1590.
Disponível em: 
https://historiacapixaba.com (RECORTE DO MAPA)

Um outro mapa, elaborado por João Teixeira Albernaz e datado de 1631, muito mais detalhado, dirime quaisquer dúvidas. Nele está o rio "Itapemeri" (Itapemirim) e o rio Yrirituba (atual Benevente); entre eles, no oceano, está a ilha dos "Francezes" e, quase defronte à essa, a "Serra do Gua". Para quem conhece a geografia dessa região de nosso Estado, resta clarividente que a única elevação mais alta que existe entre esses dois rios é o Monte Agá. Portanto, podemos afirmar com certeza que essa serra do Gua (Guá, variação de A[g]wa, redondo) é certamente o Monte Agá. "Goá" ou "Guá", seguido do sufixo 'Pe (que situa localidade em tupi) ou então sem esse, com a designação portuguesa de "serra".

Capitania do Spirito Santo. In: Estado do Brasil coligido das mais sertas noticias q[ue] pode aivntar dõ Ieronimo de Ataide.
Por Ioão Teixeira Albernas, cosmographo de Sya Ma[gest]ade. Anno: 1631. – 1631. – Cart. 14. - João Teixeira Albernaz, o Velho.
Pert.: Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro. Disponível em: 
https://historiacapixaba.com (RECORTE DO MAPA)

Há também alguns mapas de estrangeiros que nos auxiliam nessa missão de pesquisa. Um deles é de autoria do cartógrafo Antonio Francesco Lucini, datado de 1646. Nele há a representação de uma elevação ao fundo, entre o rio "Itapemeri" (Itapemirim) e a "Boca del Fiume" (Piúma), chamada de "Monte Guaipel". Considerando os erros de grafia e os pontuais deslizes de portulanos estrangeiros calcados muitas vezes em parcas ou falhas informações, é possível afirmar que essa elevação é a mesma da serra do Gua e do Goape. As similaridades vão tomando forma de razão. Aguapé, Guá, Goape e Guaipel são formas diferentes de se grafar o mesmo acidente geográfico. Há ainda outros mapas que poderíamos tratar, mas se assim for a presente fundamentação ficará ainda mais extensa. Ficarei apenas com esses que citei.

Dudley, Sir Robert. Carta Particolare della Brasilia, che comincia dal Porto del'Spirito Sancto è finisce con il capo Bianco.
In: Dell Arcano del Mare. 1646. Disponível em: 
https://historiacapixaba.com (RECORTE DO MAPA)

Fica bem claro, portanto, que o "Monte Agá" tem esse nome porque é um morro redondo, um monte arredondado: em tupi, "Agwá", da qual "Agá" provém. Quando era referenciado como uma localidade, o Agwá era complementado com o sufixo 'Pe. Por isso a grafia "Aguapé" que vimos no documento de Vasco Coutinho e o donatário limítrofe que, porém, tonalizou equivocadamente a última sílaba. Se o nome fosse Aguapé (redondo e chato), não seria muito plausível que a "evolução" da palavra suprimisse o "Pé", tal como ocorreu (ficando somente o "Aguá"). Em Aguape, com sílaba tônica no "Gua", tal supressão é até comum em outras palavras tupi com mesma formação (com o sufixo 'Pe).

Morro, ou monte, "Redondo"; tal como Cesar Augusto Marques, sem saber que a forma da montanha era o significado de seu nome silvícola, escreveu em seu trabalho sobre a Província do Espírito Santo datado de 1878:
"Agá, ou Aghá - morro - tem a forma arredondada e está isolado perto de Itapemirim. Por ser muito alto, serve no mar o seu pico de guia aos navegantes, que fazem a sua derrota ao sul da costa da Província. Tem muito boa água potável. (...)"

Quase vinte anos antes da publicação do trabalho de Marques, o Imperador Dom Pedro II, em visita que fez ao Espírito Santo, em fevereiro de 1860 escreveu em seu diário de viagem, percebendo que o nosso monte não deveria ter seu nome inspirado na letra "H": "(...) vi o morro Agá que nada se parece com essa letra (...).

A poesia é linda. A "tradução", ou tradição, tombada e cantada por Beto Kauê na música "Piúma", é bela e grandiosa. "Lugar de se ver Deus" é poético. Mas aprendi, com o tempo, que os significados e/ou origens dos topônimos costumam ser mais singelas: a explicação é, quase sempre, a mais simples. No caso, o nosso Monte Agá é, simplesmente e lindamente,  um morro arredondado: o "Monte Redondo".

Pesquisa e texto:
Gerson Moraes França

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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Ocaso das Minas do Castello

Recorte de mapa de 1846, com a localização das antigas minas do Castelo.

No dia 25 de maio de 1786, na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim, foram crismadas nove ou dez crianças pelo reverendo visitador Vicente José da Gama Leal, comissionado pelo Bispo do Rio de Janeiro e que ali estava em viagem pelas paróquias do norte do Bispado. Nessa época, as freguesias da Capitania do Espírito Santo integravam aquela circunscrição eclesiástica. Uma dessas crianças crismadas se chamava [Seba]stiana (assim presumiu quem registrou), de cinco anos de idade, filha de Sebastião e de Maria, escravos de um certo Domingos Ra[mos](sobrenome presumido pelo autor dessas linhas). Sebastiana era natural e batizada na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Castelo.

Sempre me fascinou a história dessas célebres minas de ouro situadas nos contrafortes a oeste da serra que corre, mais ou menos, de sul a norte entre o rio Castelo (afluente do rio Itapemirim) e a costa do Espírito Santo. Apesar de não muito conhecidas, muito já se escreveu, e ainda se escreve, sobre as Minas do Castelo. É surpreendente conhecer seus primeiros tempos e notável estudar seu desenvolvimento; e é intrigante saber como foi o seu ocaso. Imaginar que essas minas foram povoadas e formaram (segundo a tradição) quatro arraiais e uma povoação que foi sede de uma Freguesia, e que depois tudo isso foi abandonado para ser enterrado pela vegetação e esboroado em ruínas.

Essas fascinantes minas nunca foram, porém, muito povoadas se comparadas com outras tantas minas de ouro que existiram na história do nosso Brasil. Segundo o grande pesquisador Alberto Lamego, que estudou esse assunto e teve acesso a então inéditas fontes primárias e documentos, no seu período de maior prospecção as Minas do Castelo chegaram a abrigar cerca de 400 mineradores; não é um número elevado de pessoas, mesmo para a época que a população do Espírito Santo e do Brasil era uma ínfima fração do que é nos dias de hoje. Sua existência, do início ao ocaso, se remete ao século XVIII; descobertas e inicialmente povoadas por paulistas e seus bandos que percorriam o interior do continente, incrementadas depois por povoadores campistas após estabelecidas as minas, e depois e abandonadas pelo esgotamento das jazidas e pela pressão dos indígenas. Tudo isso ocorreu no recorte temporal de menos de um século.

Apesar das teorias de que as Minas do Castelo já eram exploradas muito tempo antes da chegada dos paulistas  (as datas variam conforme as construções teóricas e os agentes envolvidos), qualquer historiador e pesquisador mais criterioso e fiel à metodologia da ciência histórica desconsidera essa remotíssima possibilidade. O próprio Lamego, sempre fiel à pesquisa histórica em fontes primárias e à análise crítica das fontes, considera que foram os paulistas seus incontestes descobridores. Outros estudiosos da história das Minas do Castelo endossam essa assertiva, como Tristão Araripe; e alguns poucos, como o memorialista Gomes Netto, entendem que as minas já eram exploradas por indígenas e jesuítas no século (ou séculos, dependendo do memorialista) anterior; meras teorias sem embasamento documental e simples conclusões eivadas de vício. De todo modo, esse imbróglio não é o foco do presente artigo e não interfere em nossas conclusões.

