terça-feira, 26 de agosto de 2014

A Sesmaria de Brás Teles


Não é novidade, para as pessoas que acompanham meu BLOG, a paixão que possuo pela história do Espírito Santo. Minha paixão é extensiva para todos os períodos de nossa história regional; mas os momentos primeiros da colonização portuguesa na Capitania do Espírito Santo possuem um espaço especial em meus estudos e leituras. Penso que esse sentimento deve ser partilhado por muitos de nossos pesquisadores e estudiosos, pois se trata de um marco do processo histórico que descambou no que nosso Estado é atualmente.

Nesses estudos, queria eu entender a dinâmica daqueles tempos primevos da Capitania, e também do Brasil. Do geral, gosto de "descer" ao específico e aos detalhes, para novamente "subir" ao geral; e assim compreender o período, bem como o processo. Desse modo, procurava ter acesso aos documentos primários que fundamentavam os trabalhos de nossa história regional. E deles, tirava minhas próprias conclusões. Dentre esses documentos, havia um que eu não conseguia ter acesso. Tratava-se de um Instrumento de Doação de uma Sesmaria, feito por Vasco Fernandes Coutinho, para Brás Teles de Menezes e mais outros dois portugueses; documento este citado, mas não transcrito, na obra de José Teixeira de Oliveira ("História do Estado do Espírito Santo").

Teixeira de Oliveira, por sua vez, havia retirado essa informação do trabalho de Pedro de Azevedo ("Os Primeiros Donatários  - História da Colonização Portuguesa"). Azevedo, porém, não transcreveu essa fonte em sua obra; apenas referenciou aonde a encontrou: "Chancelaria de D. João III, Livro 47, folha 01". Esse documento está guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