quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Coelho dos Santos - Silvestre e José, Mestre e Doutor. (Parte 1)

Doutor José, filho de Mestre Silvestre

Construir uma narrativa histórica sobre uma personagem pouco documentada não é tarefa fácil. Longe dos holofotes dos jornais, mestre Silvestre, nascido escravo e falecido fazendeiro, deixou poucos documentos conhecidos que pudessem nos nortear em uma construção mais detalhada de sua história. Restou sedimentada de sua passagem pelo mundo, porém, a sua memória: um negro escravo que, laborador nos oficios de carpinteiro e pedreiro, e com o fruto de seu trabalho, conseguiu comprar a própria alforria e, mais tarde, conseguiu formar o filho na Faculdade de Medicina da Côrte, no Rio de Janeiro. Isso foi o que a memória guardou.

Assim, foi com essa parca - porém elucidativa - documentação que consegui dispor, que iniciei esse escrito sobre mestre Silvestre. Certamente, um biógrafo que se debruce com mais afinco ainda descortinará muitos mais documentos. Não fiz detalhadas pesquisas cartorárias ou paroquiais, que demandam tempo e recursos. Mas acredito que com o que pudemos reunir, podemos dar um ponta-pé inicial bem fundamentado sobre a sua vida. Deixemos que um pesquisador, no futuro, traga mais luz à essa interessante história. E, também, que possa corrigir algum equívoco que, porventura, eu possa ter cometido.

Primeiramente, a sua origem. Como descobrir de onde teria vindo mestre Silvestre? O mais antigo documento que consegui "garimpar" que cita a presença de mestre Silvestre na região do médio Itabapoana é datado de 1863. Exatamente o mesmo ano que nasceu um de seus filhos, José. Assim, mestre Silvestre teria sido um dos primeiros povoadores da região de São Pedro de Itabapoana. De posse dessa informação, somando com alguns fatos que averiguei depois, logo levantei a presunção de que ele poderia ter vindo de Minas Gerais. Houve um intenso movimento de migração, nessa época, de uma região mineira para o médio Itabapoana. A região de Oliveira, Bonsucesso e entornos, de onde saíram muitos dos primeiros fazendeiros de São Pedro do Itabapoana.

Como, conforme disse eu, não tinha tempo e nem recursos para pesquisar nos registros cartorários e paroquiais contemporâneos (teria que pesquisar nos cartórios de São Pedro e Mimoso, em arquivos paroquiais em Apiacá e nos arquivos da antiga Freguesia de São Luiz Gonzaga - Limeira - que estão guardados em Campos), resolvi compulsar antigos censos demográficos de Minas Gerais, na esperança de encontrar alguma luz. E, interessantemente, acredito que encontrei o que procurava. Fiz uma intensa busca nos registros dos censos mineiros de 1831/32 e 1838/40, disponibilizados pelo NPHED/Cedeplar da UFMG. Minha "missão" foi ler os registros de todos os censos, de todas as freguesias, de todos esses anos, em busca da seguinte informação: haveria algum escravo de nome "Silvestre" trabalhando para alguma família com o sobrenome "Coelho dos Santos"?

E por que isso? O nome completo de Silvestre, quando já livre e morador na freguesia de São Pedro do Itabapoana, era Silvestre Coelho dos Santos. Considerando verídica a informação que a memória guardou - de que era ex-escravo - , imaginei que com essa cansativa busca eu poderia encontrar quem eu procurava. Isso porque, na época, os escravos não possuíam, via de regra, sobrenome. No máximo uma alcunha, geralmente relacionada com a "raça" ou com a região africana de onde vieram. Quando alforriado, era de praxe que o ex-escravo tomasse para si o sobrenome da família de seu antigo senhor. Assim, explica-se porque procurei, em todos aqueles censos, algum escravo de nome "Silvestre" que trabalhasse para alguém de alguma família "Coelho dos Santos".

E, conforme disse mais acima, encontrei. Numa busca muito trabalhosa, encontrei apenas um único caso que combinou um escravo de nome "Silvestre" com uma família de sobrenome "Coelho dos Santos". Era um indício forte. E, daí em diante, ao analisar melhor esse caso único, as "coincidências" foram aumentando. Esse jovem escravo Silvestre era um dos poucos, das dezenas de escravos daquela família Coelho dos Santos, que tinha um ofício: era carpinteiro. E mais; a região aonde viviam era a mesma região de onde partiu significativa porção dos primeiros povoadores de São Pedro do Itabapoana: Bonsucesso e Oliveira. Os dados batiam. Tudo indicava que minha busca foi bem sucedida.

É importante que se diga, porém, que esses elementos são enorme indício, mas não são fulcrada prova. Destarte, considerando que servem como boa fundamentação, trabalharei doravante com essa tese. Conforme disse, no futuro, um pesquisador que esteja biografando a personagem aqui estudada pode levantar maiores e melhores elementos, corrigindo distorções e/ou alumiando omissões.

De posse dessa informação, foi possível estabelecer o ano de nascimento de Silvestre: 1813. Era classificado como "crioulo", ou seja, um escravo negro nascido no Brasil. Aos 18 anos já exercia o ofício de carpinteiro. De todas as dezenas de escravos homens da família Coelho dos Santos, apenas quatro exerciam ofício, e todos eles eram nascidos no Brasil, fossem crioulos ou pardos. Todos os demais, dentre eles todos os escravos "africanos pretos", trabalhavam na cultura da fazenda.

Essa informação sobre o ano do nascimento de Silvestre é importante. Isso porque, por documentos contemporâneos, sabe-se que o seu filho que mais tarde se tornou médico, José, tinha irmãos mais velhos e era o caçula. Assim, Silvestre teria 50 anos de idade quando se tornou pai de José. Um dos irmãos mais velhos de José, Serapião, já era lavrador em um sítio próprio em São Pedro do Itabapoana no ano de 1877, o que nos faz presumir que teria nascido, no máximo, por volta de 1857; possivelmente antes, pois dificilmente teria menos de 20 anos de idade, embora ainda fosse jovem nessa quadra. Assim, considerando o fato de que Silvestre nasceu escravo, acumulou o pecúlio com o qual comprou sua alforria, e que isso certamente demandaria certo tempo, não seria inverossímil que tivesse constituído uma família livre já na casa dos quarenta anos. Pois esse fato também é importante citar: todos os filhos legítimos de Silvestre Coelhos dos Santos nasceram livres, de pai e mãe livres, embora Silvestre seja alforriado e não conheçamos a condição pretérita da mãe.

Outro fato importante é que Silvestre, segundo tudo indica, constituiu família já quando estava em São Pedro do Itabapoana. Não sabemos se teria se casado em Minas Gerais, ou no Espírito Santo. Nem se teve seu(s) primeiro(s) filho(s) por lá, ou por cá. Conforme disse, isso demandaria uma bem feita pesquisa cartorária e em arquivos paroquiais. Mas pelo menos dois de seus rebentos foram gerados em São Pedro do Itabapoana, um em fins da década de 1850 ou inícios da década de 1860, e o caçula José em 1863. Essas informações "batem" com o relativamente bem documentado movimento migratório que trouxe muitos mineiros da região de Oliveira e Bonsucesso para o médio Itabapoana.

Um outro fato relevante é a relação que a família Coelho dos Santos, que aqui tratamos, possuía com várias famílias dos primeiros povoadores de São Pedro do Itabapoana, entrelaçadas por laços familiares e/ou de compadrio com os Gonçalves Vivas, Castanheira, Ribeiro de Castro e Ribeiro da Silva Castro. Embora nenhum Coelho dos Santos tenha migrado para o médio Itabapoana, vários de seus parentes vieram, inclusive netos do primeiro "proprietário" do escravo Silvestre.

Assim, os indícios são mais do que grandes: são enormes.

Com fundamento nesses indícios, podemos tratar agora um pouco mais da vida de Silvestre em Minas Gerais e nos seus primeiros anos no Espírito Santo.

Conforme salientamos acima, Silvestre nasceu no ano de 1813, no distrito de Bonsucesso, Minas Gerais. Crioulo, filho de escravos, nasceu cativo. Seu proprietário era o tenente Francisco Coelho dos Santos, nascido em 1771. Silvestre era filho do "preto africano" Manoel, nascido em algum lugar do continente africano em 1781, e da escrava "preta africana" Roza, também nascida na África no ano de 1791 (VER EDIT ABAIXO). Não sabemos quando, e em que condições, Manoel e Roza chegaram ao Brasil. Possivelmente entraram pelo Rio de Janeiro, provavelmente em tempos diversos, entre o final do século XVIII e início do XIX, e dali encaminhados para Minas Gerais. Manoel era escravo de cultura, e trabalhava nas lavouras da Fazenda do tenente Francisco. Roza era fiadeira, atividade exercida por quase todas as escravas mulheres da propriedade. Ainda adolescente, Silvestre foi "encaminhado" para exercer o ofício de carpinteiro no "engenho de serra" da Fazenda. Aos 18 anos, conforme narramos, era carpinteiro, juntamente com mais dois outros escravos crioulos mais velhos que ele. Nessa época, o tenente Francisco Coelho dos Santos possuía 47 escravos, uma quantidade grande se comparada com outros fazendeiros escravagistas da região e do tempo.
EDIT: Já há alguns anos, pesquisando em fontes primárias (disponíveis cada vez mais em função do enriquecimento das documentações on line), encontrei o batismo de Silvestre Coelho dos Santos. Em um próximo artigo, espero corrigir esse erro acima: Silvestre não era filho do casal de escravos Manoel e Roza. Mantive, porém, o texto original no presente artigo, pois entendo que a construção dos tijolinhos das biografias e suas histórias também se fazem com esses erros.

Quando foi que Silvestre teria comprado sua alforria? E aonde? Informações que também não dispomos, e que temos que apenas presumir. Certamente, adquiriu sua liberdade ainda em Minas Gerais. Acreditamos nisso pelo fato de nenhum membro nuclear da família Coelho dos Santos ter migrado para o Espírito Santo. Assim, considerando que Silvestre tomou esse sobrenome por alcunha, é de se acreditar que o fez quando deixou de ser "propriedade" de um membro dessa família. Tivesse vindo para o Espírito Santo na condição de escravo, e aqui comprado sua alforria, é credível que teria tomado outro sobrenome. É provável que tenha comprado sua alforria em algum momento no final da década de 1840 e início da década de 1850, quando tinha entre 35 e 40 anos de idade. Como exercia o ofício de carpinteiro, pôde juntar dinheiro em trabalhos que, possivelmente, executava para outrem, certamente com a permissão de seus senhores. Esse fato não era incomum para a época.

O tenente Francisco Coelho dos Santos e sua mulher Joana Angélica de Castro já estavam mortos em 1851. Suas propriedades e posses, engenhos e escravos, tinham sido inventariados e repartidos por todos os sete filhos do casal, cabendo aos três filhos homens (Francisco, José e Antônio) a maior parte das terras na partilha, por compra feita junto às irmãs. Assim, considerando a data das mortes desses três filhos homens (1851, 1856 e 1862), bem como o fato de alguns de seus parentes terem começado a migrar para o Itabapoana entre 1855 e 1860 (e em maior volume na década de 1860), acredito que Silvestre tenha comprado a sua alforria entre 1851 e 1856, e emigrado com algum dos aparentados dos Coelhos dos Santos entre 1856 e 1862. Mas são só hipóteses. Em 1863 já estava estabelecido na região de São Pedro do Itabapoana, pois nesse ano nasceu seu filho caçula, José, natural do Espírito Santo.