O ocaso das Minas do Castelo é assunto bastante tratado pela historiografia espírito-santense. Mas não há nenhum documento contemporâneo aos fatos que tenha sido até hoje encontrado e/ou publicado por algum pesquisador, seja memorialista ou historiador. O que temos são algumas presunções, e datas mais ou menos aproximadas fundadas em algum fato específico. No Espírito Santo, foram os memorialistas positivistas de finais do século XIX, como Basílio Daemon, que começaram a tentar encontrar uma data para o abandono das Minas do Castelo; Daemon chegou a entrevistar, "em 1865, uma velha moradora daquele lugar" que o relatou episódios da luta com os indígenas. Fatos narrados que não há motivos para serem postos em cheque, mas que acabaram criando a imagem de que o abandono dos arraiais e povoado das Minas do Castelo tenham ocorrido em um único, ou principal, evento de combate entre moradores e indígenas.

Em princípio, firmou-se o ano de 1771 como tendo sido o do abandono das minas. Essa data foi a do provimento de um vigário para a Paróquia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim, recentemente criada. Como desde o século XIX já havia a tradição de que as imagens e paramentos da Igreja de Nossa Senhora da Conceição das Minas do Castelo haviam sido trasladados para a Igreja Matriz em Itapemirim, em uma espécie de transferência da Paróquia, imaginou-se que esse evento fosse uma prova da data do abandono. Hoje se sabe que a Freguesia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim foi instituída em 1768, ano inclusive que há provas documentais que as Minas de Castelo ainda existiam; portanto, não houve naquele momento uma transferência da sede da Paróquia.

Depois, com a descoberta de um documento de inquérito (devassa) sobre um crime ocorrido contra a vida de um certo Manoel Monteiro, morador no Ribeirão do Meio (que fica no distrito das Minas do Castelo), em 1776, relativizou-se o abandono das minas: alguns passaram a entender que o abandono foi progressivo, e que ainda restavam alguns poucos moradores na região. O evento de 1771 não foi, porém, deixado de lado. As datas de 1771 e 1776 começam a conviver como sendo os possíveis anos do abandono das Minas do Castelo, embora alguns entendessem que o evento de 1771 ainda era o principal fato.

Alguns pesquisadores ainda de finais do século XIX, porém, começaram a rever essas datas. O pesquisador e memorialista Antônio Marins, escrevendo no início do século XX sobre o assunto, entende que as Minas do Castelo teriam sido abandonadas entre 1776 e 1780, e informa que um estudioso que publicou um artigo em 1883 já havia concluído que as minas haviam sido abandonadas entre 1779 e 1780, quando "teve lugar a trasladação da velha imagem de S. Benedito". Surgiam, cada vez mais, provas de que o ocaso das Minas do Castelo não teria sido em 1771, mas sim alguns anos depois.

Diante da ausência de fonte contemporânea que ateste um ocaso abrupto, nos parece cada vez mais claro que o abandono das Minas do Castelo foi progressivo, fazendo parte de um processo; processo este que abarcou episódios factuais de confrontos entre mineradores e indígenas, e de esgotamento das jazidas ao alcance das forças e técnicas da época. Desde o estabelecimento legal das minas, as décadas de 1750 e 1760 foram as de maior ocupação e exploração; na década de 1770 começa o processo de esvaziamento. É a partir dessa época que os documentos começam a atestar investidas dos indígenas em algumas regiões no entorno. O progressivo esvaziamento das minas do Castelo também contribuiu para a evasão e extravio do ouro que fugia do fisco: o último documento fiscal, até hoje conhecido, que trata da arrecadação do quinto na região data de 1768. E depois chega o dia que nas Minas do Castelo não resta mais habitante algum.

Interessante é que os indícios de que o ocaso das Minas do Castelo havia ocorrido em ano posterior ao de 1771 já estavam bem evidentes para os historiadores de meados do século XX. Enquanto as publicações sobre a matéria ainda fiavam algum ano da década de 1770 (1771, que ainda era o mais citado, 1776 e 1779), novas fontes trazidas a luz colidiam com essas datas sedimentadas pela historiografia local de então. Fontes documentais estas, importante salientar, primárias. Algumas contemporâneas, mas de região diversa; outras não contemporâneas aos fatos, mas que estavam muito mais próximas temporalmente dos acontecimentos do que os escritos dos pesquisadores memorialistas da segunda metade do século XIX. Essas fontes são várias, e citarei apenas algumas delas no presente artigo.

Primeiro, falaremos de uma fonte contemporânea: os manuscrito de Couto Reis, que escreveu sobre Campos e seu entorno, em 1785. Nessa obra, quando trata dos povos indígenas da região, Couto Reis fala dos índios puri que, nessa época, se estendiam desde o rio Muriaé até as Minas do Castelo, "aonde tem feito lastimosos estragos". Importante lembrar que os campistas tinham mantido por muitos anos uma relação bem próxima com as Minas do Castelo, e o fato dessas minas terem sido citadas no documento é revelador. Em 1785, quando foi concluído, o manuscrito atesta que as Minas do Castelo ainda eram existentes e que sofriam com as investidas dos índios puri; assim, apesar de sofrer estragos dos indígenas, ainda eram habitadas na primeira metade dos anos 1780. Devido as acuradas e bem atualizadas informações de Couto Reis sobre seus objetos de estudo em seu trabalho, não cremos que ele estivesse defasado em mais de dez anos no que toca as Minas do Castelo.

Segundo, falaremos de alguns dos viajantes estrangeiros que transitaram pela Capitania do Espírito Santo em princípios do século XIX. Maximilian Wied e Saint-Hilaire estiveram em Itapemirim nos anos de 1815 e 1818, e escreveram interessantes relatos que hoje são muito utilizados como fonte histórica primária em trabalhos acadêmicos sobre o Espírito Santo. Ambos colheram relatos e tradições locais em seus escritos, e ambos são unânimes em afirmar que as Minas do Castelo teriam sido abandonadas em meados da década de 1780. Saint-Hilaire, que desce a detalhes e informa até mesmo o número de colonos mortos em refregas e ataques indígenas nos últimos quinze anos, é bem categórico em afirmar que as minas foram abandonadas (de vez) trinta anos antes, ou seja, por volta de 1785.

Por fim, elenco um testemunho que deveria receber toda a credibilidade, por ser praticamente contemporâneo ao tempo e pelo cargo de relevo que exerceu: trata-se de Manoel Vieira da Silva Albuquerque Tovar, que governou a Capitania do Espírito Santo entre os anos de 1804 e 1812. Em uma memória que escreveu e citado pelo pesquisador e escritor Levy Rocha, o governador Tovar informou que as Minas do Castelo foram abandonadas mais pela pobreza das suas lavras do que pelo receio dos índios, e que tal ocaso teria se concluído entre 1783 e 1784.

Todas essa fontes por mim elencadas, não necessariamente descartadas pela historiografia, mas relegadas a um plano dosimétrico inferior aos trabalhos históricos escritos pelos memorialistas a partir de fins dos anos 1870 (cem anos depois de terem sido largadas as minas), são bem elucidativas. Convergem para um abandono definitivo ocorrido por volta de 1785; é praticamente certo que o governador Tovar tenha feito sua memória com base em fontes (documentais, ou não) bem confiáveis, e que as datas por ele levantadas sejam as reais do ocaso das Minas do Castelo: entre 1783 e 1784.

