"Maria Ortiz em sua janela" Imagem ficcional gerada por IA direcionada pelo autor |
Em 2016 fiz uma publicação, no presente Blog, intitulada "Maria Ortiz - A Lenda, a Verdade e a Tradição", onde tratei da historicidade da heroína capixaba que deitou um tacho de água fervente em cima do comandante dos invasores holandeses que atacavam a Vila de Vitória, em 1625. Ao final do artigo fiz uma relação de cinco fontes primárias contemporâneas (ou pouco posteriores) à investida dos neerlandeses. Quem quiser ler, basta clicar no link que segue abaixo:
https://gerson-franca.blogspot.com/2016/10/maria-ortiz-lenda-verdade-e-tradicao.html
Tempos após publicar esse escrito encontrei, em 2019, uma nova fonte primária e contemporânea aos fatos, que até então havia passado despercebida na historiografia capixaba. É um trecho da obra de Eugenio de Narbona e Zuñiga intitulada "Historia de la Recuperacion del Brasil", escrita em 1626 e publicada pelos Anais da Biblioteca Nacional em 1950. Assim reporta-se essa última publicação, sobre a obra citada:
"A crônica de Engenio Narbona esperou três séculos para vir a luz. Não há dúvida que o Bispo escreveu-a em face de notícias orais, que lhe foram transmitidas pelos aventureiros espanhóis que vieram restaurar a Bahia, e de papéis da época, como relatórios e relações de oficiais e cronistas".
A parte da obra que trata da fracassada tentativa holandesa de tomar a Vila de Vitória, em 1625, está às páginas 185/189 da publicação supra aludida. Pela narração dos fatos, parece tratar-se de um relatório oficial, talvez elaborado pelo próprio comandante Salvador Correia de Sá e Benevides. Lamento informar ao leitor, porém, de que não há menção à mulher do tacho, a nossa Maria Ortiz; as pessoas citadas no documento são o Salvador de Sá, o capitão donatário Francisco de Aguiar Coutinho, o comandante da esquadra holandesa Pieterszoon Piet Hein e o "traidor" Rodrigo Pedro.
Confrontando essa fonte com as outras conhecidas e depurando-as para conciliá-las, é possível traçar um minucioso relato sobre o ataque holandês e a defesa dos capixabas naquele março de 1625. Na presente fonte, há boa descrição de Vitória e das ações nas batalhas, dentre outros pormenores. Ao final do presente post, como prometi em 2022 em uma publicação em rede social, coloco a transcrição do trecho em espanhol, tal como está na publicação da Biblioteca Nacional em 1950. Mas, aproveitando, gostaria de tecer umas pequenas considerações com base nesse maravilhoso documento; há muito o que retirar dessa relevante fonte de nossa história.
Desse documento denotamos, por exemplo, que a Vila de Vitória em 1625 ainda estava assentada em cima da colina, pequeno promontório, hoje chamada de Cidade Alta. As edificações ainda não haviam descido até ao que eles chamavam, naquele tempo, de praia da vila, que era considerada como adjacência aos limites da urbe. De acordo com as pesquisas que desenvolvi até hoje, somente no último quartel do século XVII é que as primeiras casas que começaram a ser construídas na ribeira da colina chegaram próximas ao canal de mar. Vemos também que as subidas do morro, cortadas por nove ladeiras que da vila desciam até o mar ou até as laterais alagadiças, eram cobertas com vegetação rasteira e pequenos arvoredos. Outra informação interessante é que as entradas da vila correspondiam às nove bocas dessas ruas/ladeiras; e que foi nessas bocas que os defensores locais se entrincheiraram usando as portas das casas, por não dar tempo de cavar trincheiras e formar barreiras de terra.
