quinta-feira, 12 de março de 2015

A Casa da Câmara e Cadeia de Santa Cruz

A Casa da Câmara e Cadeia de Santa Cruz, antes da restauração.
Fonte: Secult

Amanhã, dia 13 de março, será entregue à comunidade do distrito de Santa Cruz, município de Aracruz/ES, a Casa da Câmara e Cadeia. A edificação do século XIX, que é tombada pelo Conselho Estadual de Cultura, ficou muitos anos degradada e agora foi restaurada com financiamento do Instituto Sincades, em parceria com a Secretaria de Estado de Cultura. O prédio irá abrigar o Museu Histórico de Santa Cruz, que foi criado por Lei em dezembro do ano passado.

Recebi, em junho de 2014, com entusiasmo, a notícia do início das obras de reparos e de restauro da edificação em tela. Assim como todos que prezam pela nossa história local e pela preservação do nosso patrimônio histórico, fui um dos que festejou animadamente. Durante o curso das obras, a Secult disponibilizava informações sobre o andamento das mesmas. Eu, é claro, acompanhava com interesse.

No final de agosto, ou início de setembro do ano passado (2014), eu li em uma das publicações que a antiga Casa da Câmara e Cadeia de Santa Cruz (ora restaurada) havia recebido o Imperador Dom Pedro II, em sua visita que fez à então Província do Espírito Santo, entre janeiro e fevereiro de 1860. E, na mesma hora, lembrei-me do famoso trabalho de Levy Rocha (Viagem de Pedro II ao Espírito Santo, 1960), o qual possuo a segunda edição do livro (1980). Li esse livro, pela primeira vez, quando tinha 13 anos de idade; estava novinho! Desde então, e como sou um apaixonado pela história espírito-santense, li o livro algumas dezenas de vezes; às vezes para fazer uma consulta, às vezes por diversão ou para relembrar. Hoje, de tanto manuseá-lo, ele está um "bagaço"; tive que colar fitas adesivas na capa para preservá-lo e segurar suas folhas.

Ao ler a publicação da Secult, conforme disse, lembrei do que li, muitas vezes, no livro de Levy Rocha. Eu me recordava bem que, em Santa Cruz, na época da visita de Dom Pedro, havia duas edificações distintas: a que abrigava a Câmara e o Júri, e a que abrigava a Cadeia. Lembrava-me também que o imóvel que abrigava a Câmara era particular, tendo sido construído por um abastado morador local. Fiquei curioso e fui às páginas do livro. Constatei o que recordava: a Câmara funcionava em uma casa, particular e alugada, e a Cadeia funcionava em outra casa. Indaguei: teria a edificação recebido algum anexo, ou mesmo teria sido adequada alguma das salas para funcionar o xadrez, em ano posterior? Teria sido desapropriada mais tarde, uma vez que hoje é próprio público municipal? Afinal, o atual prédio seria aquela edificação visitada por Dom Pedro em 1860? Desconfiei eu que não. E, naquele mesmo dia, resolvi pesquisar. Coisa de pretenso historiador chato, como sempre digo.

Interessantemente, na internet, todas as informações sobre a edificação hoje restaurada caminhavam na mesma direção. Unanimemente, todas as publicações que encontrei diziam que o atual prédio que serviu de Câmara e Cadeia de Santa Cruz recebeu, em 1860, a visita de Dom Pedro II. Algumas publicações, inclusive, informavam que o prédio foi construído especialmente para a visita do Imperador! Mas, para mim, algo não encaixava; e eu não conseguia encontrar respostas para as minhas perguntas. Socorri-me, então, da hoje famosa hemeroteca digital da Biblioteca Nacional. E fui para o "garimpo".

Lá pesquisando, no início de setembro de 2014, consegui encontrar as respostas. E, mais uma vez, constatei que a tradição e a memória, às vezes, distorcem ou adequam eventos passados para explicar ou fundamentar realidades presentes. São detalhes, para alguns, bobos e sem sentido. Mas, para mim, são importantes. Tanto que, ainda em setembro, até fiz um comentário em um post de divulgação do restauro, alertando para o fato de que não havia sido aquela edificação que Dom Pedro havia visitado, como se acreditava até então.

A propósito: sobre a "tese", defendida por algumas publicações, de que a edificação foi especialmente construída para a visita do Imperador, os fatos também conspiravam contra. Foi depois do dia 05 de setembro de 1859 que o Presidente da Província recebeu a notícia de que Dom Pedro II visitaria o Espírito Santo, após passar pelo norte do Brasil. Um tanto difícil seria edificar uma obra tão sólida e bem acabada como a Casa de Câmara e Cadeia, ora restaurada, em uma época que as construções públicas demoravam anos e que o dinheiro para sua construção era sempre "minguado", em apenas cinco meses...