Nessa mesma época outras minas "clandestinas", pouco fiscalizadas ou pouco rentáveis estavam sendo proibidas e fechadas pela ação do governo geral. Muitas das lavras situadas entre as indefinidas divisas das Capitanias de Minas Gerais com o Rio de Janeiro e Paraíba do Sul (região campista) foram fechadas, como as de Cantagalo e as Novas Minas de Castelo, e bandos de garimpeiros como os chefiados pelo célebre "Mão de Luva" estavam sendo dispersados e presos. É importante conjunturar essa situação geral, pois o definitivo ocaso das Minas do Castelo é contemporâneo a esses fatos.

Quando Ignacio João Mongeardino tomou posse do cargo de Capitão-Mor da Capitania do Espírito Santo, em 1782, as Minas do Castelo ainda existiam. É o que extraímos de algumas de suas primeiras medidas administrativas. E em 1790, quando Mongeardino enviou longo e pormenorizado relatório sobre o Espírito Santo para o Governador da Bahia, as Minas do Castelo já tinham sido abandonadas. E essa fonte, combinada com outra que "garimpei" (uma correspondência do Vice-Rei para o nosso Capitão Mor, reprovando uma incursão de uma ordem religiosa nas abandonadas minas, no mesmo ano) denota que o governo da Capitania estava obedecendo alguma determinação de manter fechado o acesso à região das minas do Castelo. Mongeardino, em seu relatório, informa que as "Minas do Castello, se achão cheias de mattos, por eu impedir a limpa dellas, afim de evitar a sua communicação".

Assim, tudo nos leva a crer que as memórias escritas pelo Governador Tovar devem ser vistas com mais seriedade, pois são verossímeis. O ocaso das Minas do Castelo foi o culminar de um processo de esvaziamento, iniciado possivelmente na década de 1770 e que teve seu desfecho em 1783 ou 1784. As investidas dos indígenas puri e o esgotamento das lavras foram os fatores determinantes para a queda populacional, coroada depois por uma determinação do governo em fechar as minas e impedir a sua comunicação; e não apenas nas nossas Minas do Castelo, mas em várias minas nas zonas montanhosas entre Minas Gerais e as Capitanias da costa. As afamadas Minas do Castelo passariam para a memória, a despeito de algumas tentativas e pequenas empreitadas para se reexplorar as lavras anos mais tarde.

E voltando para o crisma da pequena Sebastiana em maio de 1786, tratado logo no começo do presente artigo: essa fonte só nos foi possível de ser legada por causa das anotações em diário do Bispo Pedro Lacerda, em sua visita ao Espírito Santo de 1886/87. Bispo da Diocese do Rio de Janeiro, Lacerda visitou as paróquias sob sua jurisdição e copiou várias passagens dos livros de registros das Igrejas, que entendia interessantes de tombar. Assim, estando em Guarapari, escreveu que "em um livro achei uma folha avulsa em parte mutilada sem os pedaços que faltam. Parece-me que pertence a livros de Itapemirim". E transcreveu o que conseguiu ler desse interessante registro.

Sebastiana, filha de Sebastião e de Maria, escravos de Domingos, tinha 5 anos na ocasião. Teria nascido, portanto, por volta de 1781. Era natural e foi batizada na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Castelo, que foi instituída nas Minas de Castelo em 1754. Essa é mais uma fonte cabal: dez anos após a data que em princípio os memorialistas de finais do século XIX acharam que as minas haviam sido abandonadas, uma criança nasceu e foi batizada pelo vigário na Igreja Matriz da paróquia, denotando que o povoado ainda existia e a Igreja ainda funcionava. Cinco anos depois, porém, Sebastiana foi crismada não em Castelo, mas sim em Itapemirim. Sua família e, com grande chance, o seu senhor, haviam deixado as montanhas e estavam na costa. Muito possivelmente por causa do evento que estamos aqui tratando: o ocaso das Minas do Castelo, ocorrido provavelmente nos anos que o governador Tovar, citado por Levy Rocha, informou em seu escrito: 1783 ou 1784.

E para finalizar, embora não seja o escopo do presente trabalho, é preciso que tratemos um pouco sobre o famoso Livro Tombo de Itapemirim, hoje usado como fonte por alguns pesquisadores para fundamentar o início da exploração das minas do Castelo no primeiro quartel do século XVII. Tal livro informa que foram os jesuítas que iniciaram a exploração do ouro na região, e que foram ali fundadas várias missões que abrigaram milhares de indígenas em 1625. O próprio Bispo Lacerda que supra aludimos teve acesso aos escritos desse livro tombo, que estava sendo então confeccionado pelo vigário da freguesia à época da visita do referido Bispo; portanto, cerca de cem anos depois do abandono das Minas do Castelo, e duzentos e cinquenta anos depois da suposta fundação dessas fantasiosas Missões do Monte Castelo. E Lacerda aponta em seu diário que o vigário de Itapemirim estava inventando fantasias quando tratava desse passado mais longínquo...

O Livro Tombo de Itapemirim é uma obra importantíssima para a pesquisa da história regional do sul do Estado do Espírito Santo, principalmente quando começa a tratar da instituição da paróquia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim em diante. Mas é preciso ao historiador ter muito critério em sua leitura, para não incorrer em erros e vícios que uma errônea interpretação das fontes pode levar. Sem usar de metodologia científica, sem fazer o devido processo das críticas interna e externa das fontes, sem fazer as necessárias comparações com os documentos primários contemporâneos, o pesquisador acaba por reproduzir os equívocos cometidos pelo vigário que confeccionou o livro. Assim, o citado Livro Tombo é uma fonte documental maravilhosa de informação, mas que precisa ser trabalhado com muito critério pelo historiador.

Em meados do século XIX, quando os posseiros começaram a abrir posses no vale do rio Castelo, para que depois os fazendeiros formassem as futuras ricas fazendas cafeeiras, encontraram as ruínas das edificações dos arraiais e do povoado que formaram as extintas Minas do Castelo. Encontraram várias obras de exploração, inclusive com desvio de ribeirões e córregos, bem como ferramentas e várias árvores frutíferas, restos de pomares então misturados com a vegetação que retomava seu espaço. Sim, a história das Minas do Castelo e de suas "cidades desaparecidas" me fascinam imensamente.

Pesquisa e texto: Gerson Moraes França

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

O Dia que Bieca Derrubou a Ponte

Mimoso em 1908 (foto de Eutychio dÓliver).
No centro, pode-se ver a ponte sobre o rio Muqui, reformada e já com as cabeceiras de alvenaria.

Quando foi aberta a primeira clareira no que futuramente seria a fazenda do Mimoso, em meados dos anos 1840, pelo posseiro José Lopes Diniz e seus trabalhadores, não havia caminho algum até o local, a não ser uma estreita e tortuosa picada desde o porto do Prata, no rio Muqui do Sul. Na primeira metade dos anos 1850 a posse do Mimoso foi adquirida pelo capitão Pedro Ferreira da Silva e foi aberta a fazenda, com grandes derrubadas que, depois de preparadas, dariam origem aos extensos cafezais que fariam a riqueza de seus proprietários. No final nos anos 1850 era aberto o primeiro caminho mais regular, que ligava a fazenda ao porto da Limeira, no rio Itabapoana e, nos anos 1860, era concluída a estrada que ligava o Cachoeiro do Itapemirim aos cachoeiros do Itabapoana, na Limeira, passando pela fazenda do Mimoso, de onde se fazia a passagem pelas duas margens do rio Muqui do Sul. A travessia, nesses tempos, era feita a vau, em precárias pinguelas ou em canoas, mas seu trânsito era muito pequeno.

Essa realidade iria mudar nos anos 1880. Em 1879 foi inaugurada a estação da estrada de ferro em Santo Eduardo, defronte ao rio Itabapoana no norte do Estado do Rio de Janeiro, que ligava esse distrito à cidade de Campos (RJ) e, via reflexa, à capital do Império, de onde a rubiácea era levada aos países compradores. E a partir de então as exportações do café produzido em grande parte do vale do Itabapoana e também nas regiões mais vizinhas seriam escoadas por esse terminal ferroviário. O trânsito das tropas carregadas com os sacos de café deslocou-se para esse ponto escoador, gerando mais movimento na estrada e a necessidade de se construir uma ponte sobre o rio Muqui do Sul, bem na frente da sede da fazenda do Mimoso.