Voltando aos laços de parentesco que uniam a família Coelho dos Santos com alguns dos primeiros fazendeiros da região de São Pedro do Itabapoana, salientamos que Felisberto Ribeiro da Silva, fundador da Fazenda União entre 1855 e 1860, era cunhado de um dos filhos do tenente Francisco. Venâncio José Vivas, sogro de Bento Gonçalves Castanheira, ambos progenitores de importantes famílias de São Pedro do Itabapoana, era casado com uma filha do tenente Francisco. E as famílias Ribeiro de Castro e Silva Castro eram a da mulher do tenente Francisco, Dona Joana Angélica. Naqueles primeiros tempos de ocupação das extensas matas virgens que cobriam toda a região do médio Itabapoana, um carpinteiro certamente era importantíssimo para os trabalhos de construção das primeiras habitações (feitas de madeira, até que começaram a ser substituídas por sólidas construções de alvenaria), bem como de senzalas, currais, e até do mobiliário. Fato é que o carpinteiro Silvestre Coelho dos Santos, ex-escravo que comprou sua alforria, emigrou para a região de São Pedro do Itabapoana em algum momento entre o final da década de 1850 e o início da década de 1860.

Ocorre então um lapso temporal de alguns anos, quando provavelmente o agora chamado mestre Silvestre esteve trabalhando em seu ofício de carpintaria e, segundo reza a tradição, também na função de pedreiro. Em 1868, com pelo menos três filhos crianças (Serapião, Agostinho e José), Silvestre Coelho dos Santos já possuía uma conta com o fazendeiro Antônio Gomes Guerra, fornecedor de madeiras serradas, carne e mantimentos para os primeiros fazendeiros do médio Itabapoana. É quase certo que nessa época já tinha formado a sua fazenda de café, chamada de São Sebastião, encravada nas terras entre a Fazenda União (de Felisberto Ribeiro da Silva) e as terras da família Ribeiro de Castro. Em 1873 já tinha acumulado bom dinheiro, quase oito contos de réis, que investiu em uma casa bancária com sede na Côrte (Rio de Janeiro); não era um fazendeiro tão rico como alguns dos que o circundavam, mas era um homem abastado nessa época. Em 1877/78, o fazendeiro Silvestre Coelho dos Santos possuía, além da Fazenda São Sebastião, uma casa no arraial de São Pedro de Alcântara (atualmente sede do distrito de São Pedro do Itabapoana, Mimoso do Sul/ES) e uma casa na cidade de Campos dos Goytacazes, norte da província do Rio de Janeiro. Caridoso, em 1878 foi um dos quotistas que fizeram uma avultada doação, em Campos, para auxiliar os flagelados pela seca no Ceará.

Uma curiosidade: em 1877, quando já era um abastado fazendeiro, mestre Silvestre não sabia ler e escrever. Quem assinava seus documentos nessa época, e à seu rogo, era o filho caçula José, então com 14 anos de idade. Tudo indica que tenha falecido sem nunca ter se alfabetizado. Nesses tempos, porém, isso não era incomum. Quase 85% da população da Freguesia de São Pedro do Itabapoana era analfabeta. Dentre os homens livres, o índice de analfabetismo chegava a quase 65%. Mas mestre Silvestre não descuidou da educação de seus filhos. Sebastião e Agostinho sabiam ler e escrever. O caçula José estudou as primeiras letras em uma boa escola no povoado de Limeira do Itabapoana, sede da Freguesia e não longe da sua fazenda. Posteriormente, seu pai mandou-o para o Rio de Janeiro, aonde complementaria os estudos e, mais tarde, ingressaria na Faculdade de Medicina.

Falamos tanto de mestre Silvestre que quase eclipsamos a história de sua esposa. Ela se chamava Arminda Maria dos Santos. Não sabemos pormenores de seu passado; quando e aonde nasceu, se foi escrava, se nasceu livre, nem como e quando chegou ao Itabapoana. Quando ambos se casaram eram, com quase toda certeza, pessoas livres. Todos os seus filhos nasceram livres. Segundo reza a tradição, conforme se infere do trabalho do grande cronista mimosense Gilberto Braga Machado, Arminda Maria certa vez salvou a vida do seu marido Silvestre, em ocasião que este adoeceu seriamente. Após passar por intensas febres e ficar bom tempo acamado, Arminda Maria tratou-o com plantas medicinais que ela mesmo coletou e preparou. Silvestre restabeleceu-se completamente poucas semanas depois. Essa história também é narrada por um descendente de mestre Silvestre, bisneto do caçula José, o professor Helio de Freitas Coelho, a quem tive o prazer de conhecer e conversar em Campos, em agosto de 2014.

Como, conforme narrei mais acima, não tive tempo e nem recursos para fazer pesquisas em registros cartoriais ou paroquiais, não sei o ano exato da morte de mestre Silvestre. Contudo, através dos documentos e informações que dispomos, conhecemos a época que faleceu: entre 1881 e 1883. Em 1881 foi quando o seu filho caçula, José, iniciou os estudos na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e reza a tradição que Silvestre estava vivo quando isso ocorreu. E em 1884 já estava falecido, sendo o seu espólio administrado pelos seus herdeiros. Silvestre Coelho dos Santos deixou a vida com quase 70 anos e, infelizmente, não teve tempo de ver o seu filho caçula, José, formar-se médico. Sua esposa, Arminda Maria dos Santos, residindo no povoado de São Pedro de Alcântara, ainda estava viva em 1886, e tudo indica que faleceu no final da década de 1880, ou inícios da década de 1890.

Por fim, adentraremos num assunto polêmico aos olhares de hoje. Mestre Silvestre era negro e ex-escravo. Mas também foi proprietário de uma fazenda cafeeira, em um tempo aonde era usada a mão-de-obra cativa nas lavouras de café do sul do Espírito Santo. Havia escravos trabalhando em todas as fazendas circunvizinhas da Fazenda São Sebastião, como na União, na Harmonia, no Recreio e em São Carlos. Assim, considerando o fato de ser negro e ex-escravo que comprou a própria alforria, Silvestre Coelho dos Santos teria sido proprietários de escravos? Aos olhos de hoje, isso soaria estranho. Mas não podemos cair em anacronismo: na época, não era incomum que negros livres, nascidos nessa condição ou alforriados, possuíssem escravos se o pudessem.

E a resposta para a pergunta é: sim, o fazendeiro Silvestre teve escravos. Não sabemos quantos escravos ele possuiu; os maiores fazendeiros de São Pedro do Itabapoana, nessa época, não tinham muito mais que 40 ou 50 escravos. Propriedades médias podiam ter entre 15 e 20 escravos, e havia boas fazendas cujos proprietários possuíam 4 ou 5 escravos. Acredito que a Fazenda São Sebastião tenha tido, mais ou menos, essa última quantidade de cativos. Os registros que pude manusear só legaram para a posteridade um deles: um escravo de nome José, "preto" nascido em 1854, e com 32 anos quando fugiu no ano de 1886. Nessa época, mestre Silvestre já havia falecido, e o escravo pertencia à sua esposa Arminda Maria, embora parecesse trabalhar para seu filho Serapião que, ao que parece, passou a administrar a Fazenda São Sebastião quando seu pai morreu.

Interessantemente, o filho José, quando estudante no Rio de Janeiro, passou a conviver com uma causa que tomava cada vez mais vulto e caía definitivamente no gosto e bom grado da opinião pública: a causa abolicionista. José Coelho dos Santos, estudante de medicina na Côrte, tornou-se "oficialmente" um militante abolicionista em junho de 1883, embora seu movimento fosse bem moderado e alinhasse-se mais para um emancipacionismo gradual. Anos mais tarde, também passaria a militar na causa republicana. Mas isso é uma outra história, que contaremos na segunda parte do presente artigo.


Gerson Moraes França


terça-feira, 29 de setembro de 2015

São José das Torres - Histórias [Parte 10]

Capela de São José das Torres, reformada em 1937, nos dias atuais
Fonte da foto: Google Street View

Chegamos à parte décima dessa série de artigos sobre as Histórias de São José das Torres. Não imaginei que contar parte da história de um distrito do município de Mimoso do Sul tomaria tantas linhas. E, acreditem, ainda há muitas e muitas informações, fatos e histórias que podem ser narradas. Assim, é claro que estou selecionando o que entendo ser mais importante, ou mais interessante, para construir e dar sentido a um naco da história dessa localidade, que cresceu em torno da Capela de São José e que fica no sopé da majestosa serra das Torres.

Já narramos em pormenores como foi o povoamento e a exploração da região, a construção da Capela de São José e a formação do povoado da Capelinha, a criação do distrito, as primeiras obras de infra-estrutura, sobre os seus primeiros povoadores e autoridades, as lides políticas, e até um caso de assassinato e assombração. Isso tudo se passou naqueles cerca de vinte anos iniciais, aproximadamente entre 1892 e 1912. Agora vamos embarcar em uma nova fase da história do distrito. Uma fase  de boom que viu sua população quadruplicar, que teve suas terras todas demarcadas e que observou o surgimento de novas lideranças políticas. Vamos discorrer um pouco sobre o período que iniciou-se em 1909, com a nova política do Estado para facilitar a aquisição de terras e o povoamento de São José das Torres e que deu origem ao surgimento de centenas de novos sítios e novas lavouras de café durante as décadas de 1910 e 1920, e que terminou por volta de 1930, logo após crise econômica que assolou o mundo todo. São vinte anos de história, aproximadamente.

A partir de 1909, como já dissemos, o número de requisições para adquirir terrenos ou legitimar posses na região cafeeira de São José das Torres cresceu substancialmente. Nas décadas de 1910 e 1920, na medida que o café ficava cada vez mais "valioso" e, consequentemente, atraente para se investir, novas lavouras e novos sítios foram se formando no distrito. Na metade desse última década, alguns proprietários já tinham formado grandes fazendas, algumas com mais de 500 hectares. Essa exploração "tardia", se comparada com a exploração da zona central do município de São Pedro do Itabapoana, seria responsável pela preservação de uma grande porção de matas remanescentes que, no final da década de 1960, deixariam de ser desbastadas após a execução da política de erradicação dos cafeeiros pouco produtivos. E, hoje, a Unidade de Conservação da Serra das Torres agradece esse "capricho" do processo histórico de povoamento e exploração das terras do distrito de São José das Torres.

Já vimos que, desde 1912, o distrito de São José das Torres integrou-se comercialmente com a estação férrea de Muqui. Desde então, praticamente toda a produção cafeeira torrense era exportada por aquela localidade. Eram os compradores de café estabelecidos em Muqui que retiravam os lucros que o capital comercial proporcionava, e eram os comerciantes deste mesmo núcleo que abasteciam Torres com os mais diversos gêneros. Era um agrimensor estabelecido em Muqui quem coordenava a distribuição e a medição de várias porções das terras ainda devolutas e virgens em Torres. Nessa mesma época, porém, o povoado de Mimoso iniciou o processo de crescimento de seu núcleo urbano. Tanto as terras ainda virgens de Mimoso, quanto as de Torres, passaram a ser procuradas cada vez mais por novos fazendeiros.