Desejando contribuir com esse importante momento, que será a entrega da restaurada Casa da Câmara e Cadeia de Santa Cruz no próximo dia 13 de março de 2015, resolvi tornar pública a minha pesquisa realizada no ano passado. Nela constatei que Dom Pedro não esteve naquele prédio específico, pois ele ainda não existia. Abaixo, segue um histórico de todo o processo, desde a instalação do Município de Santa Cruz, até a conclusão da edificação hoje restaurada.


HISTÓRICO DAS CASAS DE CÂMARA E CADEIA EM SANTA CRUZ
PARTE I

Santa Cruz, antiga Aldeia Velha, foi elevada a categoria de vila e município em 03 de abril de 1848, desmembrada do município de Nova Almeida. O município foi instalado em 13 de janeiro de 1849, com a posse e entrada em exercício dos vereadores da Câmara Municipal. Foi sede da municipalidade por cem anos, até que em 1948 a Câmara Municipal aprovou a transferência da sede para o distrito de Sauassú, atualmente cidade de Aracruz. A transferência da sede foi executada em 1950.

Antes de iniciar a exposição do histórico da Câmara e da Cadeia de Santa Cruz, entendi por bem aqui colocar o que está no livro do Levy Rocha, já citado, sobre a matéria. Dom Pedro esteve em Santa Cruz no dia 02 de fevereiro de 1860. Chegou às oito horas da manhã, e deixou a Vila às três e meia da tarde.

Segue, in verbis:
"(...) sua elevação a município [de Santa Cruz], em 1848, muito devia ao particular empenho do cidadão José Alves da Cunha Bastos que construiu, por sua conta, uma casa para servir de Paço Municipal e onde também funcionava o júri, sendo, para esse fim, alugada por 144$000 anuais.
A cadeia pública era um rancho de taipa coberto de palha e não oferecia a menor segurança nem merecia tal título."
"S. M. [Sua Majestade] foi conduzido ao Paço da Câmara onde o presidente da casa lhe entregou a chave da vila, com discurso (...)".
"O prédio tinha bom aspecto:
"Casa da Câmara com telha; sala sofrível para as sessões do Júri; quarto para o Conselho, e outro para as testemunhas; pintou-se de novo agora"."

Quando o município de Santa Cruz foi criado e instalado, não havia edificação pública para servir de sede à Câmara. Assim, procedeu-se o que, normalmente, ocorria nesses casos: alugou-se uma casa para abrigar as sessões do Conselho. O proprietário desse primeiro imóvel que serviu de Paço Municipal em Santa Cruz é presumível, embora não seja conclusivo: o cidadão José Alves da Cunha Bastos, português que seria naturalizado brasileiro em 1855. O aluguel, em 1850, era de 36$000 por ano.

A primeira Cadeia foi construída pelo governo provincial; portanto, um prédio público. Era uma edificação bem simples. Em 1855, enquanto não havia ainda casa pública própria para a reunião do Conselho, a Casa pública de Prisão já estava concluída. Era, porém, uma "palhoça". Ainda em 1855, o governo provincial destinou 400$000 para as despesas com uma cobertura de telhas, para melhorar a segurança da Casa de Prisão da vila de Santa Cruz. No ano seguinte, porém, a casa ainda estava em mal estado e oferecendo pouca segurança. Em 1857 a situação permanecia: a Cadeia continuava sendo "uma pequena casa de taipa, coberta de palha, com uma sala, um insignificante xadrez e um acanhado quarto, e é ela a cadeia pública aí". Possuía um tronco e um par de algemas, e não havia carcereiro. O xadrez tinha "lotação" para seis pessoas.

Situação precária, que perdurou por uns bons anos. Como foi relatado mais acima, a Cadeia ainda estava nessa condição em 1860, quando da visita do Imperador, e continuava assim em 1864: uma casa de taipa coberta de palha. Entre esses anos, em 1862, a Cadeia era descrita como "uma casa pequena, mal arejada, escura e insalubre". Ao que tudo indica, em julho de 1866 a Casa de Prisão finalmente foi retirada daquela "palhoça". Passou a funcionar em uma casa alugada, de propriedade do mesmo José Alves da Cunha Bastos acima citado, ao preço de 36$000 ao ano. Essa nova Casa de Prisão, ao que parece, era a mesma casa alugada que, de 1850 à 1858, havia sediado o Paço da Câmara Municipal. A Cadeia permaneceu funcionando nessa edificação até 1876, quando foi concluída a Casa da Câmara e Cadeia hoje restaurada, conforme narro adiante.