De acordo com as pesquisas que desenvolvo, a principal ladeira de acesso à vila, nessa época, não era onde está hoje construída a ladeira Maria Ortiz (antiga ladeira do Pelourinho ou do Cais Grande, por onde reza a tradição que subiram os atacantes que foram maculados pela nossa heroína), mas sim a ladeira que subia da chamada "pedra" (ou "lage"), conhecida como ladeira da Matriz; era ao lado dessa pedra, na região onde depois seria construído o mercado do peixe, que as embarcações atracavam até a construção do primeiro embarcadouro em molhe na região do futuro cais. As bases dessa lage, inclusive, serviram de fundação para anos depois se construir o primeiro forte no sopé da vila, conhecido oficialmente como "Fortaleza de Nossa Senhora do Carmo", mas chamado coloquialmente de "forte da lage", ou "forte da pedra". Os holandeses ocuparam a praia da vila e ali se organizaram para empreender o ataque, subindo as ladeiras, em especial (ao que parece) a subida onde hoje está a Escadaria Maria Ortiz. Outra informação interessante é ratificação dos mapas locais confeccionados nessa época, que ilustravam que os Engenhos ficavam ao fundo da baía, onde desaguavam os rios.
Enfim, dentre muitas outras informações que podemos retirar dessa fonte no que toca à região em 1625, bem como os pormenores das batalhas, vamos com o documento transcrito, em espanhol. Segue abaixo:
FONTE:
NARBONA Y ZUÑIGA, Eugenio de. “Historia de la Recuperacion del Brasil”. Anais da. Biblioteca Nacional. Vol. 69, 1950, p. 185-189
Pág 185
(...)
Esta armada de Pedro Pers (1) corriò los mares del Brasil
hasta doce de marzo de mil, y seiscentos y veite y cinco em que aportò al
(1) O autor refere-se a Pieter Pieterszoon Heyn.
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paraje que llaman la Capitania del Espiritu Sancto que por
la vanda del Sur dista de la Baîa cien leguas donde el mar forma uma Isla em tierra firme entrando um brazo por la
parte del corte que em semi sirculo rodea seis leguas de capacidad entrando
angosto como doscientos pasos continuandose la misma anchura todo lo que baxa
la Isla, por la parte del Poniente hay um rio de agua dulce que desagua em la
ria, que llaman de la poblacion, em que hay mucha cantidad de ingenios de que
son dueños los moradores de la Villa de Victoria de que es Señor, y Capitan Francisco
de Aguiar Coutiño, lugar grande, y de no poca vecindad que dista de la Barra, y
boca de la Ria que sirve de puerto, una legua; todo el sitio desta isleta se
levanta a manera de monte aunque com elevacion moderada, haciendo la parte en
que esta fundada la Villa, que es a las mismas Ribeiras, uma eminencia superior
a lo demas, por cuya ocacion el sitio del lugar es mas sano, mas alegre, y
defendido, el terreno es muy fertil, la estancia gustosissima, y de gran
provecho para los habitadores que viven seguros defendidos de la estrechura de
la Barra que a la vanda del norte tiene um cerro, o montaña en cuya cumbre está
una ermida dedicada a la devocion, y nombre soberano de la Virgem Madre de Dios
nuestra Señora, que del sitio se llama de la Peña, que con especial devocion, y
piadoso culto es venerada de todo el estado del Brasil, y con votos, y ricas
ofrendas visitadas de proprios, y estrangeros, cuya devocion se aumento com
haverla havitado el Padre Jozeph de Anchieta de la Compañia de Jesus cuya
santa, y exemplar vida fuè edificacion a todo el pais, y su doctrina utilíssima
porque se convirtieron muchos Indios que recivieron el Santo Baptismo. Em esta
parte (pues) retiro apacible hurto del mar, habitacion segura, y deleitosa de
muchos Religiosos que alli tienen monasterios, grangeria de los habitadores que
desfrutando la fertilidad de la tierra son fructuosos a otras províncias donde
transportan sus dulces fructos, se vivia seguramente sin medio (sic) que huviesse
enemigo que perturbasse aquella paz pero um ingrato forasteiro que haviendose
avencindado alli, y merecido por sus delitos ser condenado a pena de muerte de
que indigno fuè perdonado desagradecico el tal (que se llamava Pedro Framengo)
a la piedad que no merecio conociendo que el enemigo andava em aquellos mares,
creyendo que pues no acometia aquella plaza ignorava su importância, recatado
como aleve saliò de la Isla en un Batelillo a persuadirle que embistiesse el
lugar, y tomasse aquel puerto sugnificandole, y encarecendo su importancia, y
que era de calidad que una vez apoderado del era impossible, poder humano
recuperarle, poque con poco arte ayudada su natural fortificacion, se hacia
inexpugnable, y la tierra adentro era muy estendida, muy capaz, y muy fértil,
de muchos Indios, a quien presto reduciria, y venceria fa-
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cilmente, y encareciendo las utilidades de la empresa se la
facilitò proponiendo el estado em que se hallavan dos havitatorés, seguros, y
desarmados sin prevencion, y aun sin miedo.