E um dos que chegou em Mimoso, nessa época, por volta de 1920, foi Joaquim de Paiva Gonçalves, conhecido como "Gamboa". Aliado inicialmente de alguns políticos de Muqui, que lhe facilitaram o acesso à terras e lhe concederam capital, Gamboa foi adquirindo vários pedaços de terra, tanto de privados quanto do Estado que, a partir da Fazenda da Paulicea, tomaram o rumo das vertentes ao oeste da serra das Torres, tornando-se um dos maiores fazendeiros de Mimoso. Mais tarde, seu cunhado Rubens Rangel adquiriu terras em São José das Torres, na região de Santa Rosa. Um outro fazendeiro, chamado de Alfredo Gomes de Almeida, presente na região desde 1917, tornou-se na década de 1920 o maior proprietário da região das Torres, dono de quase 400 alqueires de terras. Ambos se aliaram e, aproveitando a conjuntura política surgida após o rompimento dos irmãos Jerônimo e Bernardino Monteiro, em 1920, bem como a política apaziguadora do Presidente do Estado, Nestor Gomes (1920-1924), conseguiram ser eleitos para a Câmara de São Pedro do Itabapoana em 1924, como os dois únicos membros da oposição ao coronel Clarindo Lino da Silveira, então maior liderança política do município de São Pedro.

Já nesse ano de 1924, conseguia que fossem concluídas as obras de algumas estradas carroçáveis em Mimoso, como a que ligava a Paulicea ao Vinagre, e a que ligava Mimoso à Torres e Santa Rosa, financiadas pelo Governo do Estado. Nessa época, o café estava em um período "áureo" de preços, com a produção aumentando ano a ano, gerando muita riqueza e, também, tributos. Com essas estradas foi novamente atraído para o povoado de Mimoso, depois de quase quinze anos, a maior parte da produção cafeeira e do comércio do distrito de São José das Torres. Grandes firmas de compradores de café instalaram-se, nesses tempos, em Mimoso. A década de 1920 foi uma época de "ouro" para a região.

Em 1930 o povoado da Capelinha, sede do distrito de São José das Torres, tinha cerca de 20 boas edificações, com 5 casas comerciais e quase uma centena de moradores. A população total do distrito passava dos três mil e quinhentos habitantes. Na segunda metade da década de 1920, os primeiros automóveis, caminhões pequenos, começaram a transitar pelas estradas do distrito, ajudando a escoar o café produzido na região. O primeiro proprietário de um caminhão em Torres, em 1928, foi o fazendeiro e vereador Alfredo Gomes de Almeida. Nesse mesmo ano, o distrito possuía quatro máquinas de beneficiar café, vários moinhos e olarias, e muitos lotes de tropas de burros. 

Em 1928, o coronel Joaquim de Paiva Gonçalves, que já era o "chefe político" de Mimoso, tornava-se a principal liderança política do município de São Pedro do Itabapoana, consolidando a posição de Alfredo Gomes de Almeida e de Rubens Rangel em São José das Torres. Neste mesmo ano, Paiva Gonçalves, juntamente com Alfredo Gomes, davam início às obras de melhoramentos da estrada entre Mimoso e Torres, transformando-a em uma estrada para automóveis. Mas a crise de 1929 e a Revolução de 1930 iriam mudar toda a conjuntura econômica e política do Município. Só que aí entramos em uma outra história...


Gerson Moraes França


São José das Torres - Histórias [Parte 9]

Antiga edificação abandonada em São José das Torres
Fonte da foto: EntreTorres [www.fabulanas.com]

Neste ano de 2015, tomou força um movimento de resgate das histórias de São José das Torres. Um documentário coordenado por Fabiola Buzim e Ariny Bianqui, cujo projeto é intitulado "EntreTorres", com assessoria especial do teatrólogo e diretor do grupo Fazarte de Teatro, Jorge Fabelo, está promovendo um evento chamado de "Contação de Histórias" na sede do distrito. Esse evento está sendo um sucesso na localidade, e contribuindo significativamente com a construção da identidade torrense. Na metade do ano, um dos temas da Contação de Histórias foram casos de assombração. E por que eu escrevo isso, no presente post? Porque, conforme veremos, antigos "causos" políticos de São José das Torres que terminaram em morte foram responsáveis pela criação de algumas dessas histórias do além.

Voltemos aos anos 1900 e 1910 e narremos a conjuntura política da época. Entre 1892 e 1905, na época que foram formados os primeiros sítios e as firmadas as primeiras posses na região de Rio Preto das Torres, o "chefe" do Partido Construtor, que detinha o poder no Estado e, por via reflexa, nos municípios, era Muniz Freire. Nessa época, o Dr. José Coelho dos Santos sedimentou-se como "chefe" do Partido no município de São Pedro do Itabapoana. Em Torres, conforme vimos em artigos anteriores, o capitão Manoel Corrêa Camargo tornou-se liderança política distrital. Em 1904, uma séria dissenção política abateu-se sobre os grupos dirigentes do município de São Pedro do Itabapoana, o que ocasionou uma série de distúrbios na região, ainda mais considerando que esse era um ano eleitoral. Esses dissídios acabaram repercutindo em Torres. No ano seguinte, ocorreu o rompimento entre o Chefe do Partido no Estado, Muniz Freire, e o Presidente do Estado, Henrique Coutinho. Os ânimos, que já não eram calmos, exaltaram-se no âmbito da política local.

Quando da eleição dos Juízes Distritais nas Torres, em 1904, o grupo chefiado localmente pelo capitão Manoel Camargo foi vitorioso, levando as quatro vagas e elegendo um membro para a Câmara Municipal de São Pedro. O capitão Camargo e seu grupo mantiveram-se aliados ao Dr. José Coelho dos Santos que, sustentado por Muniz Freire (Presidente do Estado entre 1900 e 1904, além de também ter sido presidente entre 1892 e 1896) e Henrique Coutinho (Presidente do Estado entre 1904 e 1908), manteve o controle da política do município no duro embate eleitoral deste ano. Mas, conforme dissemos, no ano seguinte sacramentou-se o rompimento político entre Muniz Freire e Henrique Coutinho, que iria reverberar intensamente, exaltando os ânimos no distrito de São José das Torres.

Entre 1901 e 1904, o Sub-delegado do Distrito de São José das Torres, que na época era um cargo policial importante no distrito e usado como meio de "controle" (ou coerção, conforme queiram), de nomeação pelo Presidente do Estado, foi exercido pelo alferes João Franklin Gonçalves de Lima, tendo sido nomeado por Muniz Freire. Na composição para as eleições de 1904, João Franklin integrou a chapa do Partido Construtor eleita para juízes distritais e, neste mesmo ano, foi substituído na Subdelegacia pelo capitão Felippe Sayd da Rocha, que foi nomeado por Henrique Coutinho. Essa substituição não foi bem vista pelo alferes João Franklin que, no âmbito estadual, tinha mais ligações com a política de Muniz Freire; o capitão Felippe Sayd tinha ligações com o grupo de Jerônimo Monteiro, nesse momento negociando uma aliança com Henrique Coutinho.

Com o rompimento entre Henrique Coutinho e Muniz Freire, em 1905, as dissenções estaduais havidas no Partido reverberaram no distrito das Torres. Tão logo consumou-se o rompimento, a Câmara de São Pedro do Itabapoana, bem como o Chefe do Partido em São Pedro (Dr. José Coelho dos Santos) e como o Chefe do Partido em Torres (Capitão Manoel Camargo) e o vereador do distrito na Câmara (Euclydes Camargo), prestaram solidariedade ao Presidente Coutinho. O alferes e juiz distrital João Franklin ficou do lado de Muniz Freire, juntamente com o grupo munizista que orientava. Iniciava-se aí um período de perseguições e querelas políticas que culminariam com várias tragédias.

Ainda quando no exercício do cargo de Sub-delegado, o alferes João Franklin matou um indivíduo que, segundo informou, resistiu à sua abordagem. Formou-se um processo judicial para apurar o caso, mas por vontade das autoridades de então, especialmente do Promotor Dr. Henrique O'Reilly de Souza (um dos "chefes" munizistas em São Pedro), os autos ficaram parados em Cartório. Quando houve o rompimento entre Muniz Freire e Henrique Coutinho, o Dr. Henrique O'Reilly foi afastado da Promotoria da Comarca, tendo sido substituído pelo Dr. Christiano Vieira de Andrade, aliado de Jerônimo Monteiro e privilegiado pelo Presidente Coutinho. Foi o pontapé inicial para o começo da perseguição dos antigos líderes munizistas. Recolocando o processo em pauta, o Dr. Christiano Vieira pediu a prisão do alferes João Franklin. E, em agosto de 1905, o Sub-delegado Felippe Sayd efetuou a prisão do ex-Sub-delegado e atual juiz distrital João Franklin, indiciado por homicídio.

Após sua prisão, o alferes João Franklin Gonçalves de Lima conseguiu um Habeas Corpus para responder o processo em liberdade. Mas, incompatibilizado com as lideranças políticas no poder e perseguido por seus opositores, foi obrigado a deixar São José das Torres e mudar-se para a capital do Estado, aonde tinha a proteção de algumas autoridades do Poder Judiciário.

O Sub-delegado capitão Felippe Sayd, após esse fato, sustentado politicamente por Henrique Coutinho e Jerônimo Monteiro, e aliado ao capitão Manoel Camargo e ao tenente Euclydes Camargo, iniciou um período de intenso serviço em prol da "limpeza" de São José das Torres, prendendo muitos delinquentes e bandidos. Mas, como era de praxe na época, também perseguiu os oposicionistas, especialmente nas épocas de eleições. Sua figura começou a despontar não só como autoridade policial, mas também como liderança política.

Em maio de 1907, após uma época de eleições estaduais ainda tumultuadas pela dissenção Muniz Freire versus Henrique Coutinho, e cada vez mais ligado e sustentado politicamente por Jerônimo Monteiro, como "mandatário" de sua política nas Torres, o capitão Felippe Sayd foi surpreendido durante a madrugada, em sua residência, por um grupo de mais de trinta homens armados com espingardas, carabinas e foices. Esse grupo, que segundo as línguas da época foi formado por políticos da oposição em Torres, o intimou a deixar o distrito sob pena de, não o fazendo, ser morto ali mesmo. Mas o capitão Felippe Sayd era valente... após ter ficado em silêncio e ter colocado sua família protegida nos fundos da casa, o Sub-delegado respondeu com a expressão "lá vai fogo!", colocando sua arma para fora da janela e engatilhando-a pronto para resistir. O grupo, surpreendido pela ação do Sub-delegado e temeroso pelos tiros que poderiam ser disparados, debandou.

Essas feridas abertas, porém, não cicatrizaram com o tempo. O capitão Felippe Sayd foi colecionando desafetos, desde o mais gatuno bandido até o mais letrado fazendeiro oposicionista de Torres. Sua fama de "defensor dos fracos e perseguidor de assassinos e ladrões de animais" continuou crescendo conforme executava a sua função policial. Quando Jerônimo Monteiro assumiu o governo do Estado, em 1908, Fellipe Sayd tornou-se talvez a mais influente liderança política do distrito de São José das Torres. Foi o principal impulsionador da construção da primeira boa estrada que ligou Torres à Muqui, juntamente com o tenente Euclydes Camargo. Além disso, foi o responsável pela introdução da cultura comercial do arroz em Torres, lavoura esta que tomaria grande proporção nos anos seguintes na região.

