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Silvestre Coelho dos Santos Imagem gerada por IA, com orientação do autor e usando como base as fotos de seus descendentes. |
SILVESTRE COELHO DOS SANTOS - DE ESCRAVO A FAZENDEIRO.
Há quase dez anos atrás escrevi aqui no BLOG um texto que tratou da figura de Mestre Silvestre, um homem nascido escravizado que, com seu labor, conquistou a alforria e depois se tornou um abastado fazendeiro. O texto seria complementado por outro que trataria do Doutor José Coelho dos Santos, filho de Silvestre e que se tornou importante médico e proeminente político no Estado do Espírito Santo; esse segundo texto, porém, até hoje não foi publicado - ficou em meus rascunhos, aguardando "não sei o que"...
Para quem quiser ler o primeiro texto, intitulado "Coelho dos Santos - Silvestre e José, Mestre e Doutor (Parte 1)", basta clicar nesse LINK.
O leitor pode pensar: "virá agora a segunda parte do texto?" E eu já respondo que não; nos anos subsequentes continuei pesquisando e encontrei tantas fontes interessantes sobre Silvestre Coelho dos Santos, que imperioso se faz retomar a primeira parte do texto com novas e até hoje inéditas informações sobre essa rica - e até então um tanto nebulosa - personagem de nossa história espírito-santense.
No primeiro texto, diante das limitações que nos deparávamos em acessar - à época - alguns arquivos e fontes, muitos fatos sobre sua vida ficaram vagos. Algumas ilações restavam sem comprovação: meras presunções ou hipóteses. Algumas informações, inclusive, estavam equivocadas e fizemos algumas pontuais retificações em EDIT's no post original. Enfim, agora passados esses quase dez anos, creio que possuo elementos o suficiente para retratar a vida de Silvestre Coelho dos Santos de forma um pouco mais clara. Foi possível lançar mais luz sobre a história de sua trajetória, embora tais "descobertas" tenham aberto novas portas para presunções, ilações e hipóteses.
Buscando inicialmente tratar do filho Doutor José (objeto de meus estudos sobre São Pedro do Itabapoana, torrão que pesquiso e estudo há quase trinta anos) acabei me envolvendo e me aprofundando sobre o pai Mestre Silvestre. Comecemos, então.
Importante informar, primeiramente, que no título da presente matéria resolvi manter o termo "escravo", ao invés de "escravizado", que seria a terminologia mais adequada aos tempos atuais. Isso porque Silvestre foi uma pessoa que nasceu escravizada, e recebeu o estigma de "escravo" desde que saiu do ventre materno. Mantive o termo para retratar como ele era visto pela sociedade, à sua época: um ex-escravo que se tornou fazendeiro.
NASCEU ESCRAVIZADO
Silvestre nasceu em uma fazenda no distrito de Bom Sucesso, então parte do termo da Vila de São José (atual Tiradentes/MG), e foi batizado no dia 02 de fevereiro de 1813. Filho natural de Silveria, então com 27 anos de idade e escrava de Francisco Coelho dos Santos; não foi feito o registro do pai, e foram padrinhos Venancio José Vivas (genro de Francisco Coelho) e dona Maria de Moraes. Assim como Silvestre, a crioula Silveria nascera cativa, em Minas Gerais. Tempos depois ela se casou. Creio que ela tenha se casado depois de ter dado a luz à Silvestre, porque em todos os registros que disponho o pai dele não é mencionado, ou é registrado como filho de pai incógnito.
Silvestre fora encaminhado para aprender o ofício de carpinteiro, no engenho de serra da propriedade, onde iniciou como aprendiz. Quando completou 18 anos já exercia a carpintaria, junto com outros dois escravos crioulos mais velhos. Nessa época, o tenente Francisco Coelho dos Santos e sua mulher dona Joana Angelica de Castro possuíam 47 escravos em sua fazenda, entre crianças e adultos: 17 pardos, 11 crioulos e 19 africanos pretos. 31 eram homens (16 africanos e 15 nascidos no Brasil) e 16 eram mulheres (3 africanas e 13 nascidas no Brasil). Dos homens, 25 eram laboravam na lavoura.
