Habitation de négres (Johann Moritz Rugendas, 1827)
Acervo Brasiliana Iconográfica
FONTES SOBRE O QUILOMBO DESTRUÍDO EM 1843 NO ESPÍRITO SANTO
Há pouco mais de dois anos e meio atrás recebi um documento, encaminhado pela Secretaria de Cultura do Município de Muqui, de autoria da CCRQ (Coordenadoria de Comunidades Remanescentes de Quilombos) e direcionado para a Fundação Cultural Palmares (Ministério da Cultura). Tal documento trata de uma solicitação de abertura de processo de identificação de comunidades remanescentes de quilombolas no rio Muqui, no município de Atílio Vivacqua (ES). À época, lendo o arrazoado que fundamenta o requerimento, fiquei um tanto reticente; parecia-me que havia ali um esforço em identificar um quilombo destruído em janeiro de 1843 por forças organizadas pelas autoridades, com comunidades rurais existentes atualmente no município supra aludido.
Iniciei uma pesquisa criteriosa, então, para entender se haveria alguma relação entre o quilombo desmantelado em 1843 e as comunidades atilienses dos tempos presentes. Pesquiso e estudo a história da região sul do Espírito Santo há muitos anos, e tal assunto muito me interessava; até porque eu o desconhecia e ele não se "encaixava" em meus estudos. E o resultado foi bem conclusivo. Certamente não há nenhum liame ou solução de continuidade do quilombo destruído em 1843 com os atuais moradores dessas regiões de Atílio Vivacqua. O que, é claro, não invalida qualquer iniciativa de se reconhecer como comunidades quilombolas as que estão pleiteando esse reconhecimento; as provas, porém, deverão ser outras, e a pesquisa precisará seguir por outro caminho.
Mais abaixo, transcrevo as fontes que encontrei sobre o acontecimento de janeiro de 1843. Lendo-as, vamos perceber alguns importantes pontos que trataremos doravante e, é claro, chegar a conclusão de que o referido quilombo estava situado em outro local que não o rio Muqui.
O primeiro ponto é que a autora Maria Stella de Novaes (citada no requerimento elaborado pelo CCRQ) interpretou de forma equivocada parte do documento que a serviu de fonte, bastando comparar o seu texto com o texto do ofício original, que foi compilado por Levy Rocha; idem, quando comparado com as outras fontes primárias contemporâneas que abaixo transcrevo. Não foram 70 quilombolas armados que resistiram à guerrilha, como Novaes interpretou: 70 eram os homens armados da guerrilha que atacou o quilombo.
Segundo ponto é que, mesmo que não tivéssemos conseguido localizar expressamente em uma das fontes pesquisadas onde existiu o quilombo destruído em 1843, não seria possível saber em que região do Itapemirim teria ocorrido; na verdade, não poderíamos sequer afirmar que o referido quilombo estivesse na região do Itapemirim. Há autores, por exemplo, que afirmam (também equivocadamente) que o quilombo de 18 casas destruído em 1843 ficava em Aracruz, como na obra "Negro e Resistência" de Assis & Saquetto (2017, pág. 26).
Acredito que o documento elaborado pela CCQR, datado de janeiro de 2002 e encaminhado para apreciação da Fundação Cultural Palmares, tenha sido o primeiro que aventou a hipótese de que o quilombo desbaratado em janeiro de 1843 teria existido na região de Itapemirim. Tal presunção do(s) autor(es), creio eu, teria advindo do fato de que o ofício que comunicou tal feito ter sido escrito por Joaquim Marcelino da Silva Lima, o futuro Barão de Itapemirim, que era residente nessa região.
O problema de tal hipótese, porém, é que não seria possível comprová-la. E, ao contrário, seria mais verossímil que o quilombo objeto de nosso estudo ficasse em alguma região mais próxima da atual "grande Vitória", do que em Itapemirim ou Aracruz; isso porque Joaquim Marcelino estava exercendo interinamente a presidência da Província e estava na capital Vitória quando escreveu o ofício que comunicou o feito ao Ministro do Império. A diligência da guerrilha, segundo o ofício, teve início no dia 12 de janeiro de 1843; e no dia 17 do mesmo mês a força estava na capital, quando deu a notícia do que havia obrado - a destruição do quilombo, com mortes e prisões - ao presidente interino.
Enfim, é certo que o aqui estudado "quilombo de 18 casas" não ficava em Itapemirim, e nem em Aracruz; e, mesmo caso estivesse localizado na região de Itapemirim, não seria possível afirmar com as fontes existentes se estaria ao norte ou ao sul do rio, mais para dentro do sertão ou próximo da costa. Assim, de forma alguma, nunca poderíamos afirmar que esse destroçado quilombo ficasse em terreno hoje pertencente ao município de Atílio Vivacqua, e nem que exista algum liame que o identifique como sendo o embrião das comunidades que pleiteiam o reconhecimento junto à Fundação Cultural Palmares.