No final de fevereiro de 1911, após fazer uma viagem à capital do Estado, e quando retornava para a sua casa pelo caminho do Córrego do Paraízo, em São José das Torres, o capitão Felippe Sayd da Rocha foi emboscado por dois homens, que atiraram à queima roupa. Morreu ali mesmo. O governo do Estado enviou um oficial do Regimento Policial, o Segundo Tenente Anthero Alfena Lopes, para apurar o caso e prender os responsáveis pelo assassinato. Em rápidas diligências, foram presas dez pessoas; os dois executores e oito mandantes. Pouco mais de cinco meses depois, o ex-Sub-delegado alferes João Frankin Gonçalves de Lima, então residindo no Hotel Porto Rico, na rua General Osório em Vitória, foi vítima de um ataque cardíaco e faleceu. Segundo seus amigos, não resistiu às pressões que havia sofrido por tanto tempo. Ambos deixaram viúva e filhos.

E agora voltemos à "Contação de Histórias" do projeto EntreTorres e do grupo Fazarte, e suas histórias de assombração. O caminho da serra da Pratinha, que ligava Torres à Mimoso, nessa época, era todo cercado de mata fechada em um trecho de cerca de seis quilômetros. Foi nesse trecho da estrada que o capitão Felippe Sayd havia sido assassinato. E logo correu o boato de que, tanto esse pedaço do caminho, quanto a casa do falecido Sub-delegado, estavam mal-assombrados. Essa história se espalhou e tomou uma grande proporção na localidade. Dizia-se que para passar na estrada, durante a noite, era necessário acender uma vela no pé da cruz erguida no local aonde morreu Felippe Sayd. Só assim a alma do morto permitia que se passasse pelo caminho. Essa história eternizou-se pela pena do poeta e cronista Ruy Côrtes, que escreveu sobre esse caso de assombração, bem como sobre sua experiência pessoal quando passou certa vez pelo referido caminho dois anos depois da morte de Felippe Sayd, no texto intitulado "O Conto Brasileiro Mal-Assombrado" e publicado em 1931.


Gerson Moraes França


São José das Torres - Histórias [Parte 8]

Rua da subida da Capela, São José das Torres, em meados do século XX
Fonte da foto: Entre Torres [www.facebook.com/entretorresfilme]

Nos artigos anteriores, falamos de pessoas que tomaram parte no início da história de São José das Torres, como seus primitivos povoadores e suas primeiras autoridades. Falamos também da construção da Capela de São José, da formação do povoado da Capelinha e da criação do distrito das Torres em 1901. Falamos da abertura de picadas e da construção de estradas. Agora, vamos começar a falar sobre alguns dos acontecimentos políticos que ocorreram nesses primeiros tempos.

Quando, entre 1890 e 1895, foram formadas as primeiras propriedades cafeeiras em Rio Preto das Torres, uma família se destacou no cenário político da região: Os Camargo. O capitão Manoel Corrêa Camargo tornou-se o "chefe político" da região. Foi ele o principal benemérito da construção da Capela de São José, em terrenos por ele doados, sendo portanto um dos principais responsáveis pela criação do distrito de São José das Torres em 1901. Em 1906, tornou-se "oficialmente" o representante de São José das Torres no diretório político municipal do Partido Construtor (então no poder, tanto no Estado quanto no município, conforme narrado), sedimentando sua posição de líder político distrital.

Alguns de seus parentes exerceram função de destaque em Torres. O tenente Euclydes Moreira Camargo foi o primeiro vereador com residência no distrito, sendo eleito para a legislatura de 1904 a 1908, por indicação do capitão Manoel Camargo. Eugênio Ribeiro Camargo, também por indicação do capitão Manoel, foi oficial do registro civil no primeiro Cartório criado no distrito, em 1905, e neste mesmo ano tornou-se o primeiro professor público municipal no povoado da Capelinha.

Euclydes Camargo, depois de exercer o mandato de governador (vereador) municipal, foi nomeado funcionário da Coletoria de Ponte do Itabapoana, e tornou-se muito ligado ao Administrador da Mesa de Rendas da mesma localidade, o coronel José Olympio de Abreu, do qual o capitão Manoel Camargo também era aliado. Em 1910, já agrimensor, fiscalizou as obras das estradas que estavam sendo construídas na região, ligando-se muito ao Presidente (governador) Jerônimo Monteiro (governou o Estado entre 1908 e 1912), que sustentava a política do coronel José Olympio em Ponte do Itabapoana. Em 1911, Euclydes tornava-se funcionário efetivo da Diretoria de Agricultura do Estado. Mudando-se depois para a capital do Estado, iniciaria uma brilhante carreira na repartição, que se encerraria somente com sua morte, em 1931. Eugênio Camargo, todavia, permaneceria residindo no distrito das Torres por toda a sua vida, cuidando do Cartório e dando aulas na escola pública municipal; mas não se envolveu ativamente em disputas eleitorais.

O segundo vereador "torrense" foi Antônio Rolim Nunes de Azevedo, eleito para a legislatura de 1908 a 1912, também com o beneplácito do capitão Manoel Camargo. Afastando-se da política após concluir o mandato, dedicou-se aos negócios. Mantinha ligações com Mimoso, aonde tinha sede a firma Rolim Moreira & Cia, da qual era sócio juntamente com o filho (o poeta Lauro Rolim) e com Nilo Alves Moreira. Mas, em 1926, a saída de Nilo Moreira da sociedade prejudicou sua empresa, que acabou falindo em 1928. Em 1931, conforme dissemos em artigo anterior, sua família mudou-se para o Estado do Rio de Janeiro.

Após a legislatura que terminou em 1912, considerando a mudança da conjuntura comercial de Torres, que ligou-se à Muqui, o distrito deixou de ter representantes na Câmara Municipal de São Pedro do Itabapoana. O "esforço" das principais lideranças políticas de São José das Torres para integrar o "projeto muquiense" de comunicações e comércio foi retaliado pelas lideranças de São Pedro do Itabapoana. O Capitão Manoel Camargo continuou exercendo importante influência no distrito, mas foi se afastando da politica. O diretório municipal do Partido Republicano (que absorveu o antigo Partido Construtor) de São Pedro "isolou" os políticos de Torres, situação que se manteria até a década de 1920, quando novas lideranças apareceram no cenário, e sob uma nova conjuntura. Mas isso narraremos mais adiante.

Antes, vamos encerrar os "fatos políticos" dessa época, e iniciar a narrativa dos primeiros "causos" políticos desses tempos. Assunto para o próximo post.


Gerson Moraes França


São José das Torres - Histórias [Parte 7]

São José das Torres em meados do século XX
Fonte da foto: Mimoso in Foco [mimosoinfoco.com.br] - arquivo Jorge Fabelo

No artigo anterior, tratamos do desenvolvimento político-administrativo de São José das Torres que, antes de ser distrito, era parte do distrito de Mimoso e era chamada de Rio Preto das Torres. Provavelmente por volta de 1898/99 foi inaugurada a Capela de São José, nas terras do capitão Manoel Corrêa Camargo. O pequeno arraial tomava o nome de Capelinha, que foi nome corrente do povoado até inícios da década de 1930. Em 1901, era criado o distrito de São José das Torres, unindo o nome do orago da Capela com o nome da região, com sede na localidade de Capelinha. Em 1904 já estavam eleitas e/ou providas todas as suas autoridades, e no ano seguinte era criada a primeira escola pública municipal e o cartório de registro civil. Capelinha, sede do distrito, ainda um diminuto arraial, tomava ares de pequeno povoado.

A partir de 1910, houve novo e substancial incremento no povoamento do distrito de São José das Torres, que duraria até cerca de 1930. Em 1909, o governo do Estado facilitou a aquisição de terras em Torres, e a crescente valorização do café fez com que afluíssem centenas de pessoas para a região. A partir dessa época, começaram a ser formados novos sítios e novas lavouras de café. Em 1920, a população total do distrito chegava a dois mil e trezentos habitantes. Em 1930, a região tinha sido praticamente toda "repartida", embora ainda houvesse grandes porções inexploradas de matas. O incremento populacional recrudesceria na segunda metade dos anos 1940. Em 1950, a população de Torres atingia quase cinco mil habitantes, e a vila pouco menos de duzentos moradores. Em 1960, passaria dos seis mil habitantes, com pouco mais de duzentos moradores na vila. A partir de então, com a erradicação dos cafezais improdutivos no Espírito Santo, houve grande evasão de população; em 1970, a população do distrito havia recuado para pouco mais de três mil e quinhentos habitantes, tendo a sede permanecido com a população estagnada. Atualmente, São José das Torres possui pouco menos de dois mil e quinhentos habitantes, e a vila tem cerca de setecentos e cinquenta moradores.

Mas aí acabamos avançando demais no tempo, novamente. Recuemos, e voltemos ao começo do século XX.

Já narramos em artigos anteriores que um dos principais "problemas" de São José das Torres, no princípio de seu povoamento e exploração, era a ausência de estradas. Até 1910, o que havia era um caminho que ligava Torres à Pratinha e Mimoso, e diversas picadas interligando as demais localidades. Transporte de cargas, só no lombo de burros. O aumento populacional e o crescimento da produção cafeeira verificada a partir dessa época demandavam melhorias na infra-estrutura viária que servissem de comunicação entre a região e as estações férreas da Estrada de Ferro Leopoldina. E então vai ocorrer um fato interessante, colocando em "competição" duas estações de dois municípios distintos, ambas as mais próximas de São José das Torres.

Até 1895, as comunicações da região de Rio Preto das Torres se dava com o porto do Prata, nas proximidades da Fazenda Pratinha, de onde era exportada a produção local e importados gêneros diversos. Com a inauguração da estação férrea em Mimoso, nesse mesmo ano, esse contato passou a ser feito com essa localidade. Mas ainda não havia nada que pudesse ser chamado de estrada. Em 1902, é inaugurada a estação férrea em Muqui, então pertencente ao município de Cachoeiro de Itapemirim. Ao contrário de Mimoso, que permaneceu estagnada nos sete anos que as pontas dos trilhos terminavam na localidade, Muqui começou a prosperar assim que a linha alcançou o povoado. Logo algumas boas firmas de compradores de café lá estavam instaladas.

Com a crise econômica vivida em finais do século XIX e inícios do século XX, em virtude da queda dos preços do café, as municipalidades ficaram desprovidas de recursos para investirem em grandes obras de infra-estrutura. Assim, até o princípio dos anos 1910, a região de Torres continuou sem boas estradas que escoassem sua produção. Em 1908, foi construída uma boa estrada que ligava Muqui à Taquarussú, região não muito longe de Torres.

