quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Maria Ortiz - A Lenda, a Verdade e a Tradição (II): Uma Sexta Fonte Primária

"Maria Ortiz em sua janela"
Imagem ficcional gerada por IA direcionada pelo autor

Em 2016 fiz uma publicação, no presente Blog, intitulada "Maria Ortiz - A Lenda, a Verdade e a Tradição", onde tratei da historicidade da heroína capixaba que deitou um tacho de água fervente em cima do comandante dos invasores holandeses que atacavam a Vila de Vitória, em 1625. Ao final do artigo fiz uma relação de cinco fontes primárias contemporâneas (ou pouco posteriores) à investida dos neerlandeses. Quem quiser ler, basta clicar no link que segue abaixo:

https://gerson-franca.blogspot.com/2016/10/maria-ortiz-lenda-verdade-e-tradicao.html

Tempos após publicar esse escrito encontrei, em 2019, uma nova fonte primária e contemporânea aos fatos, que até então havia passado despercebida na historiografia capixaba. É um trecho da obra de Eugenio de Narbona e Zuñiga intitulada "Historia de la Recuperacion del Brasil", escrita em 1626 e publicada pelos Anais da Biblioteca Nacional em 1950. Assim reporta-se essa última publicação, sobre a obra citada:

"A crônica de Engenio Narbona esperou três séculos para vir a luz. Não há dúvida que o Bispo escreveu-a em face de notícias orais, que lhe foram transmitidas pelos aventureiros espanhóis que vieram restaurar a Bahia, e de papéis da época, como relatórios e relações de oficiais e cronistas".

A parte da obra que trata da fracassada tentativa holandesa de tomar a Vila de Vitória, em 1625, está às páginas 185/189 da publicação supra aludida. Pela narração dos fatos, parece tratar-se de um relatório oficial, talvez elaborado pelo próprio comandante Salvador Correia de Sá e Benevides. Lamento informar ao leitor, porém, de que não há menção à mulher do tacho, a nossa Maria Ortiz; as pessoas citadas no documento são o Salvador de Sá, o capitão donatário Francisco de Aguiar Coutinho, o comandante da esquadra holandesa Pieterszoon Piet Hein e o "traidor" Rodrigo Pedro.

Confrontando essa fonte com as outras conhecidas e depurando-as para conciliá-las, é possível traçar um minucioso relato sobre o ataque holandês e a defesa dos capixabas naquele março de 1625. Na presente fonte, há boa descrição de Vitória e das ações nas batalhas, dentre outros pormenores. Ao final do presente post, como prometi em 2022 em uma publicação em rede social, coloco a transcrição do trecho em espanhol, tal como está na publicação da Biblioteca Nacional em 1950. Mas, aproveitando, gostaria de tecer umas pequenas considerações com base nesse maravilhoso documento; há muito o que retirar dessa relevante fonte de nossa história.

Desse documento denotamos, por exemplo, que a Vila de Vitória em 1625 ainda estava assentada em cima da colina, pequeno promontório, hoje chamada de Cidade Alta. As edificações ainda não haviam descido até ao que eles chamavam, naquele tempo, de praia da vila, que era considerada como adjacência aos limites da urbe. De acordo com as pesquisas que desenvolvi até hoje, somente no último quartel do século XVII é que as primeiras casas que começaram a ser construídas na ribeira da colina chegaram próximas ao canal de mar. Vemos também que as subidas do morro, cortadas por nove ladeiras que da vila desciam até o mar ou até as laterais alagadiças, eram cobertas com vegetação rasteira e pequenos arvoredos. Outra informação interessante é que as entradas da vila correspondiam às nove bocas dessas ruas/ladeiras; e que foi nessas bocas que os defensores locais se entrincheiraram usando as portas das casas, por não dar tempo de cavar trincheiras e formar barreiras de terra.

De acordo com as pesquisas que desenvolvo, a principal ladeira de acesso à vila, nessa época, não era onde está hoje construída a ladeira Maria Ortiz (antiga ladeira do Pelourinho ou do Cais Grande, por onde reza a tradição que subiram os atacantes que foram maculados pela nossa heroína), mas sim a ladeira que subia da chamada "pedra" (ou "lage"), conhecida como ladeira da Matriz; era ao lado dessa pedra, na região onde depois seria construído o mercado do peixe, que as embarcações atracavam até a construção do primeiro embarcadouro em molhe na região do futuro cais. As bases dessa lage, inclusive, serviram de fundação para anos depois se construir o primeiro forte no sopé da vila, conhecido oficialmente como "Fortaleza de Nossa Senhora do Carmo", mas chamado coloquialmente de "forte da lage", ou "forte da pedra". Os holandeses ocuparam a praia da vila e ali se organizaram para empreender o ataque, subindo as ladeiras, em especial (ao que parece) a subida onde hoje está a Escadaria Maria Ortiz. Outra informação interessante é ratificação dos mapas locais confeccionados nessa época, que ilustravam que os Engenhos ficavam ao fundo da baía, onde desaguavam os rios.

Enfim, dentre muitas outras informações que podemos retirar dessa fonte no que toca à região em 1625, bem como os pormenores das batalhas, vamos com o documento transcrito, em espanhol. Segue abaixo:


FONTE:

NARBONA Y ZUÑIGAEugenio de. “Historia de la Recuperacion del Brasil”. Anais da. Biblioteca Nacional. Vol. 69, 1950, p. 185-189

TRANSCRIÇÃO:

Pág 185

(...)

Esta armada de Pedro Pers (1) corriò los mares del Brasil hasta doce de marzo de mil, y seiscentos y veite y cinco em que aportò al

(1) O autor refere-se a Pieter Pieterszoon Heyn.

Pág 186

paraje que llaman la Capitania del Espiritu Sancto que por la vanda del Sur dista de la Baîa cien leguas donde el mar forma uma  Isla em tierra firme entrando um brazo por la parte del corte que em semi sirculo rodea seis leguas de capacidad entrando angosto como doscientos pasos continuandose la misma anchura todo lo que baxa la Isla, por la parte del Poniente hay um rio de agua dulce que desagua em la ria, que llaman de la poblacion, em que hay mucha cantidad de ingenios de que son dueños los moradores de la Villa de Victoria de que es Señor, y Capitan Francisco de Aguiar Coutiño, lugar grande, y de no poca vecindad que dista de la Barra, y boca de la Ria que sirve de puerto, una legua; todo el sitio desta isleta se levanta a manera de monte aunque com elevacion moderada, haciendo la parte en que esta fundada la Villa, que es a las mismas Ribeiras, uma eminencia superior a lo demas, por cuya ocacion el sitio del lugar es mas sano, mas alegre, y defendido, el terreno es muy fertil, la estancia gustosissima, y de gran provecho para los habitadores que viven seguros defendidos de la estrechura de la Barra que a la vanda del norte tiene um cerro, o montaña en cuya cumbre está una ermida dedicada a la devocion, y nombre soberano de la Virgem Madre de Dios nuestra Señora, que del sitio se llama de la Peña, que con especial devocion, y piadoso culto es venerada de todo el estado del Brasil, y con votos, y ricas ofrendas visitadas de proprios, y estrangeros, cuya devocion se aumento com haverla havitado el Padre Jozeph de Anchieta de la Compañia de Jesus cuya santa, y exemplar vida fuè edificacion a todo el pais, y su doctrina utilíssima porque se convirtieron muchos Indios que recivieron el Santo Baptismo. Em esta parte (pues) retiro apacible hurto del mar, habitacion segura, y deleitosa de muchos Religiosos que alli tienen monasterios, grangeria de los habitadores que desfrutando la fertilidad de la tierra son fructuosos a otras províncias donde transportan sus dulces fructos, se vivia seguramente sin medio (sic) que huviesse enemigo que perturbasse aquella paz pero um ingrato forasteiro que haviendose avencindado alli, y merecido por sus delitos ser condenado a pena de muerte de que indigno fuè perdonado desagradecico el tal (que se llamava Pedro Framengo) a la piedad que no merecio conociendo que el enemigo andava em aquellos mares, creyendo que pues no acometia aquella plaza ignorava su importância, recatado como aleve saliò de la Isla en un Batelillo a persuadirle que embistiesse el lugar, y tomasse aquel puerto sugnificandole, y encarecendo su importancia, y que era de calidad que una vez apoderado del era impossible, poder humano recuperarle, poque con poco arte ayudada su natural fortificacion, se hacia inexpugnable, y la tierra adentro era muy estendida, muy capaz, y muy fértil, de muchos Indios, a quien presto reduciria, y venceria fa-

Pág 187

cilmente, y encareciendo las utilidades de la empresa se la facilitò proponiendo el estado em que se hallavan dos havitatorés, seguros, y desarmados sin prevencion, y aun sin miedo.

