quarta-feira, 9 de julho de 2014

A Construção do Mito da Origem Antiga



Vez por outra esbarro em obras, normalmente gerais, tratando da história local de um Município e que buscam, também de forma geral e algumas vezes superficial, a "origem histórica" da localidade. É o fetiche da origem, que está firmemente arraigada em nossa concepção linear de historia. E nas considerações sobre essa origem, encontramos muitas vezes teses sem o mínimo respaldo documental. Comumente isso ocorre quando uma pessoa resolve "positivar a tradição", ou até por simples presunção carente de fundamento. E daí ocorre uma "bola de neve", com os escritores posteriores reproduzindo os que o precederam. E, de tanto repetir-se a mesma equivocada história, cria-se uma veracidade fictícia, respalda por "antigos escritores" que iniciaram o "erro". Não busca-se mais revolver o que deu "origem àquela história da origem", pois ela se torna uma verdade sedimentada e inconteste. E, algumas vezes, mexer com isso até se torna uma espécie de "sacrilégio".

Abro um parênteses para aglutinar dois fatores que correm, quase sempre, "colados" com esse fetiche da origem. É a questão da "antiguidade" e da "nobreza". Busca-se, o máximo possível, fazer a "ponte" entre a origem e a antiguidade; quanto mais antigo, mais "legal". Idem em relação a nobreza: quanto mais nobre (e, aqui, considero a palavra "nobre" de modo extensivo, podendo ser uma personalidade "famosa", religiosa, civil, ou até mesmo um "povo ordeiro"), mais "bacana". Tenta-se colar, ao máximo, a origem com um, ou com ambos fatores.

Vou citar alguns exemplos, sem citar os autores e as obras pois, nesse "meio intelectual", costuma-se muito facilmente ferirem-se os egos. E, como esse pretenso "artigo" não é acadêmico, não há porque especificar as obras. Todos os Municípios citados são do Estado do Espírito Santo, pois posso falar com mais propriedade.


Um exemplo é a história do Município de São Mateus. Vá até a Wikipedia e constate: São Mateus é, de acordo com o site, "o segundo município mais antigo" do Espírito Santo. Fundamenta-se essa tese em uma obra da História Geral do município que, por sua vez, reproduziu uma presunção que firmou-se durante a década de 1930 e 1940. Essa presunção não pauta-se em nenhum documento primário contemporâneo, nem em algum documento "secundário" com data menos distante.

Essa presunção é a seguinte: por volta de 1544, os colonos que estavam estabelecidos na atual baía de Vitória debandaram, e refugiaram-se em Capitanias vizinhas, ante o ataque dos silvícolas. Daí um pequeno grupo em fuga teria se estabelecido na região onde mais tarde surgiria São Mateus: "(...) Alguns desses colonos poderiam ter rumado para o norte, em direção ao rio São Mateus." Dessa presunção, sem base documental alguma, ter-se-ia construído o "mito da origem antiga" de São Mateus, conferindo-lhe a antiguidade tão "regozijantemente" desejada. E dava-se à essa origem antiga uma continuidade comunitário-social que seguiria, linearmente, até o presente.

Nada mais equivocado. Primeiro, por uma questão de poucos anos: em 1545 os documentos primários demonstram que a Capitania do Espírito Santo estava "indo de vento em popa". As guerras mais cruentas entre o gentio e os colonos, que quase colocaram a Capitania a perder, teriam ocorrido, segundo se infere dos documentos contemporâneos e de alguns pouco posteriores, em algum momento entre os anos de 1546 e 1549. Mas, até aí, tudo bem. Bastaria "esticar" a data, e mudá-la de 1544 para, por exemplo, 1547. Continuaria a origem tão antiga quanto, e com base naqueles colonos que fugiram da baía de Vitória.

O "problema" surge, porém, com o silêncio posterior da falta de documentos e, mais significativo, com o silêncio posterior dos documentos existentes. Em 1558, por exemplo, em uma expedição que foi razoavelmente documentada para a época, os portugueses estiveram no Rio Cricaré, que é o atual São Mateus, e pelejaram com os índios que habitavam o local. Saíram-se derrotados os portugueses que, ante ao grande número de silvícolas, tiveram que deixar o local. Não há nenhum relato documental de que havia algum grupo de colonos por ali em 1558. E, caso houvesse, acredito ser muito difícil que não tivessem sido citados. De todo modo, considerando-se que havia colonos por ali nessa época, é muitíssimo improvável que tenham permanecido após a derrota da expedição portuguesa.