Assim, em 1884, ao custo de 320$000 (trezentos e vinte mil réis) pagos pelos cofres públicos do município de Cachoeiro do Itapemirim, foi construída a primeira ponte sobre o rio Muqui do Sul em frente da fazenda Mimoso. Juntamente com essa obra, foram reformadas as estradas de Cachoeiro ao Mimoso, e também a que da fazenda Mimoso ia ter a Santo Eduardo. Essas estradas foram melhoradas com dinheiro do município e da província, mas também tiveram muitos de seus melhoramentos financiados pelos proprietários dos terrenos por onde passavam, pouco antes de serem executadas as obras públicas. Quanto a ponte, era ela toda feita de madeira, com seus pilares de base e os assoalhos colocados por cima.

Nessa época, o capitão Pedro Ferreira da Silva havia partido a pouco. Faleceu em junho de 1882 e a fazenda Mimoso passou a ser administrada por um de seus filhos, Gabriel Ferreira da Silva, que lá fixou residência na mesma época dos melhoramentos das estradas e da construção da ponte sobre o rio Muqui do Sul. Filho de um rico fazendeiro, Gabriel, apelidado de "Bieca", também era dono ou coproprietário de outras grandes fazendas cafeeiras e já tinha sido até deputado da Assembleia Provincial do Espírito Santo. Segundo os seus detratores, era um homem de difícil trato. E a movimentação dos transeuntes na nova estrada que passavam pela nova ponte, em frente da grande casa sede da fazenda Mimoso, o incomodava bastante. Quando passava algum viandante, já ia o Bieca gritar palavras ofensivas.

Tal estado de coisas o irritou ao ponto dele decidir, depois de alguns anos de aborrecimentos, derribar a ponte e mudar o curso da estrada. Assim, no dia 21 de janeiro de 1890, Bieca desmanchou todo o assoalho da ponte e demoliu parte da estrutura, inutilizando também um trecho da estrada, que substituiu por um caminho contíguo ao seu engenho, em uma região pantanosa. Tal ato do mandão de aldeia, porém, não passou sem reclamações de outros fazendeiros que utilizavam a ponte e a estrada. Poucos anos após, a ponte foi reconstruída; depois, porém, que Bieca foi residir lá para as bandas da fazenda Santa Marta e Santa Rita.

Bieca se meteu em vários casos, antes e depois desse episódio. Portador de uma doença degenerativa que o prendeu a cadeira de rodas, teve certa vez a casa de sua fazenda invadida por trabalhadores da linha ferroviária que estava sendo construída, que custou a vida do seu feitor. Também sofreu, certa feita, um ataque de bombas que explodiram por baixo de sua casa, sem causar maiores danos além do susto e de ter que se arrastar pelo chão. Pior talvez tenha sido quando foi esfaqueado por um molecote, filho de um ex-escravo de sua fazenda, que não aceitou ser mal tratado pelo paxá.

Depois que Bieca deixou a fazenda Mimoso, inicia-se um lento processo que, sob a administração dos irmãos Monteiro da Silva, genros do irmão de Gabriel, daria início ao gérmen do futuro núcleo urbano conhecido hoje como Mimoso do Sul. Importante que se diga: para o capitão Pedro Ferreira da Silva, Mimoso nunca foi mais do que simplesmente a sua fazenda. E, se dependesse do Bieca, filho do finado capitão Pedro, nem gente passaria por ali. Mimoso veio a crescer não graças ao Gabriel Ferreira da Silva, mas APESAR do Bieca e de suas manias.

Gerson Moraes França

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Arraial do(s) Lagarto(s) - São João do Muquy (Muqui)

 

São João do Muqui, c. 1908 (Foto: Eutychio d'Oliver)

Quem observa o grande trajeto da principal via de Muqui, via esta que tem vários nomes em seu curso, percebe algo interessante em relação às quadras de casas: na região central, onde iniciou-se o núcleo urbano, quase não as há. Considerando o trecho onde a urbe muquiense teve seu gérmen, nas atuais avenidas Vieira Machado e Getúlio Vargas (interessantemente, ambas integram essa grande via que corta a cidade, e em cujo eixo o núcleo cresceu: uma é a continuação da outra), só há duas partes com quadras urbanas bem delimitadas, que denotam um pequeno planejamento para a instalação das edificações. Uma delas é o pedaço onde estão as ruas Luís Afonso e do Quartel, junto com a rua que liga com a Coronel Mateus Paiva (retratada embaixo e à direita da foto acima). A outra é a porção da rua dos Operários e Bernardino Monteiro, cuja entrada está em frente à antiga estação ferroviária (e onde ainda hoje notamos os "restos" das antigas vias, na forma de uma viela onde não transitam automóveis). Outro fato que nos chama a atenção em relação a essas quadras, é que ambas formaram ruas que, hoje, não tem saída (embora em seu planejamento inicial, haviam de ter).

E essa conformação urbana tem uma explicação que nos ajuda a entender o processo de ocupação e expansão urbana de nossa cidade em sua zona central, com essas poucas quadras sem continuidade, e com as edificações estendidas sobre boa parte do eixo da via principal.

A formação das primeiras fazendas onde hoje a cidade de Muqui está edificada remonta à década de 1850. É nesse período que são abertas e fundadas as fazendas cafeeiras chamadas de Boa Esperança, Sabiá, Entre Morros e São Francisco, que hoje dão nome à bairros da cidade. É preciso salientar que, obviamente, a abertura dessas fazendas não significou a fundação de um núcleo urbano. Durante muito tempo a região onde hoje está assentada a cidade de Muqui foi apenas uma erma estrada de chão, que ligava Cachoeiro, Vila Nova e São Gabriel ao Itabapoana, passando pelas fazendas e indo dar no Entre Morros e no Mimoso, antes de chegar ao seu destino final no rio Itabapoana. Em 1863, quando foi feita a medição de várias fazendas no alto rio Muqui (do Norte), o terreno onde hoje está o centro da nossa cidade era apenas uma parte da fazenda Boa Esperança, e o morro atrás da atual Igreja era um pasto. Na boca do córrego Boa Esperança no rio Muqui havia plantações de milho e de feijão; ali próximo, aquém do córrego, haviam algumas árvores frutíferas (muitas goiabeiras) e capoeiras. Perto da atual pracinha da Boa Esperança havia um canavial e, é claro, bordeando as encostas dos morros adjacentes haviam as extensas lavouras de café.

Em meados da década de 1870 é que iria brotar a semente do que viria a se tornar a nossa cidade de Muqui. Reza a tradição que em 1876 foi levantada a primeira casinha no primitivo núcleo que tomaria o nome de arraial do Lagarto, ou dos Lagartos (ambas as formas eram usadas). Edificada em terras da fazenda Boa Esperança, com a permissão do proprietário João Jacintho da Silva, que demarcou uma pequena porção para formar um arraial. "Arraial" era um dos termos usados, nessa época, para nominar os nascentes núcleos urbanos; a palavra tem origem na incorporação de expressão árabe, que significava primitivamente rebanho ou ajuntamento, ao português em Portugal ainda na idade média. Esse primeiro núcleo ficava na saída da estrada que ligava a sede da Fazenda Boa Esperança à estrada de rodagem que ligava Cachoeiro ao Itabapoana, anteriormente aqui mencionada. E foi ali que surgiu o nosso arraial do Lagarto: naquelas quadras da atual junção das avenidas Vieira Machado com a Getúlio Vargas, no cruzamento desta com a rua Luís Afonso e pegando também as ruas do Quartel e ligação com a Mateus Paiva. Por volta de 1884, quando foi instalada a sua primeira casa comercial (pelo espanhol Florêncio Ribas), o arraial possuía "apenas, umas quatro casas".