El Ingles capitan de Olanda que sentia haverse de volver a la Baîa sin haver obrado cosa porque mereciesse premio admitiò la platica, y juzgò la empresa como se la significavan facil, util,, y segura, y fueralo sin duda, y a nosostros de incomparable daño si com providencia que ignoran los mortales, no huviera Dios para socorro de tanto peligro trahido acaso a quel puerto a Salvador de Sà Venavides hijo de Martin Correa de Sà Governador del Rio Janero que con un socorro como ya diximos vino pocos dias antes de Lisboa despachado de su padre a servir a su costa con docientos, y sesenta hombres blancos, y Indios que em tres caravelas, y tres canoas venian al socorro del reconcavo; acaescio pues que estando em aquel puesto de camino Salvador de Sà con sua gente el enemigo com toda confianza se entrò por la barra adentro a doce de Marzo a la hora de tarde, y sin querer reconhecer la Villa, se entretudo aquella noche hasta que el dia seguiente desembarcò trecientos mosqueteros, que ocuparon luego el arraval, asegurando, (segun su usanza) a la gente, pidiendoles que no huyessen. El Capitan Aguiar poco prevenido aunque con mucho valor temiò el conflicto, y pareciole que la plaza estava perdida, y aconsejanvanle (sic) el retirarse a los ingenios, pero su valor venciò el efecto, y alentado com la gente de que ya se via (sic) dueño, y com tener de su parte a Salvador de Sà con el espiritu bizarro que heredo de sus aguelos (sic) que como grandes capitanes sirvieron a sua Rey, y a la pátria tan gloriosamente, y assi juntos sin embarazarse com el peligro animosos se dispusieron em defensa, no solo creyendo poder evitar el daño sino esperando victoria, juntose la gente toda que sacò de las caravelas, y canoas, que retirò a la parte contrapuesta de la ciudad, encubriendolas de la maleza que havia em aquellas orillas, com ella, y com sesenta mas parsonas que havia em lugar se fortificò, previniendo primero uma cosa digna de alavar por bien pensada conocio como el enemigo era muy diestro em las armas de fuego, que trahia, y que em ellas lo suyos eran povo platicos, y que llegando a las manos seria de mas efecto com la espada que con arcabuz, y los Indios com flechas, de buen efecto, y assi ordenò que los blancos dexassem los arcabuces, y que com las rodelas que se pudieron hallas, se armassen solo com espadas, prevenido esto ordenò que seis pedreros que estavan em lo baxo de la ciudad donde no se pude esperar pudiessem ser de efecto, se subiessen arriba. De la ciudad bajan nueve calles, que terminan em el arraval las bocas, trincheò con las puertas que quitò de las casas porque no dava tempo a cortar faxina, aunque la havia a la mano, com las puertas fortificadas las calles, puso em

Pág 188

cada una veinte hombres blancos, y Indios, em la praza puso sesenta, y el com veinte acudia a ver por la parte, que el enemigo se determinava a entrar de las nueve calles para acudir a ella, y esforzar la defensa, todo estava lleno de matorrales, y maleza, que es cosa casi natural em toda la tierra. Puesto em esto estado las cosas, animados los soldados con exemplo, y com razones del valiente mancebo que les governava, conociose que el enemigo se aplicava por la tercera estancia a la parte del Norte, y Salvador de Sà acudiò a ella, y entre las matas de la maleza encubiertos puso de mas de los que havia a uma parte ocho soldados y a la outra igual cantidad, y com seus quedose el capitan em medio de las dos esquadras, el enemigo presumido, y bizarro, marchava la buelta de la ciudad, a la parte donde Salvador estava encubierto, y quando llegò casi a pisarle saliò el noble Portugues apellidando Santiago, y en el mesmo (sic) punto los de la mano derecha, y siniestra del mismo modo con valentia, y denuedo español diciendo Santiago, acometen al enemigo que embarazado de lo improviso de la accion, y la presteza con que les ofendian creyendo mayor numero, y aun excesiva cantidad de gente que les acometia sin orden se retiravan, apresurados huyan, arrojando los mosquetes que juzgavan carga inutil, aunque no para que desebarazados, pusiessen mano a la espada, que covardes tuvieram simpre en las correas; a los que el miedo hizo ligeros alcanzaron las flechas de los Indios, que siguieron el alcanze hasta el mar donde se recogieron los enemigos vencidos infamemente de quarenta y seis hombres, que fueron com los que Salvador de Sà les acometiò. Quedaram muertos em el campo veinte, y cinco, y muchos heridos, y por despojos mas de cien mosquetes, uma vandera, uma caxa, y outras cosas, embarcados yà los Olandeses, desde la orilla se les ojò el lamentar, y de la manera que sin tempo se castigavan se su covardia, atribuyendo a mas alta causa el triste efecto, todo lo restante del dia, se estubo el enemigo quieto oyendoles como rezar, y a la tarde vieron que acompañado de grande alaridos echaron um cuertpo a la mar, quisieron intentar bolver a la empresa, y Salvador de Sà, que no se asegurò por el buen suceso de que diò gracias a Dios, que esforzò su juventud, mostrose a la defensa, y fuè ocasion para que el enemigo zarpasse, y se fuese, Salvador de Sà sacò sus caravelas, y canoas, y traxolas donde se pudo embarcar mas comodamente, yendo embarcado echò um Indio a tierra, que desde un  arbol alto vio como el enemigo havia entrado por el Rio de la poblacion a hacer aguada, y que alli havia tomado, y desecho unas canoas de las del servicio de los ingenios, y haviase savido que antes tomara um patache; tanto por dar fin a la empresa, quanto por asegurar que ido el, pudiesse el enemigo atraverse a bolver, Salvador de Sà procurò hacerle mas daño, y assi se entrà el Rio arriba,

Pag 189

y al desaguadero puso las proas de las dos canoas hacia la mar, trincheandose, y com las otras se atravessò, y quando llegaron los pataches del enemigo a abordar dieron sobre ellos valientemente, matandoles 40 (12) de la gente sino fueron cinco, que se cogieron vivos. Em uno dellos un soldado de muy buen talles, y com buen adomo, que otro de los prisioneros dixo, que era capitan, y barbaramente animoso em lengua castellana pidiò que le matassen, que no queria vida infame, y sin dar lugar à que pudiesse estorvarselo su amo um Indio que le tenia asido, y que estava sintiendo el dolor de una herida, com um machete le rompiò la cabeza, de los outros se supo, que el muerto, que echaron a lar mar el dia antes era ela mirante de aquella armada, hombre entre ellos de los mayor importancia, y que el Capitan a quien mato el Indio era persona estimada por sua buen juicio tanto como por valentia. Tomado el Patache, y con los prisioneros bolviò Sanvador de Sà al puerto del Espiritu Santo, donde reciviò devidos parabienes, y agradecimentos comunes, pues debian todos a sua valor la libertad, que gozavam. El dia suiguiente apareciò de paz el enemigo, pediendo por cartas muy corteses que le socorriessen com algun refresco a ley de buena guerra, y que le rescatassen los prisioneros, o dixessen que personas eran, para dar quenta a su Republica, y les diessen los pataches, que les hacian gran falta por el precio que quisiessen que alli trahiam mucho oro, y otras cosas de precio com que commutallo. Respondiò Francisco de Aguiar, que ellos eran vasallos del Rey de España de quien ellos eran enemigos, y que no tenian orden de dar otra cosa que polvora, y valas, y servir com el uso de lar armas que tuviessen; replicaron dos veces com otras cartas, y cansado ultimamente Aguiar les escreviò que se fuessen muy a priesa, o, que saldria y los quemaria a todos, temieron efectiva la amenaza, y assi diciendo que antes de um año havia de ser toda la Provincia del Brasil del Conde Mauricio su Señor.

(...)"

Texto e pesquisa:

Gerson Moraes França

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A Historicidade de Zacimba Gaba

 A HISTORICIDADE DE ZACIMBA GABA


Não, leitor. Esse post não foi feito para refutar ou relativizar a existência e luta da princesa africana que resistiu à escravidão aqui no Espírito Santo. Ao contrário: esse nosso escrito busca historicizar a personagem, ou seja, colocar Zacimba Gaba no contexto histórico e conferir-lhe um caráter histórico, depurando incongruências e anacronismos e separando história de mito e lenda.

Rezam as histórias contadas hoje em dia, em suma, que Zacimba Gaba era uma princesa africana de Cabinda que foi escravizada e trazida para o norte do Espírito Santo, onde foi vendida para um senhor de São Mateus. Revelando sua origem, Zacimba sofreu violências e foi castigada pelo seu proprietário e, por isso, acabou envenenando lentamente seu abusador até matá-lo. Depois, após matar todos os seus torturadores, fugiu e ajudou a formar um quilombo nas proximidades, de onde saía com seus companheiros para abordar navios negreiros que traziam escravizados para a região do porto de São Mateus. Nessa atividade acabou libertando várias pessoas da escravidão, antes de ser morta a bordo de uma embarcação abordada pelo grupo.

As histórias contadas oralmente conservaram o nome da pessoa que a comprou, e há até quem tenha posteriormente situado Zacimba Gaba no tempo. As informações hoje circulantes dizem que ela foi trazida da África para o Espírito Santo em 1690, e que seu comprador foi um senhor chamado José Trancoso, proprietário de uma fazenda em São Mateus. Assim, com base nessa data, esses fatos teriam se passado no final do século XVII; parece que tal inserção temporal foi elaborada para fazer um paralelo ou analogia com outro importantíssimo movimento de resistência à escravidão, o Quilombo dos Palmares, onde o líder quilombola Zumbi foi morto em 1695. A data da morte de Zumbi, inclusive, é hoje usada como referência para a celebração do Dia da Consciência Negra (20 de novembro).

Antes de analisarmos a historicidade de Zacimba Gaba, é importante abordarmos a questão de como sua história emergiu e foi registrada. A população de origem africana escravizada, em São Mateus, foi substancialmente significativa. Movimentos de resistência e quilombos fizeram parte da realidade histórica local. Algumas personalidades negras que a história oral preservou foram, depois, individualizadas e reveladas através de documentos, tais como Benedito Meia Légua e Negro Rugério, por exemplo. Assim, apesar de não existirem documentos (pelo menos, até hoje) que comprovem a existência de Zacimba Gaba e de sua atividade, de forma alguma contestamos a sua existência e ação, pois essa história foi preservada na memória das pessoas que passaram a mesma adiante através das gerações, juntamente com outras que restaram comprovadamente verídicas.

A história da princesa africana de Cabinda escravizada foi registrada em uma entrevista realizada em 18 de junho de 1968 (Russo, 2011). Nessa ocasião, o jovem entrevistador Sebastião Maciel de Aguiar compilou o relato de Balduíno Antônio dos Santos, um senhor descendente de escravizados que relatava ter 95 anos de idade na época e que conhecia muitas das histórias preservadas por sua comunidade através da tradição oral. Balduíno, inclusive, teria sido um dos primeiros beneficiários da Lei do Ventre Livre, segundo Maciel; o que é plenamente possível, considerando que Lei do Ventre Livre é do final de setembro de 1871 e que o ano presumível do nascimento de Balduíno é 1873. Ele já era reconhecido desde os anos 1920 por conhecer e guardar relatos da história negra local e transmiti-los em conversas. Após Maciel de Aguiar revelar essa história e publicar anos depois vários trabalhos sobre a resistência negra no Estado, (que, juntamente com dezenas de outras obras, o credenciaram a ser indicado para o Nobel de literatura no ano passado) começam a tomar feição as histórias que circulam hoje em dia.