Em 1909, a demanda por boas estradas estava na "ordem do dia" entre os fazendeiros e sitiantes de São José das Torres. Nesse mesmo ano, vários lavradores de São José das Torres, capitaneados pelo capitão Felippe Sayd, então Sub-delegado do distrito, pediram ao governo do Estado que prolongasse até Torres a estrada que ia de Muqui à Taquarussú. Era necessária apenas a construção de um trecho de sete quilômetros, ao passo que a construção de uma estrada no caminho até Mimoso demandaria mais que o dobro da distância. Jerônimo Monteiro, presidente (governador) do Estado, cachoeirense e muito ligado à vários dos novos comerciantes de Muqui, como Marcondes Alves de Souza (que também viria a ser presidente do Estado), aprovou o pleito dos moradores de Torres e imediatamente deu início às obras. O "filão" que representava o aumento da produção cafeeira em Torres enchia os olhos de todos, e era visto como fator importantíssimo para incrementar ainda mais o movimento comercial em Muqui. Sem muitos recursos, restou à Mimoso e ao município de São Pedro do Itabapoana apenas observar...

Em 1910, apesar do início das obras da estrada Muqui - Torres, o capitão Felippe Sayd concluiu um trecho de cerca de dois quilômetros de estrada carroçável, ligando Torres aos limites com o distrito de Mimoso. Mas, daí em diante, permanecia o antigo caminho que só podia ser percorrido por tropas de mulas. Ainda em 1910, os moradores de Santa Rosa, capitaneados pelo professor Eugênio Camargo, também fazendeiro naquela região, pedem a construção de uma estrada ligando a localidade à sede do distrito. O tenente Euclydes Camargo, fazendeiro em Torres e ex-vereador de São Pedro, agora funcionário da Coletoria de Ponte do Itabapoana e também agrimensor, era o responsável pela fiscalização dessas obras. Em 1912 a estrada Muqui - Torres estava totalmente concluída, entroncando-se com o trecho construído por Felippe Sayd. E, com a conclusão dessa estrada, todo o comércio de São José das Torres foi deslocado para a estação férrea de Muqui. A abertura dessa estrada também incrementou o povoamento da região, e era o agrimensor Geraldo Vianna, residente em Muqui, quem "comandava" a distribuição e medição dessas novas terras.

Até o final da década de 1920, essa infra-estrutura viária e logística que ligou Torres à Muqui seria a vigente no distrito. Toda a exportação de sua produção cafeeira, bem como a importação de gêneros, era feita através da estação férrea muquiense e de seus comerciantes e compradores de café. Essa situação manter-se-ia até que um administrador são-pedrense, então morador em Mimoso, resolvesse integrar Torres à aquele povoado por uma boa estrada. Trata-se de Joaquim de Paiva Gonçalves, então presidente da Câmara de São Pedro do Itabapoana. Mas, essa história, contaremos mais para frente.


Gerson Moraes França


São José das Torres - Histórias [Parte 6]

São José das Torres em meados do século XX
Fonte da foto: Mimoso in Foco [mimosoinfoco.com.br] - arquivo Jorge Fabelo

No último post (Parte 5), falamos um pouco sobre algumas das pessoas que fizeram parte daqueles tempos primevos da história de São José das Torres. Ao fundamentar nossa escolha pelos referidos nomes, informamos que um dos motivos que nos norteou foi o fato de serem, todos eles, dos primeiros povoadores e/ou das primeiras autoridades do distrito. Continuaremos falando deles, e de outros mais, no presente artigo; mas mudaremos o enfoque. Ao invés de focar nas pessoas, agora focaremos na localidade e em seu "desenvolvimento" político-administrativo.

Como já foi dito em artigo anterior, o distrito de Mimoso foi criado em 1892. Nessa época, a região da atual São José das Torres chamava-se, genericamente, de Rio Preto das Torres, e estava ocorrendo o início do processo de povoamento e exploração da localidade. Essa região, portanto, fazia parte do recém criado distrito de Mimoso, e uma picada que partia da Fazenda da Pratinha galgava a serra e servia como via de comunicação.

Importante fazer a distinção da nomenclatura dessas regiões. Isso porque, conforme as diferentes características geográficas das terras do atual distrito de São José das Torres, há dois timing's em seu processo de povoamento e exploração, como já vimos nos artigos precedentes. A porção mais baixa e próxima ao rio Itabapoana era chamada de "Rio Preto do Itabapoana". Como vimos, essa região teve seu início de exploração e povoamento ainda na década de 1830, mas o "impulso colonizatório" que veio por via fluvial estancou-se por lá mesmo. Já a porção mais alta das encostas e montanhas da serra das Torres era chamada de "Rio Preto das Torres", e é essa a região que nos importa agora, pois foi a sua ocupação e exploração que deu origem ao atual distrito de São José das Torres.

Assim, foi no princípio da década de 1890 que iniciou-se a colonização da região de Rio Preto das Torres. Pequenas propriedades, se comparadas com as grandes fazendas da região central da Freguesia de São Pedro do Itabapoana, visando principalmente o plantio de café, usando de mão de obra livre e com capitais limitados. Mas foi o suficiente para sedimentar o gérmen que daria origem ao distrito. Apesar da crise de preços do café, em 1895, e de não ocorrer novas formações de lavouras cafeeiras em todo o município de São Pedro de Itabapoana até cerca de 1910, esses primeiros habitantes do Rio Preto das Torres, sitiantes ou posseiros, iniciaram a formação de uma comunidade.

Em algum momento entre 1894 e 1901, provavelmente entre 1898 e 1900, os moradores da localidade construíram a primeira Capela da região, cujo orago era São José. Apesar de já estarmos na República, a mentalidade centenária de que, para a formação de um arraial, era necessário haver uma Capela levantada, ainda vigorava no costume dos contemporâneos. Informa-nos Grinalson Medina, em seu trabalho, que a Capela de São José foi inaugurada "(...) anteriormente a 1900, sendo seus principais fundadores os Srs. Manuel Corrêa Camargo, Eugênio Camargo, Felix Machado, Domingos de Souza Barbosa, Antônio Rolim Nunes de Azevedo (...)". Já discorremos um pouco sobre sobre eles no artigo anterior.

Ao redor dessa Capela surgiria o primitivo e diminuto arraial, que tomou o nome coloquial de "Capelinha". Inicialmente, pouquíssimas casinhas; talvez quatro ou cinco. Pouco tempo depois da inauguração da Capela, em 15 de setembro de 1901 a Câmara Municipal de São Pedro do Itabapoana, conforme nos assevera Grinalson Medina, criou o distrito de São José das Torres. Desmembrado do distrito de Mimoso, abarcando em seu território todas as vertentes do Rio Preto que estivessem sob a jurisdição do município de São Pedro, desde a serra das Torres até o rio Itabapoana. Unia-se o nome do orago da Capela, São José, com o nome da região, Torres. A sede do distrito era no povoado da Capelinha. Era o começo da "vida" político-administrativa do distrito.

Interessantemente, nessa época e pelo menos até o final da década de 1920, as pessoas não chamavam o recente povoado, ou o distrito, de "São José das Torres". A região era comumente chamada de "Torres" (costume ainda corrente nos dias de hoje), e a unidade administrativa era chamada de "distrito das Torres". Já o povoado era chamado de "Capelinha", conforme narramos acima. O nome "Capelinha" para o povoado, atual vila de São José das Torres, só deixou de ser usado no decorrer da década de 1930. É um processo semelhante com o que ocorreu em muitas outras localidades, como por exemplo Marapé (antigo nome de Atílio Vivacqua, e que mantém-se ainda hoje) ou Lagartos (antigo nome de Muqui, que foi eclipsado pela última nomenclatura).

As primeiras eleições para Juízes Distritais de São José das Torres ocorreram em 19 de julho de 1904. Foram eleitos o alferes João Franklin Gonçalves de Lima, Antônio Rolim Nunes de Azevedo, José Vieira de Souza Marques e Felix José da Silva. Nessa época, esses cargos eram disputados e de certa importância, pois os Juízes Distritais possuíam várias atribuições e competências relevantes naquele tempo, dentre elas o cobiçado "controle" das mesas eleitorais. Não se esqueçam que aquela época era a das eleições "no bico da pena"... Nesse mesmo ano, foi eleito o primeiro governador municipal (vereador) de São Pedro do Itabapoana com domicílio em Torres: o tenente Euclydes Moreira Camargo. O "chefe político" de São José das Torres era o capitão Manoel Corrêa Camargo, que em 1906 seria elevado à condição oficial de representante do distrito das Torres no diretório político municipal do Partido Construtor (então, o partido que estava no poder, tanto no município, quando no Estado). O primeiro Sub-delegado, cargo de nomeação por parte do presidente (Governador) do Estado, foi o alferes João Franklin, substituído em 1904 pelo capitão Felippe Sayd da Rocha.

Em 22 de setembro de 1905 foi criado, pela Côrte de Justiça do Estado, o cargo de Oficial do Registro Civil do distrito de São José das Torres e, portanto, o seu primeiro Cartório. Inicialmente foi nomeado um certo José Benedicto para exercer a função, sendo logo substituído por Eugênio Ribeiro Camargo, que exerceria esse cargo por cerca de trinta anos. Eugênio Camargo também foi o primeiro professor público de São José das Torres, da escola municipal criada pela Câmara de São Pedro do Itabapoana nesse mesmo ano de 1905, e também exerceria essa função por longos anos.

Assim, por volta de 1905, o distrito de São José das Torres já estava provido de todas as suas autoridades administrativas e das principais "repartições" distritais. O primitivo arraial, conhecido como Capelinha, agora povoado e sede do distrito, começou a crescer bem vagarosamente. Trinta anos depois, em 1935, quando o nome "Capelinha" já estava quase em desuso, o povoado sede de São José das Torres possuía vinte casas e, dentre elas, cinco estabelecimentos comerciais, com quase cem moradores.


Gerson Moraes França


quarta-feira, 23 de setembro de 2015

São José das Torres - Histórias [Parte 5]

As baixadas do rio Preto, tendo ao fundo a silhueta da serra das Torres
Fonte da foto: Prefeitura de Mimoso do Sul [mimosodosul.es.gov.br]

Nos post's anteriores (Partes 1 a 4) construímos todo o pano de fundo para se compreender os princípios e a continuidade do processo histórico de São José das Torres. O início de sua exploração, colonização e povoamento, as conjunturas sociais e econômicas vigentes, o desenvolvimento de suas vias de comunicação, dentre outras informações que entendi serem importantes para se escrever a história da localidade.

Agora, vamos falar de pessoas e de lugares. Pessoas que participaram desse processo, em tempos diferentes. Lugares que surgiram desse processo, em localidades distintas. Como essa série de artigos já se estendeu muito além do que, em princípio, eu imaginei, ficarei adstrito às pessoas que fizeram parte dessa história em seus períodos mais recuados ou importantes, segundo a minha ótica. E, é claro, restringir-me-ei a falar das pessoas que participaram da ocupação ou desenvolvimento da "porção cafeeira" da região. Afinal, foram os fazendeiros, sitiantes e posseiros das zonas de montanha e das encostas que deram início ao processo que culminaria com a criação do distrito de São José das Torres.