Em meados da década de 1880 os estudos para a construção da estrada de ferro chegaram à região do alto Muqui. Ficou assentado que a futura estação ferroviária seria edificada no terreno aonde atualmente se encontra, e que ficava a pouco mais de trezentos metros do Arraial do(s) Lagarto(s). Era a quarta estação do trajeto (sentido Campos-Cachoeiro); segundo relatório da Estrada de Ferro de Santo Eduardo ao Caxoeiro de Itapemirim, de 1892, "a quarta [estação] (...) fica perto do arraial do Lagarto" e já estava construída nesse ano. Por volta de 1886 o dono da fazenda Boa Esperança resolveu instituir um patrimônio para o nascente arraial, juntamente com o dono da fazenda Entre Morros, e escolhem São João Baptista como orago da futura capela. Ato contínuo, são demarcadas novas quadras em frente ao terreno onde seria levantada a estação ferroviária. Essa é a origem das quadras que ficam do lado oposto da estação, nas atuais ruas dos Operários e Bernardino Monteiro, bem como da viela que ainda hoje resta. E também do patrimônio de São João, juntando a área da futura estação à área já edificada no primitivo arraial dos Lagartos. Daí nasceria o povoado de São João do Muqui, antigo arraial dos Lagartos.

Instituída mais tarde a administração do patrimônio, houve talvez um pequeno lapso ou descuido, agravado pela morte dos dois principais doadores do mesmo patrimônio: o núcleo urbano, ao invés de ser organizado em quadras regulares tanto quanto o terreno permitisse, foi se espalhando pelo eixo da ferrovia e da rodovia. E assim formou-se a atual conformação urbana na zona central da nossa cidade de Muqui.

Gerson Moraes França

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Quando foi que o Barão chegou ao Espírito Santo?


Para quem conhece um pouco a vida do primeiro Barão de Itapemirim, é clarividente que o título do presente post estaria equivocado. Quando Joaquim Marcellino da Silva Lima (1781-1860), futuro Barão de Itapemirim, chegou à então Capitania do Espírito Santo, ele era ainda apenas um jovem rapaz. Receberia a honraria do baronato somente muitos anos depois. Elaborei esse título apenas porque acredito que assim ele fica mais chamativo... ando com essa mania! Rsrs!

Para a historiografia espírito-santense não é um grande mistério o período que o futuro Barão teria chegado ao nosso torrão. De acordo com os autores que trataram do tema, as datas variam entre 1798 e 1802; um lapso temporal relativamente curto. Sabe-se que Joaquim Marcellino, nascido em São Paulo, aqui chegou ainda bem jovem. Até a nossa descoberta, individualizando os pais do Barão e publicando o casamento de ambos, bem como a data de batismo do nosso futuro nobre, acreditava-se que Joaquim teria nascido em 1779; assim, aqui teria chegado quando tinha entre 19 e 23 anos. Já era possível perceber uma pequena discrepância em relação a alguma dessas datas (nascimento ou chegada aqui) porque era corriqueira a informação de que Joaquim Marcellino teria sido nomeado tenente de milícias no Espírito Santo aos 17 ou 18 anos (a idade varia com o autor), portanto, antes de sua presumível chegada.

De posse dos documentos por nós recentemente trazidos a luz, sabemos que os pais do futuro Barão, Joaquim José da Silva e Ana Fernandes Lima, se casaram em São Paulo no dia 27 de fevereiro de 1781. E que Joaquim Marcellino da Silva Lima, filho de ambos, foi batizado também em São Paulo, no dia 12 de dezembro de 1781. Assim, ao considerarmos as presumíveis datas de sua chegada ao Espírito Santo, podemos inferir que aqui fixou-se quando tinha entre 16 e 20 anos. Esses dados, retificados com o assento de seu batismo, batem com as informações de que teria recebido patente de milícia no Espírito Santo aos 17 ou 18 anos de idade.

Para o leitor que chegou até aqui, imagino que esteja se indagando: será que o escritor do presente post encontrou algum documento específico sobre a chegada do Barão de Itapemirim no Espírito Santo? Eu, desde já, lhe informo: não. Mas, sempre com base em documentos, pudemos estreitar um pouco mais as datas presumíveis de quando Joaquim Marcellino para cá veio, bem como a conjuntura em que chegou. Os autores das datas anteriores não costumavam citar as fontes que beberam, nem informavam algo além das simples datações.

Primeiramente, podemos informar a data máxima que para o Espírito Santo teria vindo. Encontramos, meses atrás, a confirmação régia e o registro da Carta Patente de Joaquim Marcellino entre os documentos do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. O Rei Dom João, após o Aviso de S.A.R. de 20 de setembro de 1809, confirmou sua patente de Tenente da 8ª Companhia do Regimento de Milícias em 22 de outubro de 1810, no Rio de Janeiro. Em 13 de outubro de 1811 essa patente foi registrada em Vitória. No texto dessa confirmação acha-se a informação que nos interessa pra fixar a data máxima de seu estabelecimento nas plagas espírito-santenses: "(...) Joaquim Marcellino da Silva Lima, se achar provido por Dom Fernando José Portugal, sendo Governador e Capitão General da Capitania da Bahia, no posto de Tenente da Oitava Companhia do Regimento de Milícias (...)". Fernando José de Portugal e Castro, que depois seria Vice Rei do Brasil e Conde e Marquês de Aguiar, foi governador da Bahia de 1788 até setembro de 1801. Nessa época, a Capitania do Espírito Santo estava subordinada ao governo na Bahia em matéria militar. Assim, considerando que Dom Fernando proveu Joaquim Marcellino com a patente de Tenente na milícia espírito-santense, esse provimento não poderia ter sido feito depois de setembro de 1801. Não encontrei ainda o provimento original, mas com essa informação da confirmação elimina-se o ano de 1802 para sua chegada. E também chancelamos o fato de ter o futuro Barão recebido sua provisão de tenente de milícia antes de ter completado os 20 anos de idade.

E, agora, vamos fixar a data mínima para a chegada do Barão. Como publiquei em minha rede social Facebook há pouco mais de um ano atrás, o pai do Barão, Joaquim José da Silva, era natural de Campos dos Goitacazes, filho de Francisco da Silva Correa e de Maria Luciana de Jesus. Os avós paternos do pai do futuro Barão eram naturais da Capitania do Espírito Santo. A mãe de Joaquim Marcellino, Ana Fernandes Lima, era paulista, filha de Domingos Fernandes Lima e de Cláudia Brígida de Jesus. Joaquim José casou-se com Ana Fernandes, em São Paulo, poucos meses após estabelecer-se naquela Capitania. E pouco tempo após o casamento e o nascimento do filho, o casal estabeleceu-se no Rio de Janeiro, onde Joaquim José foi comerciante; esteve depois em Lisboa por pouco tempo, não sei se só ou acompanhado da família, talvez em função de sua atividade de negociante. Depois que retornou de Portugal, estabeleceu-se em sua cidade natal, Campos dos Goitacazes, onde exerceu a função de Tabelião. E ali ficaria até a sua mudança para o Espírito Santo, na segunda metade da década de 1790.