Dito isso, primeiramente analisemos a verossimilhança do recorte temporal, e consideremos o relato de que Zacimba desembarcou diretamente da África em São Mateus. Não nos parece verossímil que ela tenha chegado ao norte do Espírito Santo em 1690, tal como é hoje contado. Nesses anos finais do século XVII, vésperas da descoberta do ouro, a economia açucareira passava por uma grande crise, e há muito que não havia contato comercial direto do Espírito Santo com a Europa ou África: nem de gêneros, e muito menos de escravizados. Desde a segunda metade do século que não havia rota direta entre Vitória e os continentes acima mencionados, a ponto da Alfândega local ficar desativada. O comércio do Espírito Santo tinha se reduzido a uma movimentada navegação de cabotagem, onde os comerciantes faziam seus negócios principalmente com as praças do Rio de Janeiro e de Salvador, estes sim portos de importação e exportação para a Europa e África. Além disso, em fins do século XVII o povoado de São Mateus ainda estava iniciando seu processo de ocupação, e nem estava estabelecida ainda a importante futura atividade econômica da fabricação e comercialização da farinha de mandioca. Desse modo, e considerando a memória tradicional passada pelas gerações de que Zacimba desembarcou em São Mateus, vinda de Cabinda, estaria afastada a hipótese de ter aportado no Espírito Santo em 1690.

Quando teria ocorrido a chegada de Zacimba Gaba, então? Guardado o fato narrado pela tradição de que ela desembarcou diretamente no norte do Espírito Santo, a possibilidade mais provável, e praticamente certa, é que tenha ocorrido em algum momento entre 1831 e 1850, quando o tráfico atlântico de escravizados era uma atividade ilegal. Pode ter ocorrido, também, entre 1850 e 1856, pois há notícias de desembarques e tentativas de desembarque no Espírito Santo até essa última data. Até 1831, a importação de escravizados dos portos da África era legal, e o Espírito Santo era "abastecido" principalmente com os escravos que desembarcavam no Rio de Janeiro. Com a ilegalidade do tráfico, o desembarque de africanos começou a ser feito em zonas pouco povoadas e onde havia pouca fiscalização, diante da impossibilidade legal de desembarcar escravos nos maiores portos. Assim, nesses cerca de 20 anos, os escravizados eram introduzidos no Brasil por praias ou portos ermos ou pequenos. Aqui no Espírito Santo ocorreram desembarques ilegais em grande escala, principalmente nas proximidades de São Mateus e de Itapemirim e Itabapoana.

As datas que citei acima são o entendimento dos pesquisadores e historiadores que publicaram a importante obra "Enciclopédia Negra: Biografias Afro-Brasileiras" (Gomes, Lauriano, Schwarcz, 2021), que tratam de mais de 500 personalidades negras, e está embasada historicamente com elaborados argumentos e confiáveis fontes.

Quanto à origem de Zacimba Gaba e de seu nome, penso que não nos cabe tecer teses para além de reconhecer que dificilmente a comunidade negra local de finais do século XIX e início do século XX teria preservado esses dados se fossem mera invenção. Podemos até acreditar que pode ter havido alguma corruptela em seu nome, modificando-o sutilmente, mas nunca que tenha sido criado por ficção. Quanto ao porto de seu embarque, Cabinda, sabe-se que há mais de 200 anos (à época) se fazia comércio de escravizados entre a região do Congo-Angola com o Brasil, e que Cabinda foi porto de embarque de dezenas de milhares de cativos. Das cerca de 5 milhões de pessoas escravizadas que chegaram ao Brasil durante os cerca de 350 anos de tráfico atlântico, 75% eram provenientes do Congo-Angola. Inclusive, se considerarmos que Zacimba chegou de Cabinda diretamente em São Mateus, é ainda mais provável que tenha vindo durante o período do tráfico ilegal, entre 1831 e 1850/56, pois nessa época o volume de cativos traficados aumentou substancialmente e Cabinda se tornou um dos dois principais portos de embarque de escravizados para o Brasil.

Tudo caminha nessa direção: Zacimba Gaba teria chegado ao Brasil no segundo quartel (ou meados) do século XIX, embarcada no porto de Cabinda e desembarcada ilegalmente nas proximidades da vila de São Mateus, onde foi comprada por um fazendeiro local de nome José Trancoso; o nome desse fazendeiro pode ter sofrido, também, alguma corruptela: precisaríamos investigar melhor a sua existência para tecer qualquer afirmação. E quanto a sua etnia e condição de "princesa"? Sabemos que os africanos escravizados que chegavam ao Brasil não eram, via de regra, chamados pelo nome de sua etnia, mas sim pelo porto ou região de seu embarque. Assim, Zacimba, seria certamente de alguma etnia do Congo, onde está o enclave de Cabinda. A história de que ela e seu grupo conheciam técnicas de navegação torna ainda mais provável essa hipótese, pois os habitantes do baixo Congo eram bons navegadores e muitos escravizados dessa região foram, no Brasil, utilizados como marinheiros. Já em relação à Zacimba fazer parte da elite dirigente da região que habitava na África, também não é improvável, como bem reza a obra supra citada que abaixo reproduzo:

"Não são incomuns relatos a respeito de reis, princesas e rainhas africanos que acabaram escravizados e trazidos para as Américas. Tampouco são inverossímeis, posto que o comércio negreiro alcançava os sertões africanos, incentivava guerras internas e processos de banimento sociais associados à escravização e à venda de inimigos" (Gomes, Lauriano, Schwarcz, 2021).

Diante de todos esses argumentos e fontes, creio que historicizamos a existência e as ações de Zacimba Gaba. Uma mulher da elite de sua comunidade africana que, escravizada, foi trazida ao Brasil em algum momento do segundo quartel (ou meados) do século XIX e vendida em São Mateus, no Espírito Santo. Por essa época, inclusive, a maior parte das pessoas escravizadas trazidas ao Brasil eram crianças, jovens ou mulheres. Em São Mateus ela sofreu violências e, depois de fugir do cativeiro, formou uma comunidade quilombola que resistiu à escravidão. Possivelmente atuou por pouco tempo para libertar escravizados recém chegados ao Brasil, mas acabou sendo morta em uma dessas ações. Não há documentos contemporâneos que a individualizam ou que tratam das ações específicas de seu grupo, mas há muitas fontes que asseveram a substancial existência de quilombos, escravos fugidos e ações desses grupamentos na região de São Mateus. Sua história, porém, perpetuou-se na memória dos locais e fundiu-se com elementos de mito e lenda. Balduíno, o descendente de escravos que nos legou essa história através da pena de Maciel de Aguiar, dizia que tudo lhe fora contado pelo seu avô. Teria esse último ouvido falar dos feitos de Zacimba Gaba por ter sido contemporâneo aos fatos?

Por fim, a resistência de Zacimba Gaba também pode ser denotada pela preservação de seu nome, ainda em vida e na condição de escravizada; os africanos cativos, ao embarcar nos navios negreiros, eram batizados e recebiam um nome cristão. Quando não o fossem no embarque, o eram fatalmente no desembarque. Assim, sua identidade e sua religião eram invisibilizados, e depois apagados. Zacimba era conhecida pelo seu nome africano, e a preservação de seu nome e de sua memória através dos tempos é um vitorioso símbolo de resistência.

Gerson Moraes França

Fontes:

Brincantes & Quilombolas. Maciel de Aguiar. 2005.

Zacimba Gaba - Princesa, Escrava e Guerreira. Maciel de Aguiar. A Tribuna, 2007.

Maria do Carmo de Oliveira Russo. A Escravidão em São Mateus; Economia e Demografia (1848-1888). São Paulo, 2011.

Enciclopédia Negra: Biografias Afro-Brasileiras. Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz. Companhia das Letras, 2021.

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Joaquim Marcelino da Silva Lima, o Barão de Itapemirim: Registros para uma Biografia.

REGISTROS PARA UMA BIOGRAFIA
> BARÃO DE ITAPEMIRIM

O presente artigo é objetivo. Aqui colocamos dados sobre a vida de Joaquim Marcellino da Silva Lima, o Barão de Itapemirim. Em nossas pesquisas conseguimos clarear vários dados e fatos da vida do Barão de Itapemirim onde, na historiografia, havia lacunas ou inconsistências. Aproveitamos, também, para agregar em um só local alguns dos dados e fatos já conhecidos, de modo que o pesquisador os obtenha com objetividade. Dados genealógicos de casamentos e filhos não foram aqui elencados. Vamos lá.

BATISMO
12 de dezembro de 1781, na Sé de São Paulo, Capitania de São Paulo.
Joaquim, filho de Joaquim José da Silva e de Ana Fernandes Lima.
Fonte: São Paulo, Parochia da Sé, Livro 5 - Baptizados 1780-1784, volume 40, pag. 77 verso.

Batismo de Joaquim, filho de Joaquim José da Silva e de Ana Fernandes


CASAMENTO DOS PAIS:
27 de fevereiro de 1781, na Capela da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, São Paulo.
Joaquim Joze da Sylva, natural de Campos dos Goitacazes, e Anna Fernandes Lima, natural de São Paulo.
Observação: nesse registro é possível conhecer os ascendentes de Joaquim Marcelino (avós e bisavós), com suas respectivas naturalidades.

Assento de matrimônio de Joaquim José da Silva e Ana Fernandes Lima


RESIDÊNCIA DO CASAL:
Residiram pouco tempo em São Paulo e mudaram-se para o Rio de Janeiro.
De 1790 em diante, residiram em Campos dos Goitacazes.