El Ingles capitan de Olanda que sentia haverse de volver a
la Baîa sin haver obrado cosa porque mereciesse premio admitiò la platica, y
juzgò la empresa como se la significavan facil, util,, y segura, y fueralo sin
duda, y a nosostros de incomparable daño si com providencia que ignoran los mortales,
no huviera Dios para socorro de tanto peligro trahido acaso a quel puerto a
Salvador de Sà Venavides hijo de Martin Correa de Sà Governador del Rio Janero
que con un socorro como ya diximos vino pocos dias antes de Lisboa despachado
de su padre a servir a su costa con docientos, y sesenta hombres blancos, y
Indios que em tres caravelas, y tres canoas venian al socorro del reconcavo;
acaescio pues que estando em aquel puesto de camino Salvador de Sà con sua
gente el enemigo com toda confianza se entrò por la barra adentro a doce de
Marzo a la hora de tarde, y sin querer reconhecer la Villa, se entretudo
aquella noche hasta que el dia seguiente desembarcò trecientos mosqueteros, que
ocuparon luego el arraval, asegurando, (segun su usanza) a la gente, pidiendoles
que no huyessen. El Capitan Aguiar poco prevenido aunque con mucho valor temiò
el conflicto, y pareciole que la plaza estava perdida, y aconsejanvanle (sic)
el retirarse a los ingenios, pero su valor venciò el efecto, y alentado com la
gente de que ya se via (sic) dueño, y com tener de su parte a Salvador de Sà
con el espiritu bizarro que heredo de sus aguelos (sic) que como grandes
capitanes sirvieron a sua Rey, y a la pátria tan gloriosamente, y assi juntos
sin embarazarse com el peligro animosos se dispusieron em defensa, no solo
creyendo poder evitar el daño sino esperando victoria, juntose la gente toda
que sacò de las caravelas, y canoas, que retirò a la parte contrapuesta de la
ciudad, encubriendolas de la maleza que havia em aquellas orillas, com ella, y
com sesenta mas parsonas que havia em lugar se fortificò, previniendo primero
uma cosa digna de alavar por bien pensada conocio como el enemigo era muy
diestro em las armas de fuego, que trahia, y que em ellas lo suyos eran povo
platicos, y que llegando a las manos seria de mas efecto com la espada que con
arcabuz, y los Indios com flechas, de buen efecto, y assi ordenò que los
blancos dexassem los arcabuces, y que com las rodelas que se pudieron hallas,
se armassen solo com espadas, prevenido esto ordenò que seis pedreros que
estavan em lo baxo de la ciudad donde no se pude esperar pudiessem ser de
efecto, se subiessen arriba. De la ciudad bajan nueve calles, que terminan em
el arraval las bocas, trincheò con las puertas que quitò de las casas porque no
dava tempo a cortar faxina, aunque la havia a la mano, com las puertas
fortificadas las calles, puso em
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cada una veinte hombres blancos, y Indios, em la praza puso
sesenta, y el com veinte acudia a ver por la parte, que el enemigo se determinava
a entrar de las nueve calles para acudir a ella, y esforzar la defensa, todo
estava lleno de matorrales, y maleza, que es cosa casi natural em toda la
tierra. Puesto em esto estado las cosas, animados los soldados con exemplo, y
com razones del valiente mancebo que les governava, conociose que el enemigo se
aplicava por la tercera estancia a la parte del Norte, y Salvador de Sà acudiò
a ella, y entre las matas de la maleza encubiertos puso de mas de los que havia
a uma parte ocho soldados y a la outra igual cantidad, y com seus quedose el
capitan em medio de las dos esquadras, el enemigo presumido, y bizarro,
marchava la buelta de la ciudad, a la parte donde Salvador estava encubierto, y
quando llegò casi a pisarle saliò el noble Portugues apellidando Santiago, y en
el mesmo (sic) punto los de la mano derecha, y siniestra del mismo modo con
valentia, y denuedo español diciendo Santiago, acometen al enemigo que
embarazado de lo improviso de la accion, y la presteza con que les ofendian