E por que Joaquim José da Silva mudou-se para o Espírito Santo? Em 1791 estourou no atual Haiti, então colônia francesa de São Domingos, uma revolta de escravos que hoje é chamada de Revolução Haitiana. Essa revolta desorganizou a produção de açúcar do então maior produtor desse artigo; o preço do açúcar, nos anos seguintes, disparou. Muita gente aproveitou a oportunidade e até as autoridades públicas no Brasil incentivaram o aumento da produção e o estabelecimento de novos empreendimentos açucareiros. Houve uma enorme pressão para se explorar novas terras. Foi a partir dessa época que as plantações de cana de açúcar subiram o rio Itapemirim e que o número de Engenhos na região aumentou substancialmente em fins do século XVIII e comecinho do século XIX.

Em Benevente, atual Anchieta (ES), não havia nenhum Engenho até essa época. Formada a partir de uma Missão Jesuíta, a maioria de sua população era de indígenas étnicos, já bem aculturados e que eram, também, súditos do Rei. A Vila tinha sua Câmara e autoridades, e parte de suas terras eram repartidas pelos moradores em lavouras basicamente de subsistência. A pesca também era uma importante atividade, bem como a extração de madeira nas florestas ao redor. Mas, com a pressão para se abrirem novas plantações de cana de açúcar para alimentar novos Engenhos, as terras começaram a ser ocupadas por "brancos".  Alguns, no início, com licença da Câmara; outros, depois, comprando posses dos locais. Esse último foi o caso do pai do futuro Barão.

Em janeiro de 1797, já tendo perdido o cargo de Tabelião em Campos, Joaquim José comprou no lugar do Iriri, em Benevente, uma pequena porção de terras, com um pequeno sítio e umas tênues benfeitorias, de um mulato casado com uma índia, chamado Francisco Xavier. Isso sem licença da Câmara. E logo depois se introduziu na gleba, apossando-se das terras circundantes e inquietando os índios seus vizinhos, "trabalhando e cultivando as terras dos seus vizinhos e nacionais da terra que há tanto tempo estão ali estabelecidos" e "querendo apoderar-se das terras dos vizinhos índios (...) antigos possuidores". Os moradores locais peticionaram reclamando junto as mais altas autoridades mas, apesar de uma reprimenda do Ouvidor aos novos ocupantes, o processo foi irrefreável. Em poucos anos, grandes fazendas de cana de açúcar abasteceriam vários Engenhos na região. Em pouquíssimo tempo Joaquim José formou suas plantações e bem brevemente ergueu seu Engenho. Esse foi o gérmen da formação da Fazenda das Três Barras, que depois pertenceria ao nosso futuro Barão de Itapemirim a partir de 1807.

Assim, contada essa historinha supra, temos documentos que informam a data da chegada do pai de Joaquim Marcellino no Espírito Santo, mais propriamente em Benevente. Janeiro de 1797. Teria vindo o futuro Barão junto com seu pai? Teria permanecido um pouco mais em Campos, e chegado depois entre 1798 e 1801? Se aqui se estabeleceu em 1797, teria chegado com 16 anos de idade. Rezam as crônicas que recebeu a patente de Tenente com 17 ou 18 anos. Assim, dando crédito a essas fontes, sua chegada em nossas terras espírito-santenses parece que deu-se entre 1797 e 1799.

Dez anos depois de iniciar a formação de sua fazenda e engenho, Joaquim José da Silva e sua mulher venderam sua "fazenda com fábrica de açúcar no lugar denominado as Três Barras" para seu próprio filho Joaquim Marcellino da Silva Lima, pela quantia de nove contos e seiscentos mil réis, com pagamento à vista de um conto e quatrocentos mil réis e sendo o restante pago em prestações pelos próximos anos. Pagamento bem facilitado. Ainda não faço ideia do porquê que o pai do Barão vendeu a sua fazenda para o próprio filho. Antecipação da herança? Meio de legitimar as terras? Joaquim José da Silva voltou para Campos, onde faleceu em 1812. A referida fazenda se achava devidamente medida e demarcada, embora não tivesse confirmação. Junto com a fazenda também estavam incluídos na compra 12 escravos e 50 bois e 4 vacas, além de outras coisas mais e um sítio no lugar denominado Jagatiba. Em 1819, Joaquim Marcellino recebeu como Sesmaria as terras que estavam sob sua posse, e pouco mais tarde as confirmou.

E agora, ao terminar, o leitor pode se perguntar: "Tá bem, mas e daí? O que mudou em relação ao que se conhecia antes?" "Não muita coisa, prezado leitor", respondo eu. Antes, presumia-se que Joaquim Marcellino teria vindo para o Espírito Santo em 1798 ou 1802, ou entre esses anos. Com base nos que acima expus, eu não presumo, mas afirmo que teria chegado entre 1797 e 1801. Antes, ninguém citou a fonte onde bebeu: hoje, tenho as fontes comigo. Historiador não pode "chutar", mas se fosse para "chutar" uma data eu "chutaria" o ano de 1797. Feeling. E o que importa saber quando foi que o Barão de Itapemirim chegou ao nosso torrão? Qual a importância disso? Não muita. Mas, como pesquisador e historiador que sou, gosto e me atento muito a esses detalhes. Posso apenas dizer que, de importante para a nossa história, temos o fato de que a família de nosso futuro Barão residia em Campos antes de vir para o Espírito Santo, na esteira de vários campistas que fizeram o mesmo caminho para abrir lavouras de cana de açúcar e engenhos no sul do nosso atual Estado. Praticamente todo o know how e os capitais que foram investidos para fundar os engenhos de açúcar em Itapemirim e arredores, no século XVIII e início do XIX, foi campista. E, também, acabamos por aprender um pouco mais sobre a colonização de nosso solo, bem como sobre os problemas que os índios étnicos sofreram no Espírito Santo, quando foram sendo forçados a deixar ou vender de suas terras.

Pesquisa e texto:

Gerson Moraes França

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

HÁ CINCO ANOS

Meu avatar no Facebook

Há pouco mais de cinco anos que não posto no meu BLOG.

A última postagem, em 13 de dezembro de 2017, foi referente ao cinquentenário do título Sulino de 1967 vencido pelo Castelo FC.

Não que nesse período eu tenha deixado de pesquisar e de produzir textos de história; fiz muitas e muitas pesquisas, e publiquei muito conteúdo nas minhas redes sociais, em especial no Facebook. Participei de muitas lives e de alguns documentários. Continuo pesquisando e escrevendo.

Mas nesse período muita coisa mudou em minha vida. Por isso, acredito eu, acabei indo para a praticidade das redes sociais, e deixei de lado as publicações no presente BLOG. Coisas de minha vida pessoal e profissional. Iniciei um relacionamento com a mulher que hoje sou casado, e juntos temos hoje uma filhinha que está prestes a completar dois aninhos. Concluí meu curso de História, iniciado na UFES e terminado na São Camilo, devido a minha mudança para a cidade de Muqui, no interior do sul do Estado do Espírito Santo. Perdi meu pai, falecido há dois anos e meio atrás. Parei de fumar. Comecei a lecionar a disciplina de história em uma Escola estadual de tempo integral, aqui em Muqui.

Tentarei aqui colocar um pouco do que produzi nas minhas redes sociais, pois acredito que esse BLOG é uma excelente forma de divulgação de material histórico, bem como uma fonte para pesquisas. Espero conseguir.

Um grande abraço a todos, do

Gerson Moraes França


quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Castelo FC - Cinquentenário do Sulino

A temporada do futebol sulino, tanto profissional, quanto amador, já terminou nesse ano de 2017. Os resultados foram positivos, no geral. O Atlético Itapemirim, único clube sulino a participar da primeira divisão estadual, conquistou os dois principais títulos profissionais do Estado: o campeonato capixaba e a Copa Espírito Santo. Na segunda divisão, onde três clubes sulinos disputaram o acesso para a série A, o Rio Branco de Venda Nova logrou êxito e conquistou uma vaga, embora tenha perdido o título para o Serra. Os outros dois clubes que disputaram a série B, Estrela e Castelo, foram semifinalistas da referida competição. Nas competições regionais sulinas amadoras, vimos o Prosperidade de Vargem Alta sagrar-se bi-campeão do campeonato sulino e, no último final de semana, o Cosmos de Viana conquistar o título de campeão da Copa Sul.