CHEGADA AO ESPÍRITO SANTO:
Janeiro de 1797. Compraram uma posse em Benevente (atual Anchieta), que seria a origem da Fazenda Três Barras, onde seria construído um engenho e haveria lavouras de cana. Possivelmente Joaquim mudou-se junto com seus pais.

PROPRIETÁRIO DA FAZENDA TRÊS BARRAS:
1807, por compra feita junto aos próprios pais.
Essa fazenda foi, posteriormente, vendida (em alguns momento antes dos anos 1850).

PROPRIETÁRIO DA FAZENDA SANTO ANTÔNIO DO MUQUI:
Janeiro de 1820, por compra feita junto a Gertrudes Maria do Espírito Santo, viúva de Miguel Antônio de Oliveira.


REGISTRO DA PATENTE DE TENENTE DE MILÍCIAS:
Conferida e confirmada a Joaquim Marcellino da Silva Lima. Foi confirmada por Dom João VI no Rio de Janeiro, em 22 de outubro de 1810, e registrada em Victoria no dia 13 de outubro de 1811.
Patente concedida por Fernando José de Portugal em 1799, quando Governador e Capitão General da Capitania da Bahia (1788/1801), a qual a Capitania do Espírito Santo estava subordinada no militar, à época.

Caput do registro da carta patente conferida a Joaquim Marcelino da Silva Lima


MUNDANÇA PARA ITAPEMIRIM:
Entre janeiro e outubro de 1820.


FICHA DO CAPITÃO JOAQUIM MARCELLINO:


Ficha do Capitão Joaquim Marcelino da Silva Lima, feita pelo Coronel José Francisco de Andrade e Almeida Monjardim e datada do dia 30 de junho de 1823. Este último era o comandante do Regimento de Infantaria de 2ª Linha; Silva Lima era o comandante da Oitava Companhia da referida tropa, sediada em Benevente (atual Anchieta).
Nessa época, o Espírito Santo tinha os seguintes corpos de tropa: Corpo de Tropa de Linha, Corpo de Pedestres, Batalhão de Artilharia de 2ª Linha e Regimento de Infantaria de 2ª Linha. Este último estava composto por várias Companhias, e Silva Lima era comandante de uma delas.
Assim está na "ficha": a patente (Capitão), o nome (Joaquim Marcelino da Silva Lima), a idade (41 anos), o tempo de serviço em tropa de linha (não havia ainda completado um ano), o tempo de serviço em milícias (24 anos; portanto, iniciou em milícias aos 17 anos de idade, em 1799), a data do decreto de sua nomeação para a tropa de 2ª linha (16/dez/1822), lugar de residência e distância da sede da companhia (residia em Itapemirim, a seis léguas de Benevente), e um interessante campo de "Nobreza, ocupação, disposição física e aptidão para o serviço, bom ou mau comportamento militar (Senhor de Engenho, rico, robusto para o serviço, inteligente, bom comportamento militar, e com adesão à causa do Império).
Uma "ficha" muito abonadora. E realmente o era; em outras "fichas", o comandante da tropa não poupou críticas à outros oficiais.


REGISTROS DOS TÍTULOS RECEBIDOS:

> Hábito de Cavaleiro da Imperial Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo
Decreto de 04 de abril de 1825 (Ordem de Cristo)

> Oficial da Imperial Ordem da Rosa
Decreto de 25 de março de 1845 (Ordem da Rosa)

> Barão de Itapemerim:
Decreto de 15 de dezembro de 1846

> Barão com Honras de Grandeza de Itapemirim:
Decreto de 31 de dezembro de 1849


Joaquim Marcellino da Silva Lima
Quadro do Barão de Itapemirim




















ÓBITO
18 de dezembro de 1860 (79 anos)
Causa da morte: Derrame (ataque de estupor, ataque apoplético).
Estava em Bananal (atual Pacotuba, distrito de Cachoeiro de Itapemirim) e foi conduzido para sua fazenda no Itapemirim.
Sepultado na Capela da Fazenda Santo Antônio do Moqui, Itapemirim, Província do Espírito Santo.




Palacete do Barão de Itapemirim, na Fazenda Santo Antônio do Muqui
Itapemirim, Espírito Santo


Pesquisa e texto:
Gerson Moraes França

quarta-feira, 22 de maio de 2024

As Peripécias do Jovem Vasco, o Filho.

Tela representando a chegada de Vasco Coutinho ao Espírito Santo.
Morgana de Sá, 1999. Acervo da Casa da Memória, Vila Velha/ES.
Fonte da imagem: site "Morro do Moreno".

23 de maio de 2024 está aí; dia de memorar a colonização do solo espírito-santense. Efeméride que nos lembra da chegada dos europeus portugueses capitaneados por Vasco Coutinho nas praias da atual baía de Vitória, em 1535, e que ali fundaram seu primeiro núcleo - a então Vila do Espírito Santo, atual Vila Velha - depois de canhonear os indígenas tupi guaianases que ali habitavam na ocasião.

De Vasco Fernandes Coutinho, filho de Jorge de Mello e Branca Coutinho, o fidalgo português que, ainda muito jovem, singrou os mares, combateu nas conquistas ultramarinas portuguesas, comandou cidadelas do império português e chegou até o Japão, muito se fala. Já não tão jovem, ainda não era um homem velho quando se aventurou novamente pelo mar afora e combateu e conquistou, para Portugal, terras na América que foram por ele batizadas com o nome de Capitania do Espírito Santo em 1535. Vasco, o Capitão Donatário, foi o homem que comandou a fundação do que hoje é o nosso Estado do Espírito Santo.

Após muitos anos governando sua donataria, e já bem idoso e doente, Vasco Fernandes Coutinho legou sua sucessão a um filho de seu relacionamento com Ana Vaz de Almada, mulher com quem teve uma relação extraconjugal e constituiu família, já no Brasil. Seus filhos legítimos, fruto de seu casamento com Maria do Campo, já estavam todos falecidos quando Vasco nomeou o seu primogênito com Anna Vaz para herdar sua Casa e Capitania. Essa nomeação foi aprovada por Alvará de Dom Sebastião, Rei de Portugal, em 1567.

E hoje resolvi falar um pouco sobre esse filho bastardo, posteriormente legitimado, do Vasco pai. Trata-se de Vasco Fernandes Coutinho, o filho: homônimo, portanto, de seu genitor. Não se conhece (ainda) o ano de seu nascimento, e nem se sabe ao certo se nasceu no Brasil ou em Portugal. O que podemos afirmar com certeza é que Vasco pai veio ao Brasil e aqui se relacionou com sua concubina Ana Vaz, onde viveram maritalmente. Podem ter vindo juntos em 1535, ou iniciado sua relação na América depois: o certo é que já estavam juntos em 1540. É o que se infere dos documentos que tratei nesse BLOG sobre a Sesmaria de Brás Telles. Então, Vasco Filho teria nascido em 1535 ou depois; e antes de 1545, quando nasceu o terceiro filho de Vasco pai e Ana Vaz, chamado Ignácio de Mello. Sou inclinado a entender que Vasco filho teria nascido em Portugal, como afirmam muitos autores; mas teria vindo a luz depois de 1540, quando Vasco viajou para Portugal, e antes de 1543, data máxima que creio para a gestação de seu primeiro irmão, que seria batizado com o nome Jácome Coutinho. Assim penso fundamentado na carta de Mem de Sá escrita em 1560, quando em passagem pelo Espírito Santo encontrou "três filhos de Vasco Fernandes Coutinho moços sem barbas". Se Vasco filho tivesse nascido em Portugal e antes de 1535, estaria com mais de 25 anos em 1560, e não seria mais um "moço sem barba". Acredito que esses três filhos muito jovens de Vasco pai seriam Vasco filho, Jácome e Ignácio (este, com 15 anos na ocasião), e não os filhos do primeiro casamento que já seriam todos "barbados" nesse quadrante.

Mas são somente ilações longe de serem comprovadas; talvez nunca sejam e, por isso, presumimos e tecemos nossas considerações com base em indícios. Seria até legal se "Vasquinho" tivesse nascido no nascente Espírito Santo: seria um dos primeiros europeus vindos a luz no  "novo mundo". Mas, nascido no Brasil ou em Portugal, o fato é que veio ao mundo possivelmente entre 1535 e 1544, e provavelmente entre 1540 e 1543 em solo lusitano. Tudo indica que a família retornou ao Espírito Santo posteriormente, juntos ou depois de Vasco pai, e não só porque estavam os três irmãos no Brasil em 1560: há documento que comprova que o irmão mais novo, Ignácio, falava "la lengua brasílica muy bien" - isto é, falava o idioma indígena tupi-guarani, língua corrente em terras espírito-santenses naqueles primevos tempos. Possivelmente Vasco filho também conhecia o tupi, e isso só seria crível se os filhos do Donatário tivessem vivido parte de sua infância e/ou adolescência no Brasil.

Em algum momento da primeira metade da década de 1560, Vasco filho retornou para Portugal. Por qual motivo? Estudos? Alguma querela? Não sabemos. Seu irmão mais novo foi residir em Lisboa, ingressando na Companhia de Jesus no final de 1562. Sem mais fontes, sou forçado a acreditar que Vasco filho teria ido para Portugal em data próxima à essa. "Vasquinho" volta a figurar nos registros históricos, dessa vez expressamente, em 1565: em 25 de março desse ano, presente em Lisboa, zarpou com a frota da carreira das Índias que partiu para o oriente com quatro embarcações na armada comandada por Francisco Sá de Meneses. Em princípio de setembro chegaram em Goa. No início de janeiro do ano seguinte, a frota iniciou viagem de retorno. Em setembro de 1566 uma das naus chegou em Lisboa; outras duas tiveram que invernar em Moçambique, chegando em Lisboa apenas em abril de 1567. Uma quarta embarcação se perdeu. Não sabemos se Vasco filho retornou na primeira ou nas últimas que chegaram em Lisboa. O que sabemos é que em novembro de 1567 ele estava em Portugal, quando iniciou-se o processo de reconhecimento de Vasco Fernandes Coutinho, o filho, nomeado que foi por seu pai Vasco Fernandes Coutinho para sucedê-lo na sua Casa e Donataria.