Desse modo, esqueçam de Antônio Gomes Guerra e de Justino de Sá Vianna, os primeiros e maiores fazendeiros da margem do rio Itabapoana em terrenos hoje pertencentes à São José das Torres. As regiões ocupadas por suas fazendas não influenciaram na posterior exploração e povoamento da parte norte e oeste de Torres, que foram as regiões que nuclearam a formação do distrito e do povoado primitivo que hoje lhe serve de sede. Esqueçam, também, da Fazenda da Muribeca, cuja sede ficava no atual município de Presidente Kennedy e que, em teoria, tinha suas terras se estendendo até regiões hoje torrenses. Tanto esqueçam, que nem tratei da Muribeca nos artigos anteriores. Isso porque, apesar de "legalmente" as terras da Muribeca se estenderem por oito léguas terra adentro (quase 50 quilômetros), de fato os proprietários dessa fazenda nunca exploraram ou mediram as terras para além das regiões mais próximas do mar. Se a influência dos primeiros fazendeiros sanjoanenses ou campistas nas margens do rio Itabapoana foi pequena na posterior colonização das Torres, a influência da Muribeca foi praticamente nula. Serviu apenas para tentar embaraçar aqueles primeiros posseiros, mais tarde fazendeiros, que se estabeleceram às margens do rio Itabapoana; sem sucesso, porém.

No início dos anos 1890, foi aberta a primeira picada que dava acesso às águas vertentes do rio Preto, acessando-o a partir das águas vertentes do rio Muqui do Sul. Nos anos subsequentes, um pequeno punhado de posseiros e sitiantes fez, na região das Torres, as primeiras abertas e as primeiras derrubadas para a formação de lavouras cafeeiras. Essas primeiras situações estavam localizadas, principalmente, no curso do ribeirão Paraízo, estendendo-se ao norte pelos vales dos córregos das Flores, do Pharol e do Sabão, estendendo-se ao sul até os córregos Bandeira e Santa Rosa, e ao leste até o Cajú e o próprio rio Preto em sua parte mais alta. Como disse o Dr. Monteiro da Silva em 1898, essas abertas e pequenas derrubadas pareciam ilhas no meio de um oceano de matas.

Dos primeiros que lá chegaram, fizeram abertas, derrubadas e formaram lavouras cafeeiras, destacaram-se alguns que, mais tarde, tornaram-se bem sucedidos fazendeiros e lideranças políticas em São José das Torres. Talvez os mais importantes nesses primeiros tempos tenham sido os Camargo. Não consegui precisar o ano exato que chegaram em Torres, mas em 1894 já tinham posses abertas na região, fazendo-nos presumir que chegaram entre 1892 e 1893, e talvez até antes. É certo que foram dos primeiros, se não "os" primeiros. O "chefe" da família era o capitão Manoel Corrêa Camargo, e os terrenos da atual vila de São José das Torres, então inexistente, ficavam encravados no meio de suas propriedades. Posteriormente, adquiriu por compra algumas terras de requerentes que não exploraram suas áreas, bem como formou algumas posses que, mais tarde, foram compradas e legitimadas. Seus filhos e alguns parentes, como o tenente Euclydes Moreira Camargo, Eugênio Ribeiro Camargo e Procópio Moreira Camargo também foram proprietários na região de Torres.

Outro importante proprietário na região foi Antônio Rolim Nunes de Azevedo, pai do poeta Lauro de Azevedo Rolim, que foi citado na Parte 1 das presentes Histórias. Fazendeiro e comerciante, Antônio Rolim talvez tenha sido o primeiro que se dedicou ao comércio de compra e venda do café produzido na região das Torres. Constituiu uma empresa cuja razão social denominava-se Rolim Moreira & Cia, junto com o filho e com Nilo Alves Moreira, cuja sede ficava no povoado de Mimoso. Suas terras ficavam no Rio Preto das Torres, e mais tarde posseou e adquiriu terras na localidade de Nova Descoberta. Em suas terras havia uma grande jazida de turfa, que começou a ser explorada por volta de 1916 e 1917, sendo mais tarde abandonada essa atividade. Também não consegui apurar a data exata de sua chegada na região. Suas terras no rio Preto só foram legitimadas em 1905, mas há referência de sua presença em Torres desde pelo menos 1897. Em 1931, a sua família deixou a região e mudou-se para o Estado do Rio de Janeiro.

Outro fazendeiro de relevo em São José das Torres foi Domingos de Souza Barbosa. Suas terras estavam situadas no rio Preto, e também possuíam grandes turfeiras exploradas na mesma época que as de Antônio Rolim. Eram ambos, inclusive, sócios na empresa que explorou essas jazidas entre 1916 e 1919. Domingos, porém, mudou-se de Torres para o município de Ponte de Itabapoana em 1919, e lá foi elemento de destaque: exerceu os cargos de delegado de polícia, vereador e prefeito municipal na década de 1920. Como os outros, é difícil precisar a data da chegada desse cidadão em Torres. Teria chegado antes de 1900, segundo podemos aferir do livro de Grinalson Medina.

Também podemos citar Felix José da Silva, cujo requerimento de compra de terras em São José das Torres só foi protocolado em 1909. Teria chegado quanto tempo antes na região? Segundo Grinalson Medina, estabeleceu-se antes de 1900. Felix José faleceu entre 1916 e 1921, endividado com a Fazenda Nacional e correndo o risco de perder a suas terras.

Por fim, o capitão Felippe Sayd da Rocha. Tinha uma posse no córrego do Sabão, que foi comprada, medida e legitimada em 1911. Há registros de que já se encontrava em São José das Torres desde pelo menos 1903. Foi quem iniciou a cultura intensiva e comercial de arroz em Torres. Foi um dos principais impulsionadores da construção de boas estradas que ligassem Torres às estações férreas. Em 1909, entregou para trânsito público um trecho de dois quilômetros de estrada carroçável, ligando o distrito de Torres aos limites do distrito de Mimoso, entroncando a via com uma estrada já existente. Ainda nesse ano, conseguiu que o governo do Estado iniciasse as obras de prolongamento da boa estrada que ligava Muqui à Taquarussú, e que deveria atingir Torres. Essa estrada ficou totalmente concluída em 1911, e foi a primeira boa estrada propriamente dita que ligou Torres à uma estação férrea. Também em 1911, requereu a concessão de um prêmio ofertado pelo governo do Estado, por ter produzido grande quantidade de arroz. Infelizmente, não pôde presenciar esse tão importante melhoramento para Torres, e nem receber o tão merecido prêmio: Felippe Sayd foi assassinado no dia 27 de fevereiro de 1911.

Escolhi esses cinco cidadãos por várias razões. Uma delas, no que toca aos quatro primeiros citados, é que participaram ativamente da construção e fundação da primeira Capela erguida na região: a Capela de São José, que nuclearia a formação do primeiro arraial (hoje vila e sede do distrito) e emprestaria o nome de seu orago para nominar o distrito que seria criado em 1901: São José das Torres. Outra razão é o fato de que foram, todos eles, as primeiras lideranças e/ou autoridades do distrito de Torres quando este foi criado, além de terem sido dos seus primeiros moradores e fazendeiros. No que toca aos dois primeiros e ao último citado, além de lideranças políticas, propugnaram ativamente pelo desenvolvimento de Torres em seus primórdios.


Gerson Moraes França


São José das Torres - Histórias [Parte 4]

Tropa de burros para o transporte de cargas, em Castelo/ES.
Fonte da foto: Descubra Castelo [descubracastelo.com.br]

Confeccionar a história de uma localidade não é uma tarefa fácil. É preciso, além de pesquisar um recorte temporal de dezenas ou de uma centena de anos, fazer comparações no tempo e no espaço e dar sentido aos fatos espalhados. É o que estou tentando fazer ao escrever esses artigos sobre São José das Torres. Eu poderia apenas elencar e citar uma sucessão de acontecimentos, mas aí eu não estaria cumprindo o papel de um historiador; estaria executando o trabalho de um memorialista. Nada contra os memorialistas e suas sucessões de fatos; isso também é um trabalho importante e, por vezes, extenuante e difícil. Mas um pretenso historiador, como me intitulo, precisa ir mais além.

Na primeira metade da década de 1890, como já disse nos artigos que precederam a esse, iniciou-se a ocupação das porções norte e oeste das montanhas, vales e encostas do atual distrito de São José das Torres. Abrindo picadas, esses primeiros posseiros ou sitiantes galgaram o divisor de águas entre os rios Muqui do Sul e Preto e iniciaram o povoamento e a exploração dessa região. A força motriz que impulsionou esses pioneiros foi a aquisição de terras para a formações de lavouras cafeeiras, numa conjuntura de altos preços do café e relativa facilidade para a aquisição de propriedades numa região ainda coberta da mata virgem e de difícil acesso e precárias comunicações.

As primeiras abertas e derrubadas iniciaram-se ainda no começo da década de 1890, e até 1895 formaram-se algumas boas lavouras de café no meio das florestas que dominavam a região. Parcos capitais e dificuldades devido a pouca mão-de-obra disponível limitaram o alcance da inexorável marcha da "fronteira agrícola". A crise de 1895 entravou a expansão das lavouras cafeeiras, que permaneceram estáticas até cerca de 1910. A partir dessa data e até o final da década de 1920, a valorização do café e a facilidade para a aquisição de terras proporcionou a ocupação ou demarcação de quase todo o terreno.

Retornemos ao início desse processo de ocupação. Em 1898, portanto nos princípios do povoamento de São José das Torres, Dr. José Ribeiro Monteiro da Silva, proprietário das Fazendas do Belmonte e das Palmeiras, assim descrevia a situação da região de Torres:
"Subindo uma serra, a mais elevada e extensa para cá do mar, encontra-se um canto onde a natureza ainda não foi atingida pelo gume afiado do machado (...). As matas são frondosas (...). Nas Torres, lugar muito próximo da Estação do Mimoso e do rio Muquy do Sul, o Governo do Espírito Santo possui milhares de hectares de superiores terras, que vende a preços baixos e em lotes de 20 a 200 hectares; (...) Já existem alguns sítios onde se admira a corpulência do cafeeiro (...). Os fracos sitiantes, diante de tanta fertilidade, pouco fazem pela indolência da maioria dos habitantes, que vivem da caça e pesca, abundantes naquelas paragens, e por falta de capital. Por esse motivo, está muito atrasado e ignorado, e notam-se aqui e acolá acanhadas abertas parecendo pequenas ínsulas no meio do oceano. Nas encostas da serra, onde o terreno é mais fértil, a temperatura mais amena e a água mais abundante, sempre fresca e cristalina. (...) Torres fica distante apenas 18 quilômetros da estação do Mimoso, 12 do Muquy do Sul que é navegável, e 3 do rio Preto, também navegável; necessitando apenas de uma limpeza (...). As terras são virgens e ricas em húmus, e comportam centenas de famílias. Nas matas não faltam as mais apreciadas madeiras de construção e móveis; (...)"

Na época que Monteiro da Silva fez esse escrito sobre Torres, os primeiros cafezais plantados na região estavam dando suas primeiras safras. Ainda eram poucos e pequenos os sítios e as lavouras, se comparados com as fazendas e os cafezais da zona central do município de São Pedro do Itabapoana. Importante informar que a região de Torres pertencia ao distrito de Mimoso, criado em 1892.