Assim, mesmo que houvesse por ali algum grupo de colonos refugiados, eles certamente não teriam permanecido. É preciso '"ler o silêncio"; e o silêncio posterior, até que por ali passasse o Padre Anchieta, é, em minha opinião, bem revelador. Posso ainda citar outros fatores que desabonariam uma suposta presença de portugueses estabelecidos no São Mateus nas décadas de 1540 e 1550, mas aí vou estender demais o presente artigo.

Mais tarde, e aí sim, temos um relato mais confiável de presença de portugueses no Cricaré. Foi quando o Padre José de Anchieta esteve por ali e celebrou uma missa para uns náufragos que ali estavam, além de "criar" um aldeamento com os índios da região. Esse fato teria ocorrido em 1566, embora essa data ainda seja um pouco controversa. De todo modo, nem assim poderíamos dizer que, a partir daquele momento, colonos portugueses ter-se-iam estabelecido no Cricaré. Primeiro, porque eles eram náufragos, e nada nos faz presumir que se fixaram na região. Segundo, porque em uma viagem documentada e datada de 1583, do Padre Fernão Cardim, o mesmo cita a aldeia de São Mateus mas informa que seus habitantes são todos índios. Ele não encontra portugueses estabelecidos por ali. Destarte, com ou sem colonos portugueses, nessa data há prova documental da existência da aldeia de São Mateus. E, aí sim, poderíamos adotar a tese de continuidade comunitário-social que, incrementada mais tarde por levas de colonos que se estabeleceram em São Mateus no século XVIII, conferiria o liame que une o passado ao presente.


Outro exemplo é a história do Município de Mimoso do Sul. Algumas poucas obras locais, também gerais, debruçaram-se sobre o tema da "origem". E, novamente, o fetiche da origem se intercala com as pretensões fatoriais da antiguidade e da nobreza. Assim como em São Mateus, deseja-se distender a origem para o "máximo de passado" possível, e conferir um "espírito de nobreza" com a participação dos jesuítas. Diz-se que, em 1581, Anchieta teria fundado a Capela de Nossa Senhora das Neves, no atual Município de Presidente Kennedy; e que em 1587 teria subido o atual rio Itabapoana e fundado um aldeamento para os índios da região, que foi chamado de "6ª Aldeia de Camapuana". Este suposto aldeamento ficaria na região das primeiras cachoeiras do rio, em cuja margem norte está situado hoje o Município de Mimoso do Sul.

Tratei desse tema anos atrás, ainda imbuído de certa "contaminação intelectual" pela história que aprendi desde novo. Quem quiser ler, basta clicar no link abaixo:

O desejo era conferir antiguidade e nobreza à origem, que seguiria, assim como em São Mateus, por uma "evolução linear" comunitário-social que descambaria na criação do Município de São Pedro do Itabapoana, cuja sede mais tarde foi transferida para a atual Mimoso do Sul. Nada, também, mais equivocado.

Primeiro, porque hoje é melhor conhecida a fundação de Nossa Senhora das Neves e da Fazenda da Muribeca, que pertenceu aos jesuítas. A tese da origem quinhentista de Neves e Muribeca foi anterior às pesquisas feitas por Serafim Leite e por Alberto Lamego; e ambos são bem concisos e seus fundamentos são, em primeira análise, incontestes, pois são fulcrados com ampla base documental primária. Neves e Muribeca tiveram início nas décadas de 1620 ou 1630. Bem depois, portanto, da suposta "origem" quinhentista. Esse "equívoco" foi "construído" no final do século XIX, por César Augusto Marques, em seu Dicionário Histórico sobre o Espírito Santo, talvez fundamentado em alguma tradição oral local; a transmutação do nome do Padre André de Almeida, para "Padre Almada", é um indicativo disso, embora não conclusivo.