Abro aqui um rápido adendo: não entrarei em pormenores sobre a data da morte do primeiro Capitão Donatário e fundador do Espírito Santo. Há apenas uma documentação que informa que Vasco pai havia falecido em 1561, e que nos parece ter sido um grave erro do copista. Ao contrário, existem vários documentos que provam que Vasco pai estava vivo depois desse ano, e um documento expresso que atesta que o Donatário faleceu em fevereiro de 1571. Esse é o entendimento de sérios pesquisadores que se debruçaram sobre essa temática, tais como o ilibado Serafim Leite e a saudosa Nara Saletto. 

Sanada essa questão da data da morte do Donatário, até mesmo o processo de sucessão que envolve os dois Vascos, trazidos à luz na historiografia capixaba por João Eurípedes Leal, faz todo sentido. Não conhecemos a data do instrumento de legitimação lavrado por Vasco pai, mas creio ser verossímil ter sido confeccionada depois de 1566. Isso porque em março de 1564 ainda havia comprovadamente um filho legítimo vivo de Vasco pai. Esse herdeiro legal embarcou em uma frota da carreira das Índias, e provavelmente faleceu durante a viagem: das quatro naus, duas se perderam, e uma doença dizimou boa parte dos viajantes. As que tornaram viagem para Lisboa chegaram em abril e junho de 1566, quando possivelmente chegou a notícia do óbito. Faz sentido, portanto, que em algum momento depois dessas datas o Donatário Vasco Coutinho tenha tomado conhecimento do falecimento de seu último herdeiro legal, e nomeado seu primogênito do relacionamento extra conjugal para o suceder.

Em novembro de 1567, como dissemos, inicia-se o processo de legitimação de Vasco Fernandes Coutinho, o filho. O procedimento caminha morosamente; em dezembro de 1568 e janeiro de 1569 movimenta-se, mas ainda faltam sanar alguns impedimentos. Em janeiro de 1570 toma impulso: sanadas todas as questões pendentes, é lavrada a provisão real para que Vasco filho possa tomar posse da governança da Capitania do Espírito Santo. É possível que o sucessor do já bem idoso e doente Vasco tenha embarcado para o Brasil em 05 de julho de 1570, na armada de Luís Fernandes Vasconcelos, que foi nomeado governador do Brasil para suceder Mem de Sá. Mas essa viagem foi desastrosa. Ventos e correntes contrárias, bem como a presença de navios de piratas huguenotes franceses, acabam por impedir que a frota atingisse as terras brasileiras. Uma embarcação foi assaltada pelos piratas, que executaram dezenas de religiosos jesuítas. Os barcos foram parar nas Antilhas, retornando depois para as ilhas oceânicas portuguesas e espanholas e, por fim, à Lisboa para esperar nova oportunidade de seguir com a derrota.

Em 06 de setembro de 1571 Luís Vasconcelos zarpa em nova empreitada rumo ao Brasil. Caso não tenha embarcado naquela primeira frota e reiniciado a viagem, Vasco Coutinho filho embarcou nessa nova partida. Mas o destino também não foi benéfico nessa segunda feita: em 13 de setembro a nau capitânia, onde estavam o governador Luís Vasconcelos e Vasco filho, foi atacada novamente por piratas franceses. O governador foi morto na peleja, e "um fidalgo chamado Vasco Fernandes Coutinho" foi detido, "a quem ataram com vista a um futuro resgate". Ainda em setembro os franceses retornaram à La Rochelle, levando consigo "o fidalgo Coutinho que foi posto em resgate por 1.200 cruzados".

Assim, o nosso "Vasquinho" esteve retido em La Rochelle, na época dos intensos conflitos religiosos que ocorriam na França. Quando teria retornado à Portugal? Em que condições? Teria alguém pago o resgate, ou Vasco filho teria realizado alguma fuga? Questões ainda sem resposta. O mais provável é que algum (ou alguns) parente da família de seu pai tenha satisfeito esse resgate. Esses sucessos explicariam o porquê de Vasco filho ter feito um testamento antes de sua próxima viagem para assumir a Capitania do Espírito Santo, e porque de ter legado sua sucessão a um ramo colateral e legítimo da família de seu pai. Esse testamento foi lavrado em abril de 1573, e sua viagem não deve ter tardado muito pois em 14 de agosto do mesmo ano o fidalgo Vasco Fernandes Coutinho tomava posse, na Vila de Nossa Senhora da Vitória, do governo da Capitania do Espírito Santo.

Há muitos outros fatos e pormenores interessantes sobre o filho bastardo que foi legitimado e que assumiu como o segundo Capitão Donatário do Espírito Santo. Seu casamento com Luiza Grimaldi, a futura "capitoa", sua outra relação marital e seus parentes (irmãs e cunhados), sua boa administração em relação aos colonos, jesuítas e indígenas, sua relação familiar com espanhóis importantes, entre outras coisas mais, dariam mais um bom tanto de parágrafos. Mas o presente artigo não intenta ser uma biografia do primogênito de Vasco pai e Ana Vaz. Quis eu apenas registrar algumas interessantes peripécias vividas pela nossa personagem histórica.

Vasco Fernandes Coutinho, o filho, faleceu em Vitória no ano de 1589 e foi sepultado na Igreja dos padres da Companhia de Jesus. Estaria próximo aos 50 anos de idade. Sua mãe ainda vivia. De Vasco pai, podemos dizer que foi o conquistador e fundador do Espírito Santo. De Vasco filho, podemos dizer que foi o consolidador da Capitania que, desde então, nunca mais periclitou seriamente em relação a sua própria existência.

Gerson Moraes França

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Monte Agá

O MONTE AGÁ: SIGNIFICADO E HISTORIOGRAFIA


"No monte Aghá
Eu te quero, eu te vejo, eu te encontro lá
Oh! Que lindo lugar de ver Deus
Oh! Que doce lugar pra se amar"
KAUÊ, Beto. Piúma.


No lugar onde passo parte do verão no sul do Espírito Santo, tenho uma bonita vista de toda a larga enseada que começa na Ponta de Castelhanos, em Anchieta, e termina em Marataízes. Da minha varandinha, diviso ao longe a bela Ilha dos Franceses e o imponente Monte Agá. Sentado, entre um gole e outro de café, contemplo essas belezas espírito-santenses e divago em formular histórias sobre esses nossos lindos monumentos naturais. Sempre me interessei muito pela nossa história, e pesquisar a "origem" dos nomes das nossas localidades me atrai. A pesquisa toponímia, especialmente a dos lugares do nosso Estado, me desafia e me diverte.

Já há bastante tempo que a "tradução" do que significaria "Agá", do monte, me intriga. Rezam alguns que o termo "Agá" significa "lugar de se ver Deus", e é essa definição a que mais se propaga por matérias e sites pela internet afora. Tal assertiva foi eternizada poeticamente, inclusive, na canção "Piúma" de Beto Kauê, a "música símbolo" do balneário. Quem era jovem na década de 1990 e passou carnaval em Piúma, certamente já andou atrás de um trio elétrico com o Beto Kauê cantando sua música mais famosa à época.

Basta uma pequena busca no Google para observar que o famoso copy/paste sobre o significado corrente do topônimo "Monte Agá" (aproveito para informar que atualmente o monte é grafado "Aghá", mas me servirei da forma mais simples e antiga de grafá-lo) reina soberanamente em revistas e jornais, sites e blogs, dentre outros. Divergem apenas na língua de origem do termo: alguns dizem que é puri, outros que é tupi, e uns poucos misturam no mesmo balaio puri, tupi e até botocudo.

O Monte Agá faz parte da área de proteção ambiental (APA) da Lagoa Guanandy
e foi tombado pelo Conselho Estadual de Cultura em 1985. (foto: site da Folha Vitória)

É fato bem conhecido dos estudiosos mais criteriosos de nossa história que a esmagadora maioria dos nomes dos acidentes geográficos e localidades do Espírito Santo, quando de origem indígena e já nominados até o século XVIII, é de língua tupi. Assim, termos atuais como Guarapari, Itapemirim, Iriri, Meaípe, Piúma, Itaipava, etc, lugares de nosso litoral espírito-santense e com suas mais diversas grafias no curso da história, são todas de origem tupi e, logo, possuem alguma "tradução" ou "significado". O Monte Agá já é assim grafado em mapas da primeira metade do século XVII. Assim, superada discricionariamente em nossa sentença essa que poderia ser a primeira "discussão" do presente artigo, asseveramos conclusivamente que o termo "Agá" é de origem tupi. Portanto, precisamos encontrar o seu significado com base na língua tupínica.

Seria estranho se o Monte Agá não fosse representado nos mapas antigos que retratam a costa do Brasil e do Espírito Santo. Esses mapas dos séculos XVI e XVII eram feitos principalmente para a navegação, e assim eram referenciados os acidentes geográficos do litoral tais como os nomes dos rios, cabos, enseadas, baixios e serras ou montanhas  próximas; essas últimas serviam como ponto de referência para balizar os navegantes. A visão dos contemporâneos para a localização era, portanto, de costas para o mar e virados para a faixa costeira. Na faixa do litoral sul espírito-santense a qual nós nos focamos presentemente, há alguns acidentes que, via de regra, estão elencados nesses mapas. A ponta dos castelhanos, a enseada do rio Benevente (antigo Ireritiba) e sua foz em Anchieta, a boca do Piúma, o rio Itapemirim, a Ilha dos Franceses, as falésias de Marataízes e, é claro, o nosso aqui estudado Monte Agá, costumam aparecer. E foi com base em alguns desses mapas e em uma escritura de acordo entre donatários, todas fontes primárias ou documentos contemporâneos, que consegui fazer a tradução.