Cerca de dez anos depois, em 1909, Geraldo de Azevedo Vianna, da Comissão de Terras e Colonização do Estado, discorreria sobre Torres. Nessa ocasião, São José das Torres já era um distrito do município de São Pedro; foi criado em 1901:
"Aqui no sul do Estado, uma importante zona em terras devolutas, que oferece enormes vantagens a qualquer gênero de cultura, se acha quase deserta e desconhecida em São José das Torres (...). A falta de estradas que deem comunicação com estação de estrada de ferro e pontos comerciais, e quiçá o preço das terras estabelecido pelo decreto (...) de 1894 e pela Lei (...) de 1908, em desacordo com a depreciação oriunda da crise de desvalorização que sofrem os produtos agrícolas, tudo isso tem concorrido para o inaproveitamento de um terreno de grande e incontestável valor produtivo. É óbvio que somente as circunstâncias aludidas justificam a existência de grande área sem um só habitante, possuindo assim perfeitamente conservadas as suas matas (...). Estes terrenos são banhados por vários córregos tributários do rio Preto (...). Situados a sudeste de uma cordilheira de serras que se estende de nordeste para o sudoeste, partindo do vale do Itapemirim e terminando no vale do Itabapoana (...) esses terrenos dividem-se, quanto a altitude, clima e configuração topográfica, em três categorias: a primeira, montanhosa, onde é relativamente pequena a área de terras devolutas por já existirem nessa parte várias posses legítimas; a segunda, uma grande planície com declive suave entrecortada de pequenos serrotes que se ramificam do terreno montanhoso em sentido paralelo com os mananciais; a terceira, planície marginal do rio Preto (...) que se prolonga até as respectivas fozes. (...)"

Nesse escrito, Geraldo Vianna constata que a depreciação dos preços do café, ainda não totalmente superada, brecava o desenvolvimento da região das Torres. As porções montanhosas e das encostas já estavam, porém, em boa parte ocupadas ou demarcadas, embora sua exploração ainda fosse incipiente e as propriedades tivessem enormes porções de matas virgens; algumas delas, considerando o recrudescimento dos pedidos de compra de terras devolutas ou de legitimações de posses verificadas a partir desse ano de 1909, ainda não tinham nem mesmo uma aberta. Isso demonstra que, mesmo com a crise de preços do café que durou de 1895 até cerca de 1910, a região montanhosa e de encostas continuou sendo requerida, comprada ou posseada, embora não tenha ocorrido a formação de novas lavouras cafeeiras. 

Em 1910, a produção de café do distrito de São José das Torres era de seis mil arrobas, metade do que se produzia no distrito de Mimoso (doze mil arrobas), e menos de dez porcento do que se produzia no distrito-sede de São Pedro (noventa mil arrobas) e no distrito de Conceição do Muqui (oitenta mil arrobas). Seu transbordo se dava através de caminhos ruins onde transitavam tropas de burros, e que demandavam as estações ferroviárias de Mimoso e de Muqui. Nesse mesmo ano, reiterava Monteiro da Silva que "nas cabeceiras do rio Preto, nos lugares conhecidos por Santa Rosa e São José das Torres ainda existem grandes matas virgens". Em 1912, o município ainda possuía muitas matas virgens em todo o seu território, sobressaindo-se porém as matas de São José das Torres com sua variada fauna. Entre as montanhas e encostas da serra das Torres e as margens do rio Itabapoana, quedava-se inculta e quase sem exploração uma extensa zona da planície, onde já se constatara a existência de grandes jazidas de turfas. Nesse mesmo ano, nas margens do rio Itabapoana, já existiam dez boas fazendas de gado, que pastavam nos campos nativos da região. Esse gado era exportado para Vitória e Campos, por terra, levando de seis a oito dias para chegar à primeira cidade, e de três a quatro dias para chegar à segunda. De Campos, o gado também era encaminhado, por via férrea, para Niterói.

No início da década de 1910 reinicia-se o processo de expansão da zona cafeeira em São José das Torres, com o aumento progressivo das lavoras de café e a abertura de novos sítios e fazendas. Esse processo estendeu-se ininterruptamente até o final da década de 1920, quando a crise de 1929 estancou a formação de novas lavouras por alguns anos. Já na década de 1920 as criações de gado começaram a subir o rio Preto, aproveitando suas pastagens naturais; e da década de 1930 em diante, iniciam-se as derrubadas para a formação de novas zonas de pastagens nas partes intermediárias. Na segunda metade da década de 1940 e no início da década de 1950 houve um aumento das lavouras cafeeiras na região montanhosa que, apesar da intensa exploração, ainda mantinha grandes regiões de matas virgens, enquanto os cafezais mais velhos da zona intermediária foram dando lugar, vagarosamente, às pastagens. Na metade da década de 1950 a expansão de novas lavouras cafeeiras na zona montanhosa cessou por causa da baixa dos preços do café, e na segunda metade de década de 1960 foram erradicados milhares de pés de café em toda a região. Foi depois da erradicação dos cafezais pouco produtivos que iniciou-se o cultivo intensivo e comercial da banana, em finais dos anos 1960 e inícios da década de 1970, bem como ensaiaram-se as primeiras extrações de mármore e granito na região.

Mas aí estamos tratando da história mais recente, que foge ao propósito dos meus artigos e avança para além do recorte temporal que escolhi para pesquisar e escrever.


Gerson Moraes França


São José das Torres - Histórias [Parte 3]

Parte da Serra das Torres - São José das Torres - Mimoso do Sul
Fonte da foto: [www.mapio.cz/a/14476254]
Traçamos, no post anterior (Parte 2), um apanhado geral que explicou e demonstrou como foi a ocupação e exploração das terras das montanhas e encostas, mais altas, que ficam situadas na parte norte, noroeste e oeste do distrito de São José das Torres. Foi a colonização dessa área que nucleou a formação do que se tornaria o distrito e que daria origem ao arraial que hoje é a vila sede do mesmo distrito. Vimos que a ocupação dos terrenos baixos nas margens do Itabapoana foi mais antiga, mas que estancou por lá mesmo e não teve papel substancial na ocupação posterior das regiões cafeeiras do oeste e norte da região. Também vimos que a ocupação das terras de São José das Torres ocorreu em duas fases, com conjunturas próprias. A primeira fase, tímida, na década de 1890, quando houve a exploração e a abertura dos primeiros sítios, situações e posses. E a segunda fase, mais pujante, nas décadas de 1910 e 1920, quando foi ocupado ou demarcado praticamente toda a extensão do território.

Agora, seremos um pouco mais específicos, e discorreremos mais vivamente sobre a história dessa região nessas duas fases, e também no interstício entre elas. Começando, obviamente, pela primeira fase.

Por volta de 1885, quando a quase totalidade da região central do município de São Pedro do Itabapoana já estava ocupada e demarcada, quando enormes fazendas cafeeiras com suas grandes sedes pululavam pelos vales do ribeirão São Pedro e do médio e alto Muqui do Sul, quando já existiam os povoados de São Pedro de Alcântara (praticamente uma vila, seria elevada à essa condição em 1887) e de Nossa Senhora da Conceição do Muquy, bem como o recente arraial de Ponte de Santo Eduardo (atualmente, Ponte do Itabapoana) e o "proto-arraial" da Ponte do Mimoso (atual sede de Mimoso do Sul), além do antigo povoado de Limeira (que começava a decair), começou-se a olhar para aquelas terras que ficavam nas encostas orientais da cadeia de montanhas que se estendia no rumo nordeste-sudoeste, no extremo leste da Freguesia de São Pedro do Itabapoana. Até então, na prática, aquela cordilheira servia como limite entre São Pedro, então pertencente ao município de Cachoeiro de Itapemirim, e o município de Itapemirim. Em toda a sua extensão, matas virgens e floresta fechada desciam dos cumes, cobrindo as encostas e estendendo-se pelos suaves morretes até as pastagens nativas do rio Preto que, legalmente, formava a divisa entre São Pedro (município de Cachoeiro de Itapemirim) e Barra do Itabapoana (município de Itapemirim).

Nesse ano, as autoridades do município de Itapemirim propuseram a colonização dessa região de terras devolutas que, na época, se chamava de Torres do Rio Preto. Tal pretensão não se concretizou na ocasião, até porque havia dúvida no que toca às divisas entre os municípios nas cabeceiras do rio Preto, que servia como limite entre as comunas. Mas a ideia de se colonizar aquela região foi lançada e, poucos anos depois, teve início a primeira fase de ocupação efetiva da localidade. Já vimos que em 1892 foi feita a primeira venda de terras devolutas, uma área de quase 50 hectares no córrego Flores requerida pelo Dr. José Coelho dos Santos, então governador municipal (vereador) da Câmara de São Pedro do Itabapoana. Também já vimos que foi nessa época que a "fronteira agrícola" alcançou as vertentes do Rio Preto em sua porção norte e oeste, nas montanhas e encostas das terras mais altas. Muitos fazendeiros abastados de São Pedro do Itabapoana requereram a compra de terras nessa região, entre 1894 e 1895, como o comendador Leopoldino Gonçalves Castanheira (Torres), José Olympio de Abreu, Julio Cesar Monteiro da Gama e Pedro Ricardo de Sant'anna (os três no córrego Paraízo) e Manoel Teixeira de Oliveira (Degredo de Torres). E, também, muitas famílias não tão ricas, mas com dinheiro suficiente para comprar e medir as terras e formar suas lavouras. É nessa época que começa a tímida ocupação dos córregos Paraízo, Santa Rosa, Sabão e Flores, bem como de localidades como o Pharol, Paraizinho, Bandeira e Cajú, além do próprio alto Rio Preto. Em 1896, o Estado remeteu um engenheiro para mapear e levantar todos os lotes em Torres.

Muitas dessas propriedades requeridas ou compradas, porém, não seriam exploradas, como vimos no artigo anterior. A crise de preços do café que se iniciou em 1895 atravancou o investimento e a formação de lavouras cafeeiras nessa região. Nessa primeira fase, quem formou cafezais até 1895 é que permaneceu na localidade. Dos abastados fazendeiros sãopedrenses adquirentes de terras em Torres, nenhum deles chegou a formar lavouras de café nesse período, e a maior parte vendeu as terras compradas ou acabou não comprando as terras requeridas. Coube aos proprietários "novos", não tão ricos mas providos de recursos, ocupar e explorar as terras de São José das Torres. E, conforme já foi relatado, nenhuma nova plantação de café foi formada por cerca de 15 anos, entre 1895 e 1910.

Além da baixa do preço do café, da escassez de capitais e da falta de braços para o trabalho, havia um outro fator que atrasava o desenvolvimento dessa região: a ausência de estradas. As primeiras penetrações foram feitas através de picadas abertas no meio da mata, que subiam a serra pelos vales dos afluentes do rio Rio Muqui do Sul, atingiam as gargantas do divisor de águas entre os maiores cumes e desciam pelos afluentes do rio Preto. A primeira dessas picadas, que serviu como via de comunicação por muito tempo, foi aberta por volta de 1890. Importante salientar que as primeiras explorações da região das vertentes do rio Preto iniciaram-se por volta de 1885, embora o início da ocupação tenha sido pouco posterior. Antes de 1892, quando foi feita a primeira venda pelo Estado de terras devolutas em Torres, já havia quem iniciava as explorações do terreno e abria as primeiras picadas que serviriam aos primeiros posseiros e sitiantes.