Dona Joanna Angelica faleceu em 1835 e seu marido, o tenente Francisco Coelho, morreu provavelmente antes de 1850. Nesse ínterim, encontramos registros interessantes: em 1837 Silveria era "criola forra", isto é, tinha recebido a liberdade, mas não sabemos em que condições a conquistou (se por compra ou concessão da alforria, se por testamento, etc). Em 1850 ela já havia adotado o sobrenome da família para a qual trabalhara na condição de escravizada: Silveria Coelha. Já Silvestre, seu filho carpinteiro, não sabemos se nessa ocasião ainda era escravizado, ou não.
MUDOU PARA O ITABAPOANA
Na década de 1850, tomou grande incremento um movimento migratório que levou várias pessoas da região de Oliveira e Bom Sucesso, em Minas Gerais, para o "as matas e sertão do Itabapoana", então coberto por densa floresta e com as primeiras fazendas cafeeiras sendo formadas. Vários parentes ou aparentados dos Coelho dos Santos adquiriram posses naquela região. Por exemplo, netos de Venancio Vivas (genro de Francisco Coelho e padrinho de Silvestre), como Constantino Gonçalves Vivas e Leopoldino Gonçalves Castanheira; um neto de Francisco Coelho, chamado Felisberto Ribeiro dos Santos, que era filho de outro Francisco Coelho e de dona Messias Carolina de Castro (irmã dos fundadores das fazendas União, Recreio e Harmonia), dentre outros.
Foi a sociedade de três irmãos de dona Messias Carolina (Felisberto Ribeiro da Silva Junior, Ignacio Ribeiro da Silva Castro e José Ribeiro da Silva Castro) que, certamente, foi responsável pela vinda de Silvestre para a região do Itabapoana. Em agosto de 1855 os irmãos compraram a posse então chamada de Fortuna, vendida pelo posseiro José Lopes Diniz e que daria origem às fazendas do Recreio e da Harmonia. Pouco tempo depois, em 12 de junho de 1856, um dos irmãos comprou a União junto à Dona Maria Angelica, viúva de José Carlos de Azevedo (primeiro posseiro da fazenda de São Pedro, perto da foz do ribeirão). Todas essas posses ficavam no ribeirão São Pedro, afluente do rio Itabapoana. Foi nessa época que Silvestre também mudou-se; veio, como presumimos, já forro e livre. Assim, teria chegado ao Itabapoana em algum momento da segunda metade da década de 1850.
Curiosidade: essa primeira compra feita em 1855, de "uma sorte de terras no ribeirão de São Pedro (...) divisa por baixo com Maria Angelica de Abreu Lima e por cima com Fernando Antonio Dutra Nicacio", foi assinada na "Fazenda do Mimozo, em 12 de agosto de 1855", pelo vendedor José Lopes e sua mulher (senhores e possuidores de uma fazenda denominada Fortuna, sita no ribeirão de São Pedro, Província do Espírito Santo) e por dois dos irmãos compradores (Felisberto e Ignacio), que portanto já estavam no sertão do Itabapoana. A primeira escritura dessa posse havia sido passada para José Lopes na Vila do Presídio, Minas Gerais, em 19 de agosto de 1851, por Manoel José Lopes, o primeiro posseiro (possivelmente trabalhando na formação de posses para José Lopes Diniz).
As primeiras fontes que fazem menção expressa à presença de Silvestre Coelho dos Santos na região sul do Espírito Santo são escrituras de compra e venda, e de troca, que os irmãos Felisberto, Ignacio e José fizeram entre si e com terceiros. Nelas é citado um contrato que os fazendeiros firmaram com Silvestre, de vender uma sorte de terras entre as propriedades em troca dos serviços de carpintaria. Abaixo, transcrevemos alguns trechos das escrituras atinentes ao referido contrato:
"(...) incluindo terra para cinquenta alqueires de planta, que tem contratado vender a Silvestre Coelho dos Santos (...)". [entre Harmonia/Recreio e União; escritura pública de 02 de dezembro de 1860]
"(...) em cuja fazenda assim confrontada ficam incluídas terras para cinquenta alqueires de planta que tem contratado vender a Silvestre Coelho dos Santos (...)" [escritura pública de 09 de outubro de 1860; havia um engenho de serra na Harmonia]
"(...) e bem assim um contracto que elles tem com um official de carpinteiro por nome Silvestre de acabar as obras que o mesmo Silvestre contractou com elles outorgantes vendedores (...)" [escritura pública de 29 de agosto de 1862]
Assim, depreende-se que as histórias preservadas pela memória local sobre Silvestre estão pautadas em fatos que realmente ocorreram: um ex-escravizado carpinteiro que adquiriu (por compra ou por outro meio) sua liberdade. O porquê de Silvestre ter sido encaminhado para aprender um ofício, ao invés de ter sido alocado na lavoura, é resposta para a qual só podem restar meras ilações.