Segundo, porque não há registro documental algum, contemporâneo ou pouco posterior, da existência da tal "6ª Aldeia de Camapuana", e nem mesmo no século XVII e XVIII, quando os Jesuítas administravam a grande Fazenda da Muribeca. Essa suposta aldeia, ao que parece, nunca existiu. Eu possuo uma tese sobre a "construção" desse "mito de origem", mas não posso provar, ainda, com certeza. Mas, imagino, foi construída com base em uma das Cartas Ânuas que os jesuítas enviavam para seus superiores. Há uma delas, datada da década de 1580, que dizia existirem dez aldeias de índios no Espírito Santo, duas delas sob a administração direta dos padres. Das oito restantes, quatro estavam ao sul daquelas duas citadas, e quatro estavam ao norte. Tudo indica, por incrível que pareça, que o "construtor" da "6ª Aldeia de Camapuana" simplesmente fez uma conta: duas aldeias de padres, mais quatro ao sul, igual à seis; e como o Itabapoana, na época chamado de Camapuana, é o último rio ao sul, deveria abrigar a última dessas aldeias. Portanto, simples: na falta de um nome, cria-se um. E veio à luz a suposta "6ª Aldeia de Camapuana".

Claro que a tese acima exposta ainda carece de fundamento mais sólido. Destarte, independente de ter existido, ou não, a suposta "6ª Aldeia de Camapuana", há prova documental de que Neves e Muribeca são do século XVII; não sendo, portanto, quinhentistas, como quiseram alguns. Bem improvável que uma aldeia encravada no curso médio do Itabapoana existisse antes de Neves e Muribeca. E, em minha opinião, considerando a grande minúcia dos jesuítas ao escreverem seus relatórios e cartas, o absoluto silêncio em relação à uma aldeia de índios no Itabapoana é bem revelador. Simplesmente não há documento primário algum, jesuíta ou não, que cite a tal aldeia.


Por fim, trataremos agora da história do Município de Castelo. No início do século XX surgiu uma "teoria da conspiração" com base em literatura "jesuitofóbica", que entendia que os jesuítas eram grandes mineradores que queriam monopolizar toda a extração aurífera da região do Caparaó e das conhecidas Minas do Castelo. Essa teoria "refinou-se" com o tempo, deixando para trás a jesuitofobia, mas mantendo a tese. Assim, segundo essas obras, inclusive segundo uma obra bem recente, as Minas do Castelo teriam sido exploradas clandestinamente pelos jesuítas já no século XVI. Desse modo, vislumbra-se, novamente, o "fetiche da origem" baseada em maior antiguidade (século XVI) e em nobreza (jesuítas).

Abrindo um adendo, foi por coincidência que os três exemplos que resolvi escrever possuem os jesuítas como parte do "fator nobreza". Mas, no caso de Castelo, esse fator é fictício, como irei demonstrar. Em São Mateus e em Mimoso do Sul buscou-se dar maior elasticidade à antiguidade; mas, de fato, foram os jesuítas que "fundaram" a aldeia de São Mateus e a Fazenda da Muribeca. Em Castelo, porém, para além de intentar-se conferir maior antiguidade, intricou-se a origem com uma suposta "teoria da conspiração" de "jesuítas clandestinos".

Segundo essa tese de origem quinhentista jesuítica da história de Castelo, os jesuítas, já em 1551, teriam clandestinamente iniciado a prospecção de ouro na região. Assim, no mesmo ano em que se estabeleceram em território capixaba, e antes mesmo de fundarem o aldeamento de Reriritiba (atual cidade de Anchieta), os jesuítas teriam dado início à exploração de ouro em uma localidade no interior do Espírito Santo. Não há prova documental alguma que fundamente essa tese; mas, ante a falta de documentos, os criadores dessa proposta se justificam de modo muito simples: não há documentos porque a atividade era clandestina. Assim fica difícil, não é?