Mas o nosso foco, na presente matéria, é o Castelo Futebol Clube. Fora da série A desde 2015, e desde 2011 disputando competições profissionais no Estado, por muito pouco o Castelo não conquistou o acesso para a primeira divisão.

O ano de 2017 está chegando ao final, e acabou passando em branco uma importante efeméride do Castelo FC: a conquista de seu primeiro campeonato Sulino, que foi o primeiro título regional e profissional do clube castelense. Esse feito, conquistado em 1967, completou cinquenta anos no presente ano. Assim, comemoramos, nesse ano, seu cinquentenário.


UM POUCO DE HISTÓRIA
CASTELO CAMPEÃO DE 1967

Quando juntamos futebol e suas efemérides, forçosamente entramos no campo da história. 1967 foi um ano especial para o futebol sulino espírito-santense. Era o ano da comemoração do centenário da emancipação política do município de Cachoeiro de Itapemirim, e o presidente da Liga Desportiva de Cachoeiro de Itapemirim- LDCI, Paulo Fonseca, organizou um campeonato que foi muito elogiado pelos jogadores, pelos clubes, e pela imprensa contemporânea. Nessa época, o Campeonato Sulino era uma competição profissional, e os melhores colocados do certame garantiam vaga na disputa do campeonato estadual. O Estrela do Norte, de Cachoeiro, tri-campeão sulino (1964/65/66), buscava um inédito tetra-campeonato da competição. Criado em 1930, desde 1959 o campeonato sulino era organizado pela LDCI, e desde 1961 era uma competição profissional.

Ao chegar no final, o certame sulino de 1967 tinha quatro clubes disputando o título: Castelo, Cachoeiro FC, Muqui AC e Operário FC, de Muqui. Com uma bela vitória sobre o Estrela, o Castelo conquistou o título por antecipação. E o Muqui, após vencer o Cachoeiro, garantiu o vice-campeonato. Assim, Castelo e Muqui garantiram as duas vagas sulinas para a disputa do campeonato estadual de 1967; nessa competição, que foi a primeira ocasião que o Castelo disputou o campeonato estadual nos novos moldes pós-1961, o clube castelense não fez uma boa campanha: terminou na sexta colocação, à frente apenas do Vila Nova de Colatina. O título foi conquistado pela Desportiva Ferroviária, de Vitória.


O CASTELO ANTES DE 1967

O título sulino de 1967 foi a mais importante conquista do Castelo FC até então. O clube nunca havia conquistado o Sulino, nem na época amadora. Mas o Castelo já era um importante e tradicional clube de futebol do Espírito Santo.

Seu primeiro título foi conquistado quando o clube ainda nem possuía o nome atual. Fundado em 1928, o SC Alfaiate foi o precursor do Castelo FC. Quando foi criado, o Alfaiate tinha como rival o Comercial SC, clube fundado em princípios de 1927. Com a extinção do antigo SC Castello (fundado em 1916), o Comercial era o mais poderoso time castelense quando da fundação do Alfaiate. Em 1929, a nova municipalidade (o município de Castelo foi emancipado em 1928, e instalado em 1929) resolveu promover a disputa da primeira copa local, a Taça Castello. A copa seria realizada em um sistema muito comum à época, a "melhor de 4 pontos". Assim, o clube que primeiro atingisse quatro pontos, conquistava a Taça Castello (lembrando que, então, a vitória valia dois pontos).

Os jogos foram realizados em novembro e dezembro de 1929. Nos dois primeiros jogos, foi uma vitória para cada clube. A partida decisiva foi disputada em 15 de dezembro de 1929, no campo do Comercial. O jogo de desempate entre ambos foi atribulado, com muitas faltas violentas e com invasão de campo. Mas o Alfaiate venceu o Comercial por 3 x 0, e conquistou seu primeiro título: a Taça Castello, sendo portanto o primeiro campeão municipal castelense. A animação foi tão grande com a posse da Taça Castello, que o Alfaiate mudou até o nome do clube: em 01º de janeiro de 1930, tornou-se o Castello Foot-ball Club.

Na década de 1930, o Castelo FC estruturou-se e sedimentou-se como clube de futebol local. Em 1931, seria fundado o Atlético Clube, que completaria a tríade de agremiações futebolísticas castelenses durante esse período, junto com o Castelo e o Comercial. Mas a disputa de copas municipais, após a "suruba" de 1929, não ocorreria mais por longos anos. O clube disputava jogos amistosos, e ao final de 1932 aprovou os seus estatutos. Desde 1930, era disputado no sul do Estado o campeonato sulino, à época organizado pela atual Federação de Futebol do Espírito Santo - FES, que naqueles tempos tinha o nome de Liga Sportiva Espírito-santense - LSES. E o Castelo organizou-se para disputar essa importante competição regional.

Filiado à LSES, o Castelo murou e inaugurou seu ground oficial em fevereiro de 1934, em cerimônia com a presença do Bispo Dom Luiz Scortegagna, que benzeu o campo. Nesse mesmo ano, disputou pela primeira vez o Campeonato Sulino, então organizado pela Associação Sulina de Esportes Atheticos - ASEA, órgão delegado pela LSES para organizar os campeonatos do Sul do Estado. O Castelo disputaria este campeonato até sua extinção em 1938, mas não conquistaria nenhum título. Veria, porém, o rival Comercial conquistar o certame de 1936, e ser vice-campeão do Estado.

Castello Foot-ball Club, em 1934, quando disputou seu primeiro campeonato sulino

O campeonato sulino só retornaria em 1948, organizado diretamente pela federação estadual. Nesses dez anos sem competições regionais oficiais no sul do Estado, foram disputados alguns campeonatos municipais, organizados pelas ligas locais. O Castelo FC conquistou o campeonato castelense de 1948, e credenciou-se para disputar o chamado "Torneio dos Campeões do Sul do Estado" desse mesmo ano, nome dado ao campeonato do sul do Estado na ocasião. E essa foi a primeira vez que o Castelo quase conquistou o campeonato sulino.

O rival Comercial, que também havia sido credenciado para participar da competição, foi eliminado pelo Muniz Freire que, por sua vez, disputou as semi-finais com o Castelo. Em marco de 1949 o Castelo venceu, em seu gramado, o Muniz Freire por 3 x 1, conquistando a vaga nas finais do Sulino contra o Cachoeiro FC, campeão da cidade de Cachoeiro do Itapemirim. Os jogos decisivos do campeonato sulino de 1948 foram disputados em março e abril de 1949. No primeiro jogo, o Cachoeiro venceu o Castelo, em Arariguaba (campo do Cachoeiro), por 4 x 2. No segundo jogo, em Castelo, o clube local venceu por 2 x 1. E na "negra", disputada em Arariguaba, o Cachoeiro venceu o Castelo por 3 x 2 e conquistou o título. O Cachoeiro FC, nesse mesmo ano, sagra-se-ia Campeão do Estado da temporada 1948, sendo o primeiro clube do interior do Espírito Santo a conquistar um título estadual. Restou ao Castelo contentar-se com seu primeiro vice-campeonato sulino.