Aquela primeira casa alugada por 36$000 anuais, que servia para abrigar as reuniões da Câmara Municipal de Santa Cruz, era uma edificação razoável, porém acanhada. Desse modo, o proprietário José Alves da Cunha Bastos tratou de construir uma nova edificação, mais espaçosa e melhor acabada, com o propósito de alugá-la para sediar as reuniões do Conselho. Em dezembro de 1857 o novo imóvel já estava quase concluído: "muito adiantada já vai a casa nova da Câmara e Jury; julgo que por estes dois meses ficará ela concluída". Terminada a nova edificação, em 1858, "transferiu-se" a sede do Paço municipal. Aumentou, também, o aluguel: agora eram 144$000 anuais.

Foi essa edificação, de construção recente, que Dom Pedro II visitou em sua estada em Santa Cruz, no ano de 1860. Conforme está no livro de Levy Rocha, naquele ano "a edificação tinha bom aspecto"; era coberta de telhas e havia sido pintada recentemente. A Câmara Municipal de Santa Cruz funcionou nesse prédio de 1858 à 1876, com o governo provincial desprendendo o aluguel de 144$000 por ano; assim permaneceu até que foi inaugurada a nova Casa de Câmara e Cadeia que, presentemente, foi restaurada e abrigará o Museu Histórico de Santa Cruz.

Agora, passemos ao histórico do imóvel tombado pelo Conselho Estadual de Cultura, atualmente restaurado e que serviu, por longos anos, como Casa da Câmara e Cadeia do Município de Santa Cruz.


HISTÓRICO DA CASA DA CÂMARA E CADEIA DE SANTA CRUZ
PARTE II

Em 09 de julho de 1861, pouco mais de um ano após a visita de Dom Pedro II, tomava posse do cargo de Juiz de Direito da Comarca de Santa Cruz o Dr. Antônio Gomes Villaça. Ao assumir a função, o Dr Villaça verificou que o estado da Cadeia e da sala de reunião do Júri não era nada bom. Segundo ele, o estado da Cadeia era miserável, e havia a necessidade de uma sala descente para as sessões do Júri (Dom Pedro também constatou isso pouco mais de um ano antes: "sala sofrível para as sessões do Júri") Assim, tão logo tomou posse, levantou a ideia de se construir um edifício com as comodidades necessárias para abrigar a Cadeia, a Câmara e a Sala do Júri. "Com incansável zelo o digno magistrado bateo a todas as portas, recorreo ao fazendeiro e ao commerciante opulento, assim como ao jornaleiro que só tinha para offertar o seo trabalho", narrou o então Presidente da Província, Dr. José Fernandes da Costa Pereira Junior, que governou o Espírito Santo entre 1861 e 1863. E assim conseguiu, através de subscrição entre os moradores, a quantia de 6:600$000, montante quase suficiente para se construir o edifício.

Já no ano de 1861 principiaram as obras, "às expensas do povo", com a preparação do terreno e com a aquisição de parte dos materiais necessários. No dia 14 de março de 1862, com a presença do Presidente Costa Pereira, ocorreu a cerimônia do lançamento da primeira pedra do edifício, sendo por ele assentada solenemente a pedra fundamental da edificação que se ergueria. A obra seguiu "de vento em popa" e adiantou-se bastante. Em fevereiro de 1863, porém, o Dr. Villaça foi chamado para exercer, interinamente, o cargo de Chefe de Polícia, tendo que se ausentar de Santa Cruz. "A obra está bastante adiantada, e estaria talvez concluída se não fosse minha ausência daquela vila, nos dez meses que fiquei como Chefe interino de Polícia", relatava o Dr. Villaça no final de dezembro de 1863.