CONSTITUIU FAMÍLIA
Provavelmente Silvestre mudou-se para o Itabapoana quando ainda era solteiro. Não consta que tenha contraído um casamento anterior ao enlace pelo qual constituiu sua família e, caso tenha vivido maritalmente em Minas Gerais, não deixou filhos legítimos. Assim, ludo leva a crer que se casou quando já morava no sul do Espírito Santo.
Sua esposa, chamada Arminda Maria do Carmo (também Arminda Maria dos Santos, depois do casamento), nasceu em c. 1843 e era negra. Não conheço a condição pretérita de dona Arminda, mas não parece ter sido escravizada. À época que Silvestre chegou ao Itabapoana (entre 1855 e 1859), Arminda teria entre 12 e 16 anos; dessa forma, eles se casaram quando Silvestre tinha mais de 40 anos de idade e ela era adolescente. Antes de ter dado a luz à José (o futuro Dr. José Coelho dos Santos) em novembro de 1862, teve dois outros rebentos (Serapião e Agostinho) e pode ter tido ainda alguma(s) de sua(s) filha(s). O casamento de ambos, portanto, possivelmente se realizou entre c. 1857/60.
Silvestre e Arminda tiveram 13 filhos, 2 deles falecidos em tenra idade; dos 11 que chegaram a vida adulta, foram 5 homens (Serapião, Agostinho, Marcolino, José e João) e 6 mulheres (Etelvina, Maria Joanna, Adolphina, Vitalina, Leonor Maria e Silvia).
CONSTRUIU FORTUNA
O contrato que Silvestre firmou com os irmãos Silva Castro foi devidamente cumprido. Por escritura pública lavrada em 04 de julho de 1863, o carpinteiro comprou os 50 alqueires de planta no lugar denominado São Sebastião, no ribeirão de São Pedro, por dois contos de réis, e se tornou fazendeiro. E aí abre-se lacuna para aquela pergunta que fizemos na primeira matéria sobre Silvestre Coelho dos Santos: teria ele sido proprietários de escravizados? Naquela oportunidade, respondemos que sim, e que havíamos conseguido individualizar pelo menos um deles. Presumimos, naquela época, que ele teria tido um pequeno bocado de escravos.
De posse do inventário de Silvestre (processado em 1881) constatamos que, ao falecer, além de sua fazenda, cafezais, casas*, moinho, móveis, ações e animais, ele tinha 12 pessoas escravizadas sob sua propriedade. Mais abaixo, ao final da presente matéria e para efeito de registro histórico, apresentamos a lista dos escravos arrolados no referido inventário.
Parece estranho, aos olhares da contemporaneidade, que um negro ex-escravizado pudesse possuir escravos; mas, à época, isso era algo comum. Ainda mais nos casos de negros donos de propriedades rurais: a mão-de-obra usada nas fazendas cafeeiras do vale do Itabapoana até a década de 1880 era praticamente toda escravizada.
* O fato de não ter sido arrolado bem imóvel urbano algum no inventário nos faz crer que as casas que ele "teve" em Campos e em São Pedro (ler a primeira matéria) fossem, na verdade, imóveis alugados.