Castelo FC, no final da década de 1940, quando conquistaria seu primeiro vice-campeonato sulino

Nos anos subsequentes, o Castelo continuou disputando os campeonatos do sul do Estado, mas sem conquistar o título. E, pior, viu o seu rival Comercial conquistar mais um Sulino em 1949 (sendo vice-campeão estadual), e ser finalista em 1950 conquistando o "campeonato da liga sulina", mas perdendo o título para o Cachoeiro, para o alívio da torcida do Castelo FC. Em 1951 o Castelo chegou às semifinais do sulino, mas foi eliminado pelo Comercial de Alegre, que seria o campeão daquele ano.

À despeito dos azares no que toca à conquista de títulos, o Castelo FC iniciou na década de 1950 um importante empreendimento que faria do clube um dos primeiros a possuir um grande estádio (considerando a época) no sul do Estado. Em 1953, seria dado início à construção do Estádio Emílio Nemer, que até hoje é utilizado pelo Castelo FC em suas partidas em casa. O estádio foi concluído em 1956, e sua inauguração foi no dia 10 de junho deste mesmo ano, em um amistoso com o Rio Branco de Vitória. Antes disso, em 1954, o Castelo havia se filiado à Liga de Cachoeiro e disputava o campeonato local, que credenciava seu vencedor diretamente na disputa das finais do Campeonato do Sul do Estado até 1956. Mas os títulos ainda não vinham.

Em 1961 foi organizado o primeiro campeonato sulino da categoria profissional "não amador", e o Castelo FC se faria presente no certame. Em 1963, com a proibição do "não amadorismo" pela CBD, o Castelo profissionalizou-se para continuar participando dos campeonatos sulinos, então organizados, conforme dissemos mais acima, pela LDCI. Até que, enfim, veio o seu festejado primeiro título em 1967.

Castelo Futebol Clube, em fins de 1960, quando disputaria o primeiro sulino profissional
Fonte: jornal Folha Capixaba, nº 1264, 31/12/1960, p. 8

O CASTELO DEPOIS DE 1967

A presente matéria trata da efeméride do cinquentenário do título sulino de 1967, conquistado pelo Castelo FC. Mas, como também tratamos um pouco sobre a história do Castelo até essa data, importante também tratar um pouco sobre o Castelo após a conquista desse seu primeiro título sulino e profissional.

O campeonato sulino profissional foi disputado, sem interrupções, até 1969. Em 1970, devido à série crise econômica vivida no sul do Espírito Santo, bem como com a mudança nas regras de participação do campeonato estadual, o sulino profissional não foi disputado; retornou em 1971, como um último suspiro. De 1972 em diante, o Campeonato Sulino nunca mais seria uma competição profissional. Mas continuava sendo o principal certame regional do sul do Estado. Até porque, desse ano em diante, todos os clubes de futebol sulinos deixaram o profissionalismo e passaram a disputar competições amadoras, tal como era antes de 1961; inclusive os clubes cachoeirenses. Somente em 1977 é que um clube do sul do Estado retornaria ao profissionalismo, para disputar o campeonato estadual que, então, só possuía a primeira divisão.

Nessa época, houve uma desorganização no que toca à disputa dos campeonatos sulinos. Até então, como dissemos, era a LDCI quem organizava os certames. Após o retorno ao amadorismo, o sulino foi organizado também por outras ligas, e houve anos que tivemos a realização de dois sulinos ao mesmo tempo, organizados por ligas diferentes. Foi somente em 1978 que a LDCI conseguiu retomar o controle da organização do Sulino, doravante uma competição amadora.

Mas foquemos no Castelo FC. Porque essa década de "crise" e um tanto "desorganizada" foi uma época de ouro para o clube, quando falamos de títulos. Em 1973, o Castelo conquistou seu segundo título sulino, pela LIDEG. E depois conquistou um tri-campeonato sulino (1975/76/77), pela LDCI e pela LIDEG, faturando seu quinto campeonato sulino e fazendo do Castelo um dos maiores campeões do certame. Esses bons resultados, em uma época que todos os clubes do sul do Estado disputavam competições amadoras, estimulou o Castelo a retornar ao profissionalismo. Assim, em 1978 o Castelo FC deixou as competições amadores e retornou às competições profissionais. Nessa época, no sul do Estado, apenas o Estrela do Norte, de Cachoeiro (em 1977) e o Ordem e Progresso, de Bom Jesus do Norte (1978), haviam retornado ao profissionalismo.

Castelo FC na década de 1970, quando foi quatro vezes campeão sulino e
campeão do Torneio Incentivo

E em 1978 veio o segundo título profissional. Numa emocionante final disputada com o Estrela, o Castelo sagrou-se campeão do Torneio Incentivo, competição regular então organizada pela federação de futebol com a participação de todos os clubes profissionais do Estado, exceto aqueles que disputavam o campeonato brasileiro (na ocasião, o Rio Branco e a Desportiva). Era quase que uma Copa Espírito Santo, atualmente disputada. Disputou, desde então, o campeonato estadual e o torneio incentivo até 1981.

Castelo Futebol Clube, campeão sulino de 1982, quando conquistou seu sexto título do certame

Em 1982, porém, o Castelo deixaria novamente o profissionalismo, retornando ao amadorismo em grande estilo: sagrou-se campão sulino desse ano, pela LDCI. E repetiu o feito nos dois anos posteriores, sagrando-se tri-campeão sulino em 1982/83/84. Em 1987 retornou às disputas profissionais, agora participando do campeonato estadual da segunda divisão, instituído em finais da década de 1980 para permitir o acesso dos clubes à primeira divisão. Em 1988, conquistou seu terceiro título profissional de importância: o campeonato estadual da segunda divisão, garantindo o acesso à primeira divisão no ano seguinte. Disputou a primeira divisão do estadual de 1989 a 1995, retornando depois ao amadorismo.

Castelo Futebol Clube, campeão da segunda divisão estadual em 1988

Em 2001 e 2002, o Castelo disputou novamente o campeonato profissional da segunda divisão, mas não conseguiu o acesso. E, como de outras vezes, voltou a disputar competições amadoras. Em 2004 a LDCI deixou de organizar os campeonatos sulinos, e a Liga Desportiva Castelense tomou a frente na organização do certame. E o Castelo conquistaria mais um campeonato sulino, pela LDC, em 2005. Sua última disputa exclusiva do campeonato sulino, antes de retornar ao profissionalismo, foi em 2011, quando o Castelo chegou à final mas foi derrotado pelo Independente, de Cachoeiro, que conquistou o título pela LDC.

E nesse mesmo ano (2011) o Castelo, novamente, retorna ao profissionalismo e disputa a segunda divisão do estadual. Conquista o acesso à primeira divisão em 2013, quando foi vice-campeão da série B, perdendo a final para o Colatina. Disputou a séria A em 2014 e 2015, sendo rebaixado nessa última temporada. Disputou a série B em 2016 e 2017. E, interessantemente, o Castelo manteve equipe disputando alguns campeonatos sulinos amadores: o clube disputou os sulinos organizados pela LDPK de 2015 e 2016, ano de sua última participação.

Para o ano que vem, o Castelo já confirmou que disputará o campeonato estadual da série B, novamente, lutando pelo acesso à elite do futebol capixaba. 2018 será, também, o cinquentenário da participação do Castelo FC em campeonatos estaduais, pois a temporada estadual de 1967 foi disputada em 1968.

E o Castelo Futebol Clube, antigo Alfaiate, primeiro campeão municipal de Castelo em 1929, sete vezes campeão sulino (1967, 1973, 1975/76/77, 1982, 2005), campeão do Torneio Incentivo de 1978 e campeão da segunda divisão em 1988, terá a chance de retornar à série A do campeonato estadual e, quicá, um dia conquistar o único título regional importante que ainda lhe resta vencer: o campeonato estadual da primeira divisão.


Pesquisa e texto: Gerson Moraes França

Fontes das fotografias não citadas:
Blog Memória do Futebol Capixaba
https://memoriafutebolcapixaba.blogspot.com.br