Onde ficava o quilombo, então? Na última fonte que transcrevo mais abaixo (FONTE 7), está a resposta. Em tal fonte há os esclarecimentos que buscávamos, e alguns detalhes interessantes como o nome da pessoa que comandou a guerrilha que atacou e destruiu o quilombo. Este último estava localizado nas cabeceiras do rio Jucú, na região conhecida como Bahia Nova, antigamente parte do distrito de Viana e hoje parte do município de Guarapari.
"Baía Nova - Povoação antiga do município. Era a princípio um quilombo que foi batido e conquistado, com 70 homens, em janeiro de 1843, por André de Siqueira Matos, residente na então povoação de Viana. Hoje é um importante núcleo de população habitado por colonos de origem italiana que se dedicam às culturas do café, de cereais e de frutas em grande escala. Foi usurpada ao município e anexada ao de Guarapari em 1943, estando o assunto dependendo da realização de um plebiscito eleitoral. Possui uma escola primária e uma belíssima capela católica, dedicada a Cristo-Rei.
Nas suas vizinhanças, do lado norte, já à margem do Jacarandá, está situada a povoação de Santa Rita, também habitada por colonos italianos, na sua maior parte, que se ocupam das culturas do café e cereais. Possui também uma escola pública."
Abaixo seguem as fontes que compilei e transcrevi:
Autora: Maria Stella de Novaes
Pág. 191:
“(...) 1843 - Aumentava o número de quilombos. A 17 de janeiro de 1843, êsse Vice-Presidente, em exercício, comunicava ao Ministro Araújo Lima ter batido e destroçado um quilombo de dezoito casas, constituído de setenta prêtos bem municiados. A luta foi dura. Alguns negros foram mortos, no campo da peleja; outros, presos, enquanto dois paisanos e um soldado ficaram feridos, sem gravidade.”
Crônicas de Cachoeiro, 1966
“Os Barões de Itapemirim
Distinguiu-se na repressão aos índios que hostilizavam as fazendas e povoados e deu conta de sua atividade como "Capitão-do-Mato" quando, em 1843, ocupando interinamente a Presidência do Província, informou ao Ministro do Império: "... Possuído do maior prazer, vou participar a V. Exa. para que chegue a conhecimento de S. M. o Imperador, que hoje mesmo veio de bater e destroçar quilombos uma guerrilha que, em conseqüência das ordens existentes, a despeito de dificuldades, consegui aprontar e fiz marchar em tão interessante diligência no dia 12 do corrente mês, a qual arrasou completamente um quilombo de 18 casas, deixando mortos alguns negros, que resistiram, e conduzindo todos que puderam prender. Tenho notícia de que existem mais quilombos, que pretendo tenham a mesma sorte, e para isso não me pouparei aos maiores sacrifícios empregando todos os meios que existirem ao meu alcance por quanto é esse o mais considerável benefício que se pode fazer a esta Província".
FONTE 3
“39 - O presidente Joaquim Marcelino, a dezessete de janeiro de 1843, comunicava ao ministro Araújo Viana ter sido batido e destroçado um quilombo de dezoito casas. Aprisionaram os que puderam e deixaram alguns negros mortos no campo da luta. “Na resistência que fizeram”, foram feridos dois paisanos e um soldado, porém sem grande gravidade (Pres ES, VII).”
FONTE 4
Falla com que o exm. presidente da provincia do Espirito Santo, Wenceslau de Oliveira Bello, abriu a Assembléa Legislativa Provincial no dia 25 de maio de 1843.
Pág. 03:
“Tranquilidade Publica, Segurança Individual, e Força Publica.
(...) Um quilombo de negros e facinorosos foi há pouco batido e destroçado, por sabias medidas tomadas por um dos meus benemeritos Predecessores, e continuarão a sel-o os que demais aparecerem: (...)”
FONTE 5
Falla dirigida á Assembléa Legislativa da provincia do Espirito Santo na abertura da sessão ordinaria do anno de 1846 pelo exm. vice-presidente da mesma provincia, Joaquim Marcellino da Silva Lima.
Pág. 07:
“Força Publica
(...) entretanto que o interesse particular dos Senhores dos escravos, a das Praças da Guerrilha contribue tambem efficazmente para que ellas sejão coroadas de feliz sucesso, como ha bem pouco tempo se observou, sendo arrazado um antigo quilombo, e presos quasi todos os escravos que o occupavão.”
FONTE 6
Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na segunda sessão ordinária da quinta legislatura, em 1843, pelo Ministro e Secretário de Estado Interino dos Negócios Estrangeiros Honório Hermeto Carneiro Leão, em 15 de maio de 1843.
Pág.
“Na província do Espírito Santo (...) a destruição de um quilombo composto de 18 casas habitadas por uma quadrilha tão numerosa, que animou-se a resistir a uma guerrilha de 70 homens bem armados e municiados que o presidente da província para ali mandára a destruir esse quilombo, o que conseguiu sem perda de um só homem, e com o ferimento leve de uns dous, ficando porêm mortos alguns dos escravos fugidos. Outros quilombos porém restavam, que o presidente se propunha a mandar destruir.”