Não é preciso ser um grande tupinólogo ou especialista na língua tupi para perceber que a expressão "lugar de se ver Deus" não é a tradução correta do significado do topônimo "Agá". Com um conhecimento rudimentar da língua tupi é possível afirmar isso com boa dose de certeza. Mas então, qual seria a tradução do termo? Para sabermos, precisamos primeiro conhecer as grafias e termos originais do nosso monte.

Logo nos primeiros anos da colonização europeia nas américas alguns nomes de localidades começaram a se firmar em topônimos que ainda hoje as nominam. Em meados do século XVI, por exemplo, no sul do Espírito Santo já estavam firmados os nomes Itapemirim e Guarapari (nomes indígenas de origem tupi, com grafias diversas) e Ilha dos Franceses (nome português para a ilha frequentada pelos franceses, também no singular). Alguns nomes de origem indígena, possivelmente, já nominavam acidentes geográficos antes mesmo da chegada dos europeus. Uns nomes, sejam da origem que for, "pegam"; outros, não. Assim, o nome Managé (atual Itabapoana), provavelmente de origem goitacá (não falante do tupi) não pegou, firmando-se depois o nome tupi Camapuã. Outros nomes se firmam, mas se transmutam em corruptelas que, por vezes, os descaracterizam a ponto de formar um termo bem diverso do original. Podemos citar para esse caso o mesmo Camapuã, que se transmutou em Cabapuan e depois em Tabapuan (atual Itabapoana) no século XIX.

Em princípio, acreditei que o termo "Agá" pudesse ser uma dessas transmutações de um nome maior, ou então parecido. E deitei-me em estudos e pesquisas nas fontes e dicionários, aproveitando o conhecimento que adquiri em um "curso rápido" de tupi que certa feita fiz. Vamos às fundamentações e conclusões.

Várias gravuras do Monte Agá em diversos mapas do século XVII, com recorte temporal entre 1640 e 1675.
Fonte: site "História Capixaba" (montagem de recortes de vários mapas, pelo autor).

A mais antiga referência que temos sobre a possível origem do nome do monte Agá é um documento firmado entre os donatários das Capitanias do Espírito Santo e de São Tomé, respectivamente Vasco Fernandes Coutinho e Pedro de Góes, que tratou dos limites das duas jurisdições em 1539. Convencionaram os dois donatários em estabelecer a divisão em um rio que os indígenas chamavam "Tapemiri" (atual Itapemirim), diante da imprecisão de se divisar como limite o Baixio dos Pargos, divisa original das duas Capitanias. Até batizaram o rio com o nome Santa Catarina, mas esse nome "não pegou"; o nome tupi prevaleceu no correr do tempo. Nesse documento citado, há menção a "uma terra do dito Vasco Fernandes que se chama Aguapé", "obra de duas léguas pouco mais ou menos" do rio Itapemirim. Obviamente, ao norte desse caudal.

Verificando os acidentes geográficos da região, observamos que ao norte do rio Itapemirim corre uma longa e funda praia de águas agitadas que começa a ser quebrada por algumas pontas pedregosas na altura das atuais Itaoca e Itaipava. Bem perto do pouco protegido abrigo de Itaipava, também ao norte, fica do monte Agá. Depois inicia-se uma calma praia em uma enseada muito rasa, que é novamente quebrada por uma formação de rocha que fecha a boca do rio Piúma. No lagamar do Piúma há melhor abrigo para as embarcações. Assim, considerando a precisão aproximada da medida de distância no mar em léguas à época, a Aguapé do documento de Vasco e Pedro só poderia ser dois acidentes: ou o nosso monte Agá, ou o estuário do Piúma. Ou até mesmo um nome comum ou aproximado para ambos.

Não é impossível que a boca do Piúma pudesse ter sido chamada de um nome parecido: Iguape. Em tupi, essa palavra designa o local de uma enseada ou um lagamar que recebe a influência da água do mar e das águas do(s) rio(s) próximo(s). A formação léxica desse termo tupi vem de Y(rio) + Kuá (redondo) + 'Pe (sufixo de local). Assim, Iguape seria algo como local de enseada, lagamar ou estuário de rio. Mas, em relação ao Piúma, isso não vem ao caso. Exemplifiquei apenas para destrinchar a raiz dessa palavra tupi que tem a chave para a nossa resposta. Não há nenhuma fonte ou tese que abra a possibilidade de que a foz do Piúma possa ter sido chamada de Iguape.

Já a palavra Aguapé tem outra formação. Vem, segundo o dicionário Houaiss e outras fontes de dicionários tupi que consultei, de Agwa (redondo) + Pé (flexão de "Peva" e suas variantes: achatado, plano). É como os indígenas tupi chamam algumas plantas de águas paradas, como a linda Vitória Régia (redonda e chata). Em princípio, então, teria a Aguapé de Vasco Coutinho relação com essa palavra que designa uma planta? Parece que não, a não ser quando extraímos dessa palavra, assim como da palavra Iguape, a sua raiz. E a raiz dessas duas palavras é o termo tupi para "redondo". Desenha-se a nossa tradução.

A palavra "redondo" é dita de duas formas em tupi: Puã (e suas variantes, como puá, poá, etc), e Awa (e suas variantes que veremos). E a palavra Awa é a chave para entendermos o nome do nosso Monte Agá. Essa raiz da palavra tupi para "redondo" é flexionada de diversas formas: Akuá, Kuá, Agwa, Goá e Guá, por exemplo. A pronúncia de Awa é gutural, com a consoante oclusa K ou G manifestando-se quando a palavra é dita, principalmente quando há vogal que a precede. Assim, voltando à palavra tupi Iguape, teríamos as raízes Y (água) + Awa (redondo) + 'Pe (sufixo de local): a aglutinação de Y com Awa oblitera o primeiro A átono e faz saltar o fonema K ou G: Iguá ou Igoá. Junto com o sufixo 'Pe, forma-se a palavra Iguape, com a sílaba tônica no "Gua". Em Aguapé, as raízes são, como vimos, Awa (redondo, pronunciando-se Aguá) + Peb(v)a (plano, chato; a sílaba tônica no "Pe" faz desaparecer a sílaba final): forma-se Aguapé, com sílaba tônica no "Pé".

Antes de prosseguir, abro aqui um adendo: sou historiador e não tenho formação em linguagens. Uso da linguística como ciência auxiliar da História, e provavelmente aqui cometo erros na denominação de algum fenômeno dessa área de estudos. De todo modo, tal fato não desvirtua o presente artigo. Sigo, pois.

Vimos acima que uma das possíveis denominações antigas do Monte Agá pode ter sido Aguapé. Acredito, porém, que houve erro de tonificação da sílaba quando a palavra foi grafada naquele documento firmado entre os dois donatários vizinhos. O mais provável, considerando as outras fontes que estão nos mapas antigos e fazendo comparações, é que a palavra fosse pronunciada com a sílaba tônica no "Gua": Aguape. Explico.

Nos mapas portugueses do litoral do atual Brasil e do Espírito Santo datados do século XVII, há menção expressa do nome "Monte Agá" já com essa grafia. Mas há alguns mapas pouco anteriores, ou então mapas de autoria de estrangeiros que usavam de informações antigas, que grafam o nosso monte com nomes similares e que identificam a sua provável raiz. A propósito, a pesquisa em mapas hoje é muito facilitada devido ao belo trabalho do historiador Fabio Paiva Reis, que pesquisou, catalogou, identificou e digitalizou dezenas de mapas que retratam o Espírito Santo, e os alocou no site "História Capixaba".

Há um mapa do cartógrafo Luis Teixeira, datado de cerca de 1590, que cita o nome "Goape" entre o Espírito Santo (região da baía de Vitória) e o rio Managé (atual Itabapoana), ao norte do "Baixo dos Porgudos" (antigo Baixios dos Pargos, defronte às falésias da atual Marataízes, entre o Itabapoana e o Itapemirim). Essa localidade - Goape - não é citada como sendo um rio. Começam a aparecer as similaridades: "Goá" (uma das flexões de "Agwa", redondo), e 'Pe (sufixo de lugar).

TEIXEIRA, Luis. Roteiro de todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas, e derrotas que há na costa do Brasil
desde o cabo de Santo Agostinho até ao estreito de Fernão de Magalhães.
 ca. 1590.
Disponível em: 
https://historiacapixaba.com (RECORTE DO MAPA)

Um outro mapa, elaborado por João Teixeira Albernaz e datado de 1631, muito mais detalhado, dirime quaisquer dúvidas. Nele está o rio "Itapemeri" (Itapemirim) e o rio Yrirituba (atual Benevente); entre eles, no oceano, está a ilha dos "Francezes" e, quase defronte à essa, a "Serra do Gua". Para quem conhece a geografia dessa região de nosso Estado, resta clarividente que a única elevação mais alta que existe entre esses dois rios é o Monte Agá. Portanto, podemos afirmar com certeza que essa serra do Gua (Guá, variação de A[g]wa, redondo) é certamente o Monte Agá. "Goá" ou "Guá", seguido do sufixo 'Pe (que situa localidade em tupi) ou então sem esse, com a designação portuguesa de "serra".

Capitania do Spirito Santo. In: Estado do Brasil coligido das mais sertas noticias q[ue] pode aivntar dõ Ieronimo de Ataide.
Por Ioão Teixeira Albernas, cosmographo de Sya Ma[gest]ade. Anno: 1631. – 1631. – Cart. 14. - João Teixeira Albernaz, o Velho.
Pert.: Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro. Disponível em: 
https://historiacapixaba.com (RECORTE DO MAPA)

Há também alguns mapas de estrangeiros que nos auxiliam nessa missão de pesquisa. Um deles é de autoria do cartógrafo Antonio Francesco Lucini, datado de 1646. Nele há a representação de uma elevação ao fundo, entre o rio "Itapemeri" (Itapemirim) e a "Boca del Fiume" (Piúma), chamada de "Monte Guaipel". Considerando os erros de grafia e os pontuais deslizes de portulanos estrangeiros calcados muitas vezes em parcas ou falhas informações, é possível afirmar que essa elevação é a mesma da serra do Gua e do Goape. As similaridades vão tomando forma de razão. Aguapé, Guá, Goape e Guaipel são formas diferentes de se grafar o mesmo acidente geográfico. Há ainda outros mapas que poderíamos tratar, mas se assim for a presente fundamentação ficará ainda mais extensa. Ficarei apenas com esses que citei.