creyendo mayor numero, y aun excesiva cantidad de gente que les acometia sin
orden se retiravan, apresurados huyan, arrojando los mosquetes que juzgavan
carga inutil, aunque no para que desebarazados, pusiessen mano a la espada, que
covardes tuvieram simpre en las correas; a los que el miedo hizo ligeros
alcanzaron las flechas de los Indios, que siguieron el alcanze hasta el mar
donde se recogieron los enemigos vencidos infamemente de quarenta y seis
hombres, que fueron com los que Salvador de Sà les acometiò. Quedaram muertos
em el campo veinte, y cinco, y muchos heridos, y por despojos mas de cien
mosquetes, uma vandera, uma caxa, y outras cosas, embarcados yà los Olandeses,
desde la orilla se les ojò el lamentar, y de la manera que sin tempo se
castigavan se su covardia, atribuyendo a mas alta causa el triste efecto, todo
lo restante del dia, se estubo el enemigo quieto oyendoles como rezar, y a la
tarde vieron que acompañado de grande alaridos echaron um cuertpo a la mar,
quisieron intentar bolver a la empresa, y Salvador de Sà, que no se asegurò por
el buen suceso de que diò gracias a Dios, que esforzò su juventud, mostrose a
la defensa, y fuè ocasion para que el enemigo zarpasse, y se fuese, Salvador de
Sà sacò sus caravelas, y canoas, y traxolas donde se pudo embarcar mas
comodamente, yendo embarcado echò um Indio a tierra, que desde un arbol alto vio como el enemigo havia entrado
por el Rio de la poblacion a hacer aguada, y que alli havia tomado, y desecho
unas canoas de las del servicio de los ingenios, y haviase savido que antes
tomara um patache; tanto por dar fin a la empresa, quanto por asegurar que ido
el, pudiesse el enemigo atraverse a bolver, Salvador de Sà procurò hacerle mas
daño, y assi se entrà el Rio arriba,
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y al desaguadero puso las proas de las dos canoas hacia la
mar, trincheandose, y com las otras se atravessò, y quando llegaron los
pataches del enemigo a abordar dieron sobre ellos valientemente, matandoles 40
(12) de la gente sino fueron cinco, que se cogieron vivos. Em uno dellos un
soldado de muy buen talles, y com buen adomo, que otro de los prisioneros dixo,
que era capitan, y barbaramente animoso em lengua castellana pidiò que le
matassen, que no queria vida infame, y sin dar lugar à que pudiesse
estorvarselo su amo um Indio que le tenia asido, y que estava sintiendo el
dolor de una herida, com um machete le rompiò la cabeza, de los outros se supo,
que el muerto, que echaron a lar mar el dia antes era ela mirante de aquella
armada, hombre entre ellos de los mayor importancia, y que el Capitan a quien
mato el Indio era persona estimada por sua buen juicio tanto como por valentia.
Tomado el Patache, y con los prisioneros bolviò Sanvador de Sà al puerto del
Espiritu Santo, donde reciviò devidos parabienes, y agradecimentos comunes,
pues debian todos a sua valor la libertad, que gozavam. El dia suiguiente
apareciò de paz el enemigo, pediendo por cartas muy corteses que le
socorriessen com algun refresco a ley de buena guerra, y que le rescatassen los
prisioneros, o dixessen que personas eran, para dar quenta a su Republica, y
les diessen los pataches, que les hacian gran falta por el precio que
quisiessen que alli trahiam mucho oro, y otras cosas de precio com que
commutallo. Respondiò Francisco de Aguiar, que ellos eran vasallos del Rey de
España de quien ellos eran enemigos, y que no tenian orden de dar otra cosa que
polvora, y valas, y servir com el uso de lar armas que tuviessen; replicaron
dos veces com otras cartas, y cansado ultimamente Aguiar les escreviò que se
fuessen muy a priesa, o, que saldria y los quemaria a todos, temieron efectiva
la amenaza, y assi diciendo que antes de um año havia de ser toda la Provincia
del Brasil del Conde Mauricio su Señor.
(...)"
Gerson Moraes França