Essa primeira picada saía da grande Fazenda Pratinha, no Muqui do Sul e próxima ao porto do Prata, subia pelo córrego Pratinha, passava pela Fazenda do Cedro nas cabeceiras do mesmo córrego e atingia o divisor de águas na garganta entre as serras da Prata e do Farol; daí entrava nas águas vertentes do rio Preto pelo ribeirão Paraízo, passando pelo que se tornaria as Fazendas Vale do Paraízo e Paraizinho e chegando aos alagados do rio Preto. Ao chegar aos alagados, fazia uma dobra para o norte no rumo do córrego do Pharol e do ribeirão das Flores. Anos mais tarde outras picadas seriam abertas, como a que saía do ribeirão Belmonte, subia pelo córrego Candura, atravessava o divisor de águas entre as serras do Palmital e da Estrela e atingia as cabeceiras do córrego do Pharol, bem como a picada que subia pelo córrego Santa Maria, cortava a serra de Santa Rosa a atingia as cabeceiras do córrego Santa Rosa, e a picada que fazia seu caminho passando ao sul da serra de Santa Rosa, subindo pelo córrego Cerejeira e atingindo as cabeceiras do mesmo córrego Santa Rosa acima citado.

Todas essas picadas, algumas das quais se transformaram mais tarde em caminhos, eram abertas rasgando a mata virgem, seguindo e obedecendo as limitações e as vicissitudes do terreno. Foi por elas que se iniciou o povoamento de São José das Torres, servindo de vias de comunicação, e era por elas que se escoava a produção de suas recentes lavouras, apesar de todas as dificuldades. Somente em 1909 é que foram iniciadas as obras da primeira estrada que ligaria o distrito de São José das Torres às estações dos povoados sitos na beira da linha férrea. Mas essa história narrarei mais para frente. Essas picadas e caminhos buscavam comunicar São José das Torres com as localidades por onde se fazia a exportação do café produzido na região. Inicialmente, com o porto do Prata; posteriormente, com as estações da linha férrea.


Gerson Moraes França


São José das Torres - Histórias [Parte 2]


Serra das Torres, divisora de águas das bacias dos rios Preto e Muqui do Sul
Fonte da foto: Geocosta [geocostan.webnode.com.br]

Vimos, no post anterior, que as terras que atualmente fazem parte do distrito de São José das Torres, parte integrante do município de Mimoso do Sul, tiveram timing's diferentes no que toca a sua ocupação e exploração, de acordo com as características geográficas de cada uma de suas regiões. A região baixa ao sul, nas margens do Itabapoana, começou a ser explorada na primeira metade da década de 1830, primeiramente com a atividade extrativista de madeiras. Na década de 1840, já havia algumas propriedades agrícolas nessa região, destacando-se a fazenda Santa Cruz, de propriedade do sanjoanense Antônio Gomes Guerra. Posteriormente, a atividade pecuária e a lavoura de mantimentos tomou alguma proporção, considerando que a lavoura cafeeira não rendia bons frutos nessa região.

Na década de 1860, Gomes Guerra ensaiou uma tentativa de explorar a região das encostas da serra das Torres que, porém, não foi a frente pois a morte o levou em 1869. A grande quantidade de terras virgens que ainda existiam na zona central de São Pedro do Itabapoana, já com vias de comunicação e consideradas mais próprias para a lavoura cafeeira, continuou atraindo os fazendeiros e seus capitais, em detrimento das zonas mais periféricas e de difícil acesso. Estagnava-se, assim, o esforço de penetração que, das margens do Itabapoana, tentara subir o rio Preto e ocupar as encostas da serra das Torres.

Por longos anos, a região montanhosa da serra que atualmente faz parte do distrito de São José das Torres permaneceria praticamente inexplorada, com suas densas e frondosas florestas dominando os cumes e os córregos das vertentes do rio Preto. Foi na década de 1890 que essa situação começou a mudar. Com a crescente valorização do café e a virtual ocupação de todos os terrenos da zona central de São Pedro do Itabapoana, a "marcha" da "fronteira agrícola" tomou o rumo do oeste, em busca das terras virgens que abundavam na serra das Torres e nas suas encostas orientais. É curioso, mas a ocupação das vertentes da margem norte do rio Itabapoana foram levadas a efeito do interior para o litoral. Assim, as terras altas mais orientais, que são as que se situam mais perto do mar, foram as últimas a serem colonizadas. Transpondo os vales entre as maiores elevações que servem como divisores de águas entre a bacia do rio Muqui do Sul e a do rio Preto, os primeiros posseiros tornaram-se sitiantes nessa zona.

Até o início da República, em 1889, todas as terras devolutas eram de "propriedade" do governo central, do Império (hoje, seria como se fossem da "União") e regulamentadas pela Lei de Terras de 1850 e seu regulamento de 1854. Era uma repartição imperial que legitimava, concedia, vendia e media as terras públicas. A partir da República, as terras devolutas passaram a ser de titularidade dos Estados, sucessores das antigas Províncias, e cada Estado passou a ser o gestor das terras públicas situadas em seus territórios. Adentrar na esfera das várias leis estaduais concernentes à concessão das terras públicas fugiria ao objeto do presente artigo, para além de estendê-lo demais. Ficaremos adstritos apenas aos fatos que interessam para contar o início da ocupação da região mais alta de São José das Torres.

Assim, como dissemos, foi na década de 1890 que iniciou-se o processo de ocupação e colonização das vertentes e cabeceiras do rio Preto e de seus afluentes. Importante fazer essa distinção, pois a serra da Torres não está situada somente em São José das Torres. Como foi relatado no artigo anterior, essa serra, em sua porção norte, serve de limite entre os atuais municípios de Mimoso do Sul, Muqui e Atílio Vivacqua. E, em toda a sua extensão no rumo norte-sul, essa cadeia de montanha serve como limite entre os distritos de São José das Torres e o distrito-sede de Mimoso do Sul. Suas bordas ocidentais foram exploradas antes, de acordo com a região. Na parte que bordeia o município de Atílio Vivacqua, a penetração começou nas décadas de 1860 e 1870. Nas encostas que estão no município de Muqui, sua exploração começou já no início da década de 1860. As encostas que ficam à leste, em terras do distrito-sede de Mimoso do Sul, foram exploradas nas décadas de 1860 e 1870. Foi a partir dessas zonas já ocupadas e exploradas, mesmo que escassamente povoadas e ainda com grandes porções de matas virgens, que abriram-se as primeiras picadas que, atravessando para o lado das encostas orientais, atingiriam as terras que atualmente fazem parte do distrito de São José das Torres.

Considerando a região que estamos historiando, e também considerando a geografia da serra das Torres e os padrões de penetração, exploração e ocupação da área, importa-nos focar nas áreas que serviram como "trampolim" para a colonização das vertentes do rio Preto. Pois foi esse processo que deu origem às primeiras situações e sítios das terras mais altas e mais ao norte que hoje pertencem à São José das Torres e que, por sua vez, deram origem à formação do primeiro arraial que, mais tarde, tornou-se o povoado e a vila que hoje é sede do distrito. A ocupação das regiões ao oeste da serra das Torres, portanto, é da época do Império; assim, explica-se o porquê da formação de grandes fazendas que tinham seus territórios subindo até as vertentes dos córregos que nascem na serra das Torres e que deságuam no rio Muqui do Sul, ou no rio Muqui do Norte. As fazendas Fortaleza e Taquasussú, em Muqui, e as fazendas do Belmonte, do Vinagre e da Pratinha, em Mimoso do Sul, são exemplos de grandes propriedades formadas ainda na época do Império, que tinham suas terras galgando as encostas ocidentais da serra das Torres.

A ocupação bem posterior da porção alta de São José das Torres, em relação às regiões ao oeste, também explica o porquê de não haver grandes fazendas com suas majestosas casas grandes, como há em Muqui e em Mimoso. Enquanto as fazendas do oeste da serra das Torres foram formadas na época do Império, com grandes extensões de terra e usando de mão-de-obra escrava, os sítios do leste da serra das Torres foram formados já na República, com limitações de tamanho e sem usar o trabalho servil. Sua exploração, conforme salientamos mais acima, iniciou-se timidamente no início da década de 1890. A valorização crescente do café, concorrendo com a expansão da "fronteira agrícola", bem como com a relativa liberalização do acesso às terras devolutas pertencentes ao Estado, foi responsável por dezenas de requerimentos de compras de terra em São José das Torres, bem como de medição e compra de posses estabelecidas antes mesmo de legitimadas.

A primeira medição de terras nas vertentes do Rio Preto das Torres deu-se em Flores, em terrenos anteriormente medidos para Antônio Gomes Guerra, à pedido do Dr. José Coelho dos Santos, adquiridas junto ao Estado em 1892 e com uma extensão de 20 alqueires, quase 50 hectares. Os requerimentos aumentaram desde então. Em 1894 e 1895 são dezenas de requerimentos, buscando comprar terras devolutas ou intentando adquirir as terras para legitimar posses já formadas. A legislação determinava os limites dessas aquisições: um mínimo de 20 hectares, e um máximo de 200 hectares. Mas da requisição para a exploração e ocupação eram "outros quinhentos". Em uma época aonde não mais existia o trabalho escravo, com pouquíssima mão-de-obra disponível, somente os que possuíam mais capitais é que conseguiam iniciar a exploração com mais rapidez. A propriedade comprada em 1892 pelo Dr. Coelho dos Santos, por exemplo, não chegou a ser explorada, e anos mais tarde seria vendida para Manoel Raymundo apenas com uma "aberta", que era uma pequena derrubada. Todavia, alguns sítios formaram-se usando da mão-de-obra da própria família, ou então usando um pequeno número de trabalhadores ou colonos.

Mas foi um fator externo que "freou" essas requisições e atravancou a exploração de muitas dessas propriedades. Em 1895, uma série crise de preços abateu-se sobre o café, exatamente quando formavam-se os primeiros sítios e fazendas na região de São José das Torres. Uma crise econômica nos Estados Unidos, então principal comprador do café brasileiro, justamente com a superprodução cafeeira, fez cair o preço do saco de café para níveis muito baixos. Desta data em diante as requisições e compras de terras devolutas diminuíram substancialmente, e por cerca de quinze anos nenhuma nova lavoura cafeeira foi formada em todo o município de São Pedro de Itabapoana. Até cerca de 1910, as propriedades e lavouras cafeeiras formadas em São José das Torres entre 1890 e 1895 foram as únicas que subsistiram. Muitos trabalhadores rurais, que trabalhavam principalmente "à meia", abandonaram as propriedades em que obravam. Muitos sítios passaram a produzir apenas mantimentos, e foi nessa ocasião que iniciou-se a cultura do arroz nas zonas irrigadas ou alagadas do sopé das serras.

Assim, essa primeira fase de ocupação e exploração foi bem tímida, se comparada ao "boom" que a região presenciaria a partir da década de 1910. Após a celebração do Convênio de Taubaté, os preços do café começaram a melhorar, tornando a lavoura cafeeira novamente atraente para se investir. Em 1909, as dezenas de requerimentos de compra de terras devolutas, ou de compra para legitimação de posses, recomeçam com vigor em São José das Torres. Atravessando a década de 1910, as compras ou concessões avolumam-se no início de década de 1920, no período de grande valorização do café. Em 1920, o distrito atingia dois mil e trezentos habitantes em toda a sua extensão. Ao final dessa última década, praticamente todo o território estava demarcado ou possuído, seja por propriedades que cultivavam o café, seja por propriedades que produziam arroz ou criavam gado.


Gerson Moraes França