Até o final do século XVII, quando foram feitas as primeiras descobertas de ouro em Minas Gerais, foram dezenas e dezenas as expedições despachadas para o sertão em busca de pedras e de metais preciosos. Algumas pouco providas, outras com mais recursos; algumas "oficiais", outras "oficiosas". Enfim, desde o litoral de Porto Seguro, passando pelo Espírito Santo e indo até São Paulo, foi um "sem número" de entradas ao sertão. E somente no finalzinho do século XVII foi que um paulista de Taubaté conseguiu descobrir ouro que, inclusive, foi "apresentado" em Vitória pelo "bandeirante". Já nas primeiras "descobertas"  a "coisa sempre vazava". Era literalmente impossível  guardar segredo sobre a descoberta de ouro no sertão que mais tarde seria Minas Gerais; mas os criadores da teoria da origem jesuíta quinhentista da história de Castelo acreditam que foi possível aos jesuítas lavrarem clandestinamente ouro, em segredo, durante cerca de 150 anos, sem serem "molestados" pelas autoridades que, "coniventes", lesavam o fisco "numa boa" e mantinham o "segredo". E isso na região de Castelo, que era muito mais próxima do litoral do que as "brenhas mineiras". "Sério, cara"...

Essa teoria se relativizou em obras mais recentes, tamanha era a dificuldade de mantê-la. Assim, com base em um livro tombo da Paróquia de Itapemirim, "resgatou-se" a "verdadeira" história dos jesuítas nas Minas do Castelo. Segundo esse Livro Tombo, em 1625 havia na região de Castelo quatro aldeamentos indígenas, chamados de "Missões Jesuíticas dos Montes do Castelo". Essas missões tinham três mil habitantes. Ante a falta de registros em documentos primários, porém, manteve-se a tese de clandestinidade. Pois observem, leitores: não há nenhum registro primário, ou pouco posterior, da existência desses aldeamentos indígenas fundados pelos jesuítas em Castelo. Não há registro por parte de nenhuma autoridade capitanial ou superior. Nem mesmo os jesuítas, que registravam até quantas arrobas de presunto defumado haviam adquirido para uma Casa qualquer, deixaram registro sobre a existência desses supostos aldeamentos. Mas um Livro Tombo da Paróquia de Itapemirim, escrito no século XIX em estilo narrativo, foi usado como fundamento para manter a tese, modificando-se somente a data do século XVI para o século XVII.

Em minha opinião, o livro tombo da Paróquia de Itapemirim não deveria ser usado como fundamento "ao pé da letra". Sabe-se, por fontes quase contemporâneas, que os mineradores de Castelo abandonaram a região, na segunda metade do século XVIII, e migraram para a região de Itapemirim. Nesse caso, o livro tombo poderia ser uma espécie de registro das memórias que certamente ainda existiam; mas ele precisaria ser tomado com critério, usando-se da crítica das fontes e "peneirando" o que poderia ser anacrônico ou "irreal". Enfim, a única fonte que fundamenta a tese jesuítica mais recente da fundação das missões das Minas do Castelo é um livro tombo escrito quase duzentos anos depois da suposta fundação.

Com base no supra exposto, acredito que a história "tradicional" escrita que foi fundamentada em documentos primários contemporâneos aos fatos é, ainda, a mais confiável e, certamente, é a verdadeira. As Minas do Castelo foram "descobertas" no início do século XVIII por um "bandeirante" paulista, na "esteira" de movimentos semelhantes de descobertas auríferas que, das primeiras regiões mineradoras da atual Minas Gerais, se espalhara por outras regiões da própria Minas Gerais, e por outros lugares muito mais distantes, como Mato Grosso e Goiás. O descobridor das Minas do Castelo, o taubateano Pedro Bueno Cacunda, deixou razoável relato sobre suas descobertas e atividades, que não devem ser postas em cheque sem uma fundamentação muito bem arrazoada. E, pedindo escusas aos defensores da tese jesuíta clandestina para a "fundação" de Castelo, não podemos considerar seus fundamentos como razoáveis ou confiáveis. Devemos, mais uma vez, "ler o silêncio" e confiar nas fontes primárias existentes.


Concluindo.
Tentei, juro que tentei, tecer um texto pequeno, objetivo e conciso, espelhando o que desejava expôr. Mas, parece, ser prolixo é minha sina. Destarte, fiz o que pude para demonstrar que esse "fetiche" pelas origens, muitas vezes combinado com o desejo de se dar maior antiguidade à datas e nobreza aos agentes, acaba por ser prejudicial à História. Sedimentam-se verdades que distorcem o real, e atrapalham estudos sérios sobre a História local, tanto municipal, quando regional. Isso porque faz-se necessário um esforço do pesquisador para "desconstruir" uma suposta realidade que, em verdade, foi "montada" e "mitificada".

Gerson Moraes França