No início de 1864, as obras pararam. Tiveram, até então, bom desenvolvimento. Mas havia algumas dificuldades para arrecadar as quantias subscritas pelos particulares. "Está em construção um edifício destinado a servir de Paço da Câmara e Tribunal do Jury, cuja obra, tendo tido algum desenvolvimento, chegando as paredes à altura do telhado, está presentemente paralisada", informava o Presidente da Província em relatório de 1864. O governo provincial, para não deixar a obra parada, aprovou uma ajuda de 500$000 para dar seguimento à construção. No ano seguinte, 1865, a Província entregou à Câmara de Santa Cruz a quantia de 800$000 para continuar as obras. Mas elas praticamente não andavam; o dinheiro, ao que tudo indica, foi destinado a pagar débitos em atraso com fornecedores e trabalhadores. Em 1867 as obras estavam totalmente paralisadas e ainda somente com o primeiro pavimento construído, exposto ao tempo. Nesse mesmo ano o Deputado José Delgado Figueira de Carvalho conseguiu que a Assembléia Provincial aprovasse uma Lei autorizando o Presidente da Província a conceder à Câmara de Santa Cruz a quantia necessária para se terminar a construção. A Câmara oficiou ao Presidente, informando que iria dar andamento às obras da nova Casa da Câmara e Cadeia. Mas nem a Câmara Municipal deu seguimento às obras, nem o governo provincial auxiliou com quantia alguma, naquele ano.

Em 1872 as obras permaneciam paradas, com a estrutura ainda exposta ao tempo e começando a correr o risco de desabar. Como a Lei de 1867 não falava em valores, acabou não sendo executada. Ante ao risco de se perder o que já havia sido levantado, foi votada uma nova Lei pela Assembléia Provincial, em 1872, autorizando ao Presidente da Província à desprender até 6:000$000 para a conclusão da construção da Casa da Câmara e Cadeia. Mas a autorização, novamente, não "saía do papel". Em 1874, nova Lei provincial foi aprovada, dessa vez destinando 2:000$000 para concluir a Casa da Câmara e Cadeia de Santa Cruz.

Foi então que entrou em ação outro Juiz de Direito, o bacharel Antônio Luiz Ferreira Tinoco. Entre 1861 e 1863, as obras estiveram sob a direção do Dr. Villaça. Entre 1863 e 1875, as obras estiveram sob a direção da Câmara Municipal. Em 1875, o Dr. Tinoco tomou a direção da construção. Em maio desse ano, foi feita uma "reunião para concluir as obras da Casa da Câmara e Cadeia, principiadas em 1861". Em junho do mesmo ano, a comissão responsável para executar a obra estava formada. O Juiz fez correr nova lista de subscrição, e conseguiu arrecadar o montante de 2:769$000. E as obras recomeçaram. Em 1876, com a construção em andamento, o governo provincial entregou ao Juiz a quantia de 2:000$000, em duas vezes (a primeira parcela em março, e a segunda em maio), amparado pela Lei de 1874, para aplicar nas obras da Casa da Câmara e Cadeia. Em maio de 1876 o prédio estava com as obras andando "em pleno vapor"; com a Província concorrendo por último com esse dinheiro, o montante necessário para terminar a obra estava garantido.

E assim, em setembro de 1876, a construção foi concluída. Tão logo que inaugurada, passou a receber as sessões da Câmara Municipal. Os presos da Cadeia foram transferidos, nesse mesmo mês, para o novíssimo xadrez. Em 1877, a Província ainda auxiliou com a quantia de 200$000, devido a necessidade de se fazer circunstancial reforma na sala de sessões. Mas nesse ano já não se precisava mais pagar os 144$000 anuais pelo aluguel da casa que servia para a reunião do Conselho. Construída em "estilo moderno", não era simplesmente uma Casa de Câmara, mas também uma prisão; uma das primeiras da Província, nesse gênero. Feito em forma de "quadrilátero", foi construído todo de pedra e cal no caixão, com uma escadaria de três faces e quatro degraus. As esquadrias da porta principal foram montadas em granito polido, e a casa tinha quatro janelas envidraçadas. Era, como se dizia na época, um edifício sólido, pensado para durar para o futuro. E durou. Pois mesmo com o abandono e o descaso que suportou por longos anos, depois que deixou de ser usado, conseguiu chegar até o nosso tempo. Alquebrado, porém ainda de pé.

Em 1915, o prédio recebeu uma nova "repartição". Com a criação das Prefeituras (até então o poder executivo municipal era exercido pelo presidente da Câmara), em 1914, a Casa de Câmara e Cadeia passou a abrigar, também, a Prefeitura de Santa Cruz. Daí para frente é história mais recente, que foge aos objetivos do presente trabalho. Nosso objetivo com a divulgação dessa pesquisa foi contribuir com a confecção da correta história do referido imóvel, nesse especial momento em que foi restaurado e que abrigará o novo Museu Histórico de Santa Cruz. Destarte, serve também como um "presente" meu para o inventário do imóvel, na data da sua entrega. Parabéns à Secult por sua dedicação ao restauro e à conservação do patrimônio histórico do Espírito Santo.


Gerson Moraes França