Dudley, Sir Robert. Carta Particolare della Brasilia, che comincia dal Porto del'Spirito Sancto è finisce con il capo Bianco.
In: Dell Arcano del Mare. 1646. Disponível em: 
https://historiacapixaba.com (RECORTE DO MAPA)

Fica bem claro, portanto, que o "Monte Agá" tem esse nome porque é um morro redondo, um monte arredondado: em tupi, "Agwá", da qual "Agá" provém. Quando era referenciado como uma localidade, o Agwá era complementado com o sufixo 'Pe. Por isso a grafia "Aguapé" que vimos no documento de Vasco Coutinho e o donatário limítrofe que, porém, tonalizou equivocadamente a última sílaba. Se o nome fosse Aguapé (redondo e chato), não seria muito plausível que a "evolução" da palavra suprimisse o "Pé", tal como ocorreu (ficando somente o "Aguá"). Em Aguape, com sílaba tônica no "Gua", tal supressão é até comum em outras palavras tupi com mesma formação (com o sufixo 'Pe).

Morro, ou monte, "Redondo"; tal como Cesar Augusto Marques, sem saber que a forma da montanha era o significado de seu nome silvícola, escreveu em seu trabalho sobre a Província do Espírito Santo datado de 1878:
"Agá, ou Aghá - morro - tem a forma arredondada e está isolado perto de Itapemirim. Por ser muito alto, serve no mar o seu pico de guia aos navegantes, que fazem a sua derrota ao sul da costa da Província. Tem muito boa água potável. (...)"

Quase vinte anos antes da publicação do trabalho de Marques, o Imperador Dom Pedro II, em visita que fez ao Espírito Santo, em fevereiro de 1860 escreveu em seu diário de viagem, percebendo que o nosso monte não deveria ter seu nome inspirado na letra "H": "(...) vi o morro Agá que nada se parece com essa letra (...).

A poesia é linda. A "tradução", ou tradição, tombada e cantada por Beto Kauê na música "Piúma", é bela e grandiosa. "Lugar de se ver Deus" é poético. Mas aprendi, com o tempo, que os significados e/ou origens dos topônimos costumam ser mais singelas: a explicação é, quase sempre, a mais simples. No caso, o nosso Monte Agá é, simplesmente e lindamente,  um morro arredondado: o "Monte Redondo".

Pesquisa e texto:
Gerson Moraes França

.

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Ocaso das Minas do Castello

Recorte de mapa de 1846, com a localização das antigas minas do Castelo.

No dia 25 de maio de 1786, na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim, foram crismadas nove ou dez crianças pelo reverendo visitador Vicente José da Gama Leal, comissionado pelo Bispo do Rio de Janeiro e que ali estava em viagem pelas paróquias do norte do Bispado. Nessa época, as freguesias da Capitania do Espírito Santo integravam aquela circunscrição eclesiástica. Uma dessas crianças crismadas se chamava [Seba]stiana (assim presumiu quem registrou), de cinco anos de idade, filha de Sebastião e de Maria, escravos de um certo Domingos Ra[mos](sobrenome presumido pelo autor dessas linhas). Sebastiana era natural e batizada na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Castelo.

Sempre me fascinou a história dessas célebres minas de ouro situadas nos contrafortes a oeste da serra que corre, mais ou menos, de sul a norte entre o rio Castelo (afluente do rio Itapemirim) e a costa do Espírito Santo. Apesar de não muito conhecidas, muito já se escreveu, e ainda se escreve, sobre as Minas do Castelo. É surpreendente conhecer seus primeiros tempos e notável estudar seu desenvolvimento; e é intrigante saber como foi o seu ocaso. Imaginar que essas minas foram povoadas e formaram (segundo a tradição) quatro arraiais e uma povoação que foi sede de uma Freguesia, e que depois tudo isso foi abandonado para ser enterrado pela vegetação e esboroado em ruínas.

Essas fascinantes minas nunca foram, porém, muito povoadas se comparadas com outras tantas minas de ouro que existiram na história do nosso Brasil. Segundo o grande pesquisador Alberto Lamego, que estudou esse assunto e teve acesso a então inéditas fontes primárias e documentos, no seu período de maior prospecção as Minas do Castelo chegaram a abrigar cerca de 400 mineradores; não é um número elevado de pessoas, mesmo para a época que a população do Espírito Santo e do Brasil era uma ínfima fração do que é nos dias de hoje. Sua existência, do início ao ocaso, se remete ao século XVIII; descobertas e inicialmente povoadas por paulistas e seus bandos que percorriam o interior do continente, incrementadas depois por povoadores campistas após estabelecidas as minas, e depois e abandonadas pelo esgotamento das jazidas e pela pressão dos indígenas. Tudo isso ocorreu no recorte temporal de menos de um século.

Apesar das teorias de que as Minas do Castelo já eram exploradas muito tempo antes da chegada dos paulistas  (as datas variam conforme as construções teóricas e os agentes envolvidos), qualquer historiador e pesquisador mais criterioso e fiel à metodologia da ciência histórica desconsidera essa remotíssima possibilidade. O próprio Lamego, sempre fiel à pesquisa histórica em fontes primárias e à análise crítica das fontes, considera que foram os paulistas seus incontestes descobridores. Outros estudiosos da história das Minas do Castelo endossam essa assertiva, como Tristão Araripe; e alguns poucos, como o memorialista Gomes Netto, entendem que as minas já eram exploradas por indígenas e jesuítas no século (ou séculos, dependendo do memorialista) anterior; meras teorias sem embasamento documental e simples conclusões eivadas de vício. De todo modo, esse imbróglio não é o foco do presente artigo e não interfere em nossas conclusões.

O ocaso das Minas do Castelo é assunto bastante tratado pela historiografia espírito-santense. Mas não há nenhum documento contemporâneo aos fatos que tenha sido até hoje encontrado e/ou publicado por algum pesquisador, seja memorialista ou historiador. O que temos são algumas presunções, e datas mais ou menos aproximadas fundadas em algum fato específico. No Espírito Santo, foram os memorialistas positivistas de finais do século XIX, como Basílio Daemon, que começaram a tentar encontrar uma data para o abandono das Minas do Castelo; Daemon chegou a entrevistar, "em 1865, uma velha moradora daquele lugar" que o relatou episódios da luta com os indígenas. Fatos narrados que não há motivos para serem postos em cheque, mas que acabaram criando a imagem de que o abandono dos arraiais e povoado das Minas do Castelo tenham ocorrido em um único, ou principal, evento de combate entre moradores e indígenas.

Em princípio, firmou-se o ano de 1771 como tendo sido o do abandono das minas. Essa data foi a do provimento de um vigário para a Paróquia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim, recentemente criada. Como desde o século XIX já havia a tradição de que as imagens e paramentos da Igreja de Nossa Senhora da Conceição das Minas do Castelo haviam sido trasladados para a Igreja Matriz em Itapemirim, em uma espécie de transferência da Paróquia, imaginou-se que esse evento fosse uma prova da data do abandono. Hoje se sabe que a Freguesia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim foi instituída em 1768, ano inclusive que há provas documentais que as Minas de Castelo ainda existiam; portanto, não houve naquele momento uma transferência da sede da Paróquia.

Depois, com a descoberta de um documento de inquérito (devassa) sobre um crime ocorrido contra a vida de um certo Manoel Monteiro, morador no Ribeirão do Meio (que fica no distrito das Minas do Castelo), em 1776, relativizou-se o abandono das minas: alguns passaram a entender que o abandono foi progressivo, e que ainda restavam alguns poucos moradores na região. O evento de 1771 não foi, porém, deixado de lado. As datas de 1771 e 1776 começam a conviver como sendo os possíveis anos do abandono das Minas do Castelo, embora alguns entendessem que o evento de 1771 ainda era o principal fato.

Alguns pesquisadores ainda de finais do século XIX, porém, começaram a rever essas datas. O pesquisador e memorialista Antônio Marins, escrevendo no início do século XX sobre o assunto, entende que as Minas do Castelo teriam sido abandonadas entre 1776 e 1780, e informa que um estudioso que publicou um artigo em 1883 já havia concluído que as minas haviam sido abandonadas entre 1779 e 1780, quando "teve lugar a trasladação da velha imagem de S. Benedito". Surgiam, cada vez mais, provas de que o ocaso das Minas do Castelo não teria sido em 1771, mas sim alguns anos depois.

Diante da ausência de fonte contemporânea que ateste um ocaso abrupto, nos parece cada vez mais claro que o abandono das Minas do Castelo foi progressivo, fazendo parte de um processo; processo este que abarcou episódios factuais de confrontos entre mineradores e indígenas, e de esgotamento das jazidas ao alcance das forças e técnicas da época. Desde o estabelecimento legal das minas, as décadas de 1750 e 1760 foram as de maior ocupação e exploração; na década de 1770 começa o processo de esvaziamento. É a partir dessa época que os documentos começam a atestar investidas dos indígenas em algumas regiões no entorno. O progressivo esvaziamento das minas do Castelo também contribuiu para a evasão e extravio do ouro que fugia do fisco: o último documento fiscal, até hoje conhecido, que trata da arrecadação do quinto na região data de 1768. E depois chega o dia que nas Minas do Castelo não resta mais habitante algum.

Interessante é que os indícios de que o ocaso das Minas do Castelo havia ocorrido em ano posterior ao de 1771 já estavam bem evidentes para os historiadores de meados do século XX. Enquanto as publicações sobre a matéria ainda fiavam algum ano da década de 1770 (1771, que ainda era o mais citado, 1776 e 1779), novas fontes trazidas a luz colidiam com essas datas sedimentadas pela historiografia local de então. Fontes documentais estas, importante salientar, primárias. Algumas contemporâneas, mas de região diversa; outras não contemporâneas aos fatos, mas que estavam muito mais próximas temporalmente dos acontecimentos do que os escritos dos pesquisadores memorialistas da segunda metade do século XIX. Essas fontes são várias, e citarei apenas algumas delas no presente artigo.

Primeiro, falaremos de uma fonte contemporânea: os manuscrito de Couto Reis, que escreveu sobre Campos e seu entorno, em 1785. Nessa obra, quando trata dos povos indígenas da região, Couto Reis fala dos índios puri que, nessa época, se estendiam desde o rio Muriaé até as Minas do Castelo, "aonde tem feito lastimosos estragos". Importante lembrar que os campistas tinham mantido por muitos anos uma relação bem próxima com as Minas do Castelo, e o fato dessas minas terem sido citadas no documento é revelador. Em 1785, quando foi concluído, o manuscrito atesta que as Minas do Castelo ainda eram existentes e que sofriam com as investidas dos índios puri; assim, apesar de sofrer estragos dos indígenas, ainda eram habitadas na primeira metade dos anos 1780. Devido as acuradas e bem atualizadas informações de Couto Reis sobre seus objetos de estudo em seu trabalho, não cremos que ele estivesse defasado em mais de dez anos no que toca as Minas do Castelo.

Segundo, falaremos de alguns dos viajantes estrangeiros que transitaram pela Capitania do Espírito Santo em princípios do século XIX. Maximilian Wied e Saint-Hilaire estiveram em Itapemirim nos anos de 1815 e 1818, e escreveram interessantes relatos que hoje são muito utilizados como fonte histórica primária em trabalhos acadêmicos sobre o Espírito Santo. Ambos colheram relatos e tradições locais em seus escritos, e ambos são unânimes em afirmar que as Minas do Castelo teriam sido abandonadas em meados da década de 1780. Saint-Hilaire, que desce a detalhes e informa até mesmo o número de colonos mortos em refregas e ataques indígenas nos últimos quinze anos, é bem categórico em afirmar que as minas foram abandonadas (de vez) trinta anos antes, ou seja, por volta de 1785.

Por fim, elenco um testemunho que deveria receber toda a credibilidade, por ser praticamente contemporâneo ao tempo e pelo cargo de relevo que exerceu: trata-se de Manoel Vieira da Silva Albuquerque Tovar, que governou a Capitania do Espírito Santo entre os anos de 1804 e 1812. Em uma memória que escreveu e citado pelo pesquisador e escritor Levy Rocha, o governador Tovar informou que as Minas do Castelo foram abandonadas mais pela pobreza das suas lavras do que pelo receio dos índios, e que tal ocaso teria se concluído entre 1783 e 1784.

Todas essa fontes por mim elencadas, não necessariamente descartadas pela historiografia, mas relegadas a um plano dosimétrico inferior aos trabalhos históricos escritos pelos memorialistas a partir de fins dos anos 1870 (cem anos depois de terem sido largadas as minas), são bem elucidativas. Convergem para um abandono definitivo ocorrido por volta de 1785; é praticamente certo que o governador Tovar tenha feito sua memória com base em fontes (documentais, ou não) bem confiáveis, e que as datas por ele levantadas sejam as reais do ocaso das Minas do Castelo: entre 1783 e 1784.

Nessa mesma época outras minas "clandestinas", pouco fiscalizadas ou pouco rentáveis estavam sendo proibidas e fechadas pela ação do governo geral. Muitas das lavras situadas entre as indefinidas divisas das Capitanias de Minas Gerais com o Rio de Janeiro e Paraíba do Sul (região campista) foram fechadas, como as de Cantagalo e as Novas Minas de Castelo, e bandos de garimpeiros como os chefiados pelo célebre "Mão de Luva" estavam sendo dispersados e presos. É importante conjunturar essa situação geral, pois o definitivo ocaso das Minas do Castelo é contemporâneo a esses fatos.

Quando Ignacio João Mongeardino tomou posse do cargo de Capitão-Mor da Capitania do Espírito Santo, em 1782, as Minas do Castelo ainda existiam. É o que extraímos de algumas de suas primeiras medidas administrativas. E em 1790, quando Mongeardino enviou longo e pormenorizado relatório sobre o Espírito Santo para o Governador da Bahia, as Minas do Castelo já tinham sido abandonadas. E essa fonte, combinada com outra que "garimpei" (uma correspondência do Vice-Rei para o nosso Capitão Mor, reprovando uma incursão de uma ordem religiosa nas abandonadas minas, no mesmo ano) denota que o governo da Capitania estava obedecendo alguma determinação de manter fechado o acesso à região das minas do Castelo. Mongeardino, em seu relatório, informa que as "Minas do Castello, se achão cheias de mattos, por eu impedir a limpa dellas, afim de evitar a sua communicação".

Assim, tudo nos leva a crer que as memórias escritas pelo Governador Tovar devem ser vistas com mais seriedade, pois são verossímeis. O ocaso das Minas do Castelo foi o culminar de um processo de esvaziamento, iniciado possivelmente na década de 1770 e que teve seu desfecho em 1783 ou 1784. As investidas dos indígenas puri e o esgotamento das lavras foram os fatores determinantes para a queda populacional, coroada depois por uma determinação do governo em fechar as minas e impedir a sua comunicação; e não apenas nas nossas Minas do Castelo, mas em várias minas nas zonas montanhosas entre Minas Gerais e as Capitanias da costa. As afamadas Minas do Castelo passariam para a memória, a despeito de algumas tentativas e pequenas empreitadas para se reexplorar as lavras anos mais tarde.

E voltando para o crisma da pequena Sebastiana em maio de 1786, tratado logo no começo do presente artigo: essa fonte só nos foi possível de ser legada por causa das anotações em diário do Bispo Pedro Lacerda, em sua visita ao Espírito Santo de 1886/87. Bispo da Diocese do Rio de Janeiro, Lacerda visitou as paróquias sob sua jurisdição e copiou várias passagens dos livros de registros das Igrejas, que entendia interessantes de tombar. Assim, estando em Guarapari, escreveu que "em um livro achei uma folha avulsa em parte mutilada sem os pedaços que faltam. Parece-me que pertence a livros de Itapemirim". E transcreveu o que conseguiu ler desse interessante registro.

Sebastiana, filha de Sebastião e de Maria, escravos de Domingos, tinha 5 anos na ocasião. Teria nascido, portanto, por volta de 1781. Era natural e foi batizada na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Castelo, que foi instituída nas Minas de Castelo em 1754. Essa é mais uma fonte cabal: dez anos após a data que em princípio os memorialistas de finais do século XIX acharam que as minas haviam sido abandonadas, uma criança nasceu e foi batizada pelo vigário na Igreja Matriz da paróquia, denotando que o povoado ainda existia e a Igreja ainda funcionava. Cinco anos depois, porém, Sebastiana foi crismada não em Castelo, mas sim em Itapemirim. Sua família e, com grande chance, o seu senhor, haviam deixado as montanhas e estavam na costa. Muito possivelmente por causa do evento que estamos aqui tratando: o ocaso das Minas do Castelo, ocorrido provavelmente nos anos que o governador Tovar, citado por Levy Rocha, informou em seu escrito: 1783 ou 1784.

E para finalizar, embora não seja o escopo do presente trabalho, é preciso que tratemos um pouco sobre o famoso Livro Tombo de Itapemirim, hoje usado como fonte por alguns pesquisadores para fundamentar o início da exploração das minas do Castelo no primeiro quartel do século XVII. Tal livro informa que foram os jesuítas que iniciaram a exploração do ouro na região, e que foram ali fundadas várias missões que abrigaram milhares de indígenas em 1625. O próprio Bispo Lacerda que supra aludimos teve acesso aos escritos desse livro tombo, que estava sendo então confeccionado pelo vigário da freguesia à época da visita do referido Bispo; portanto, cerca de cem anos depois do abandono das Minas do Castelo, e duzentos e cinquenta anos depois da suposta fundação dessas fantasiosas Missões do Monte Castelo. E Lacerda aponta em seu diário que o vigário de Itapemirim estava inventando fantasias quando tratava desse passado mais longínquo...

O Livro Tombo de Itapemirim é uma obra importantíssima para a pesquisa da história regional do sul do Estado do Espírito Santo, principalmente quando começa a tratar da instituição da paróquia de Nossa Senhora do Amparo de Itapemirim em diante. Mas é preciso ao historiador ter muito critério em sua leitura, para não incorrer em erros e vícios que uma errônea interpretação das fontes pode levar. Sem usar de metodologia científica, sem fazer o devido processo das críticas interna e externa das fontes, sem fazer as necessárias comparações com os documentos primários contemporâneos, o pesquisador acaba por reproduzir os equívocos cometidos pelo vigário que confeccionou o livro. Assim, o citado Livro Tombo é uma fonte documental maravilhosa de informação, mas que precisa ser trabalhado com muito critério pelo historiador.

Em meados do século XIX, quando os posseiros começaram a abrir posses no vale do rio Castelo, para que depois os fazendeiros formassem as futuras ricas fazendas cafeeiras, encontraram as ruínas das edificações dos arraiais e do povoado que formaram as extintas Minas do Castelo. Encontraram várias obras de exploração, inclusive com desvio de ribeirões e córregos, bem como ferramentas e várias árvores frutíferas, restos de pomares então misturados com a vegetação que retomava seu espaço. Sim, a história das Minas do Castelo e de suas "cidades desaparecidas" me fascinam imensamente.

Pesquisa e texto: Gerson Moraes França