Em 1998 estive em São Pedro do Itabapoana, para executar minhas pesquisas. Naquela ocasião, além de levar uma máquina para fotografar as edificações, tinha eu mais três "missões": pesquisar documentos no cartório local, e entrevistar duas pessoas: Balbino Miguel Nunes e José de Souza, este último conhecido pelo apelido de "Seu Setenta".
Cheguei em São Pedro pouco antes das onze horas da manhã, e logo tomei conhecimento de que minha pesquisa no cartório teria que ser feita em outro dia: os titulares haviam saído a pouco para Mimoso. Fui, então, até a casa de "Seu Setenta", e o mesmo me atendeu com atenção. Sabedor de que eu queria entrevistá-lo, perguntou se eu era de algum jornal, e se ele receberia algum trocado pela arguição. Diante de minha resposta, informando que eu era apenas um estudante e que não poderia pagar, ele me disse que daria a entrevista, mas somente depois do almoço e de dormir a sesta.
Fui, então, fotografar alguns imóveis antigos e, após, comer um lanche que tinha levado comigo. Depois fiquei esperando sentado diante da Igreja, aproveitando a sombra que a mesma fazia na pequena escadaria lateral, mergulhado em minhas anotações. Por volta das três da tarde apareceu o Balbino, que me convidou para tomar um café em sua casa. Lá comi um delicioso bolo de fubá com um cafezinho feito na hora, enquanto conversava com ele, anotando tudo o que me era relevante. Aproveitei e entrevistei, também, o pai de Balbino, chamado José Miguel de Souza.
Uma hora depois, Balbino seguiu comigo até a casa de "Seu Setenta", que já havia descansado. Iniciei, então, a entrevista; caderninho na mão, anotando tudo, e confrontando a memória do já idoso homem com dados que eu havia colhido para reavivar qualquer esquecimento que o tempo tivesse obrado. Com os dados que eu possuía, pude notar que "Seu Setenta", apesar de umas poucas escorregadas, lembrava muito bem do que viveu em 1930, pois invariavelmente acertava nomes e localidades. Com os relatos dele, junto com os dados de minha pesquisa, pude retratar os acontecimentos daqueles dias.
Casa onde morou José de Souza, o "Seu Setenta", em São Pedro do Itabapoana. O imóvel é tombado pelo Conselho Estadual de Cultura.
José de Souza nasceu em 25 e julho de 1907, e em 1930 residia no então Distrito sãopedrense de Antônio Caetano, que atualmente é a sede do Município de Apiacá. Exercia a atividade na época chamada de chauffeur, que é simplesmente a palavra francesa para "motorista". No início da década de trinta, poucos eram os automóveis existentes no interior; apenas para título de comparação, o próspero Distrito de Mimoso possuía, em 1930, uma "frota" total de dois automóveis e onze caminhões. Assim, o chauffeur era muito requisitado para levar ou buscar pessoas em localidades que fossem ligadas por entradas de rodagem.
No dia 13 de outubro de 1930, José de Souza saiu de Antônio Caetano para prestar um serviço de transporte. Seu destino era Carangola, onde iria pegar dois passageiros a pedido de um comerciante local. Saiu bem cedo, pela estrada de rodagem que ligava Antônio Caetano ao então Distrido calçadense de Bom Jesus - estrada esta inaugurada em 1924. Ainda cedo chegou em Bom Jesus, e atravessou a ponte que ligava esta localidade à Bom Jesus do Itabapoana, então Distrito de Itaperuna, no Estado do Rio de Janeiro. Passou por Itaperuna, Natividade, e antes de terminar a manhã chegou à Porciúncula; agora faltava menos de uma hora para chegar em Carangola, destino da viagem.
Mas em seu caminho havia uma revolução em curso...
Poucas horas antes de José de Souza, o nosso "Seu Setenta", chegar em Porciúncula com o seu "fordeco 29", uma tropa revolucionária vinda de Minas Gerais havia ocupado o povoado. Eram cerca de cem homens, da "companhia motorizada" comandada pelo Tenente Serôa da Motta, então designado Capitão revolucionário pelo "Comando do Setor Leste". Este dia 13 de outubro de 1930 foi o determinado pelo Comando da Revolução em Minas Gerais para a execução do início das invasões dos Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Goiás.
Ao chegar em Porciúncula, José de Souza foi parado por soldados que haviam formado uma barreira na entrada do povoado. Necessitados os revolucionários de meios de transporte, seu Ford foi requisitado pela Revolução. A tropa de Serôa da Motta possuía quatro caminhões, um deles blindado, mas nenhum automóvel...
Temeroso de deixar o automóvel em mãos alheias e, quem sabe, nunca mais ter restituído o seu bem, à José de Souza restou somente uma alternativa: aderiu à Revolução, pois assim poderia ficar na posse de seu veículo. Ficou com a função de chauffeur de seu "fordeco", transportando parte dos comandantes da tropa; e tal decisão foi vantajosa para ambos os lados, considerando que entre os homens de Serôa da Motta, a maioria simples homens do campo, não havia mais pessoas que tinham prática em dirigir.
Nesse mesmo dia 13 uma tropa mineira ocupou Itaperuna no início da tarde, vinda de Muriaé; e à noite avançaram, ocupando Bom Jesus do Itabapoana. No dia seguinte, a tropa de Serôa da Motta deixou Porciúncula para se encontrar com as tropas mineiras que haviam tomado o Município capixaba de Veado, atualmente Guaçuí. José de Souza e seu Ford foram então para Carangola, curiosamente o destino de sua viagem inicial. Mas na conjuntura de então não era mais possível pegar os passageiros que o esperavam...
De Porciúncula até Carangola, José de Souza transportou o Tenente revolucionário Rosental Machado. De Carangola, a tropa de Serôa da Motta foi despachada para Veado, e nosso "Seu Setenta" foi "transferido" de unidade. Ficando na cidade, passou a servir ao Tenente revolucionário Coracy Ferreira.
Ainda no dia 14 de outubro, pela noite, um susto: os homens do Tenente Coracy foram despachados para arrancar parte dos trilhos da estrada de ferro que ligava Carangola à Porciúncula. A notícia de que os legalistas estavam avançando contra os revolucionários, tendo inclusive retomado algumas cidades, alarmou o Comando do Setor Leste. Na madrugada do dia 15 de outubro, José de Souza "colocou a mão na massa" e, junto com os homens do Pelotão do Tenente Coracy, arrancaram parte dos trilhos para dificultar um eventual avanço legalista pela linha ferroviária.
Durante toda a madrugada e manhã do dia 15 a tropa onde servia José de Souza ficou guardando a estrada de ferro, e nosso "Seu Setenta" viveu a tensão e a ansiedade de poder entrar em combate à qualquer momento, e ainda na escuridão da noite. Mas logo o susto e a tensão foram aliviados. As tropas mineiras continuavam ocupando Itaperuna sem ameaças, e o avanço legalista havia ocorrido bem mais ao sul, na região de Itaocara e Cambuci.
Na tarde desse mesmo dia o Pelotão Coracy deslocou-se para Itaperuna, e integrou-se operacionalmente à tropa comandada pelo Coronel revolucionário Otto Feio, comandante de operações do Setor Leste. Barrado o avanço legalista em Itaocara e Cambuci, e retomadas essas cidades, começaram os preparativos para avançar em direção a Campos. Foram dias de muitas corridas para José de Souza e seu Ford 29, pois o Comando estava coordenando uma operação conjunta de quatro colunas revolucionárias para o ataque a Campos, poderosamente guarnecida por homens da Polícia Fluminense, dos Fuzileiros Navais e do Exército.
Mas não foi preciso haver combate. No dia 24 de outubro, quando as forças revolucionárias estavam todas prontas para avançar contra Campos no dia seguinte, um golpe militar derrubou o Presidente Washington Luís. A Junta Militar que assumiu na Capital Federal deu ordem para que as tropas legalistas deixassem Campos e recuassem para Niterói. Desguarnecida, Campos foi ocupada pelas tropas revolucionárias no dia 25 de outubro.
José de Souza, conduzindo o Tenente Coracy, deixou Murundu, onde estava, passou pela vanguarda que estava em Travessão, e chegou em Campos. Nesta cidade a tropa acantonou, e José de Souza pôde descansar das frequentes corridas e da tensão. Pôde, também, festejar pela vitória e término da Revolução.
No dia 31 de outubro Getúlio Vargas, após as negociações de Oswaldo Aranha com a Junta Militar, chegou ao Rio de Janeiro. Vargas saiu de Ponta Grossa ainda no dia 24, e passou por São Paulo no dia 29, antes de chegar à Capital Federal. A posse foi marcada para o dia 03 de novembro.
E assim iria surgir o apelido de José de Souza. O Coronel Otto Feio tinha pressa em chegar ao Rio de Janeiro, e pediu ao Tenente Coracy para lhe arrumar um automóvel e um chauffeur experiente. Coracy, então, escolheu o seu próprio motorista para executar a "missão". E partiu de Campos, no dia 01º de novembro, rumo à Capital Federal. José de Souza, bom motorista e conhecedor de seu automóvel, fez a viagem atingindo, várias vezes, a velocidade de 70 Km/h. Na época, e considerando que as estradas eram de terra, nem sempre bem cuidadas, essa velocidade era bem alta.
Chegados no Rio de Janeiro, Otto Feio e Coracy Ferreira foram ao encontro de Getúlio Vargas, ainda não empossado. Narrando ao futuro Presidente do Governo Provisório a rapidez com que fizeram a viagem no "fordeco", sob a direção de um excelente e veloz chauffeur, o Coronel Feio apresenta o motorista à Vargas.
Coracy diz ao futuro Presidente:
- Fizemos a viagem em poucas horas. Viemos a setenta por hora!
No que responde Vargas, sorridente e bem humorado, virando-se para José:
- Mas seu José, setenta?
Foi o suficiente para fazer nascer o apelido que carregaria para o resto de sua vida: "Zé Setenta".
No dia da posse de Getúlio Vargas, após a cerimônia, José de Souza retorna à Campos com o Tenente Coracy. Lá chegando, o Comandante da Praça o desliga da tropa revolucionária, e "devolve" o Ford requisitado. José de Souza, então, viaja de volta para Antônio Caetano, aonde chega no dia 04 de novembro.
Ficou 22 dias fora, e sua memória não esquecia esse número de dias longe de casa. Até porque seus amigos e familiares ficaram preocupadíssimos com o seu sumiço. Na época, José de Souza tinha 23 anos de idade. Quando chegou em Antônio Caetano, acalentou os preocupados e narrou sua epopéia.
À partir de então, José de Souza foi apelidado de "Zé Setenta", transformado mais tarde em "Seu Setenta" quando já morava em São Pedro do Itabapoana, onde viveu até sua morte.
Gerson Moraes França
Fontes -
Texto:
Arquivo pessoal
Depoimento de José de Souza, 1999
Fotos:
Arquivo pessoal
Revista da Semana, 15/11/1930
Procurando uma pessoa querida, acabei encontrando
ResponderExcluiresse arquivo maravilhoso, o que posso dizer você é dimais . Adoro viajar lendo no meu sofá.
Obrigado pelas palavras, Janilma! Palavras assim sempre nos servem como grande estímulo para continuar a escrever!
ResponderExcluirGrande abraço,
Gerson
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGerson, bom dia! Somente ontem, através da minha filha, recebi este linck e fiquei maravilhado pela forma que vc deu a essa história da minha família que conheci na infância, sou o neto mais velho do Sr. Setenta e atualmente vivo no Paraná, mas passei grande parte da infância na companhia do meu avô, inclusive morando em sua casa por quase dois anos entre os anos 70 e 72, quando meu Pai esteve a trabalho no exterior. Meu avô, foi uma grande referencia na nossa família, pelo seu bom humor e exemplo de trabalho e dedicação a família, além disso viveu intensamente e aventureiramente toda sua vida, sendo caminhoneiro por caminhos precários neste nosso país nos anos 30 a 80, viajou por todo país e tinha muitas estórias e causos que se escritos por um talento como o seu, tornar-se-iam grandes livros. Hoje, podemos contar com as memórias de seus filhos, minha mãe, Zilma, que herdou a sua casa e a está restaurando, meus tios Zizeldo, que atualmente reside em São Pedro e Zulmar que reside em Santo Antônio, próximo a São Pedro. Muito obrigado por ter usado seu talento nesta entrevista e tornado esta narrativa tão brilhante! Parabéns.
ResponderExcluirAbraços.
Paulo Vilela - Paranaguá - PR
Muito obrigado. Estou há 9 meses morando em São Pedro, adorando a cidade e o povo acolhedor de lá e o artigo foi muito interessante pra conhecer um pouco da história da cidade.
ResponderExcluirBom dia, meu amigo. Parabéns pelo excelente texto e pelo excelente blog. Muito interessante. Por favor, o senhor teria como informar onde posso encontrar outras passagens e informações sobre os eventos da Revolução de 1930 aqui na região Noroeste Fluminense? Poderia indicar livros, artigos ou textos sobre o tema? Muito obrigado.
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