NÃO SE ALFABETIZOU
Silvestre jamais se alfabetizou; não sabia ler, nem escrever. Morreu assim. Seus filhos, pelo menos os homens, foram alfabetizados; um deles, como bem sabemos, se formou em medicina. Tratei de seu analfabetismo na primeira matéria sobre ele, informando - por exemplo - que em 1877 quem assinava seus documentos, a rogo do mesmo, era seu filho José Coelho dos Santos. Depois disso, encontrei outras fontes que provam que Silvestre não era letrado. As principais, creio eu, são as listas de eleitores qualificados nas paróquias (documentos digitalizados que me foram cedidos, gentilmente, por meu primo Diogo França, genealogista). Fucei todas as listas e, na listagem de 1876/77 (poucos anos antes do óbito de Silvestre), resta clarividente o fato. Esta relação (qualificada em 1875) reza:
Eleitor nº 166 - Nome: Silvestre Coelho dos Santos - idade: 62 - Estado: casado - Profissão: fazendeiro - Sabe ler: NÃO [grifo meu] - Filiação: desconhecida - Domicílio: Nesta freguesia - Renda presumida: 2:000$000 [dois contos de réis] - Simples votante: X - Elegível: -
Creio, portanto, ser esse um assunto esgotado: o fazendeiro Silvestre Coelho dos Santos, escravo forro e carpinteiro, não se alfabetizou, mesmo depois de ter adquirido suas propriedades em bens e pessoas.
Silvestre Coelho dos Santos faleceu em 08 de março de 1881, em São Pedro do Itabapoana.
Pesquisa e texto: Gerson Moraes França
LISTAGEM DAS PESSOAS ESCRAVIZADAS QUE CONSTAM NO
INVENTÁRIO DE SILVESTRE COELHO DOS SANTOS
O escravo Domingos de cor preta com 49 anos de idade, carpinteiro, casado com Marianna, natural de Minas Gerais, matriculado sob os números 4209 da matrícula geral e um da relação, avaliado por 1:650$000.
A escrava Marianna de cor parda com 23 anos de idade, natural do Ceará, lavradora, casada com Domingos, matriculada sob o número 7360 da matrícula geral e 2 da relação, avaliada por 1:100$000.
O escravo Virgilio de cor preta com 19 anos de idade, lavrador, natural desta Província, cambeta, matriculado sob o número 4211 e três da relação, avaliado por 900$000.
O escravo Luis de cor preta com 37 anos de idade, casado com Irias, carpinteiro natural de Minas Gerais, matriculado sob os números 4914 da matrícula geral e 4 da relação, avaliado por 1:900$000.
A escrava Irias de cor preta, casada com Luis, cozinheira, natural de Minas Gerais, com 27 anos de idade, matriculada sob os números 4216 da matrícula geral e 5 da relação, avaliada em 900$000.
O escravo Geraldo de cor parda, solteiro, com 12 anos de idade, filho desta Província, lavrador matriculado sob os números 4217 da matrícula geral e 6 da relação, avaliado por 900$000.
O escravo Bartolomeu de cor preta com 34 anos de idade, lavrador, natural do Rio de Janeiro, matriculado sob os números 7358 da matrícula geral e 7 da relação apresentados neste termo, casado com Maria, avaliado em 800$000.
A escrava Maria de cor preta com 32 anos de idade, casada com Bartolomeu, natural do Rio de Janeiro, matriculada sob os números 7537 da matrícula geral e 8 da relação, avaliada em 1:100$000.
Os segundo, sétimo e oitavo escravos foram matriculados neste Município pelo inventariado em 08 de março de 1873. O primeiro, terceiro, quarto, quinto e sexto foram matriculados neste Município pelo inventariado em 30 de julho de 1872.
Haverá para seu pagamento o escravo José de cor preta, solteiro, natural de Minas Gerais, com 26 anos de idade, matriculado sob os números 4210 da matrícula geral e 1 da relação, avaliado por 1:500$000.
Haverá o escravo Saúl de cor preta com 47 anos de idade, lavrador, solteiro, natural de São Paulo, com feridas, matriculado sob os números 4215 da matrícula geral e 2 da relação, avaliado por 300$000.
Esse dois escravos foram matriculados neste Município, em 30 de julho de 1872, pelo inventariado.
Haverá a escrava Maria de cor preta natural do Brasil, lavradora com 51 anos de idade, matriculada sob os números 35.224 da matrícula geral e um da relação apresentada ao Município de Campos, em 31 de julho de 1875, averbada neste Município em 22 de dezembro de 1877, nota número 563, avaliada por 350$000.
Haverá para seu pagamento a escrava Deolinda, de cor preta com 16 anos de idade, lavradora, solteira, natural desta Província, matriculada sob os números 4213 da matrícula geral e 5 da relação apresentada neste termo, em 20 de julho de 1872 pelo inventariado, avaliada por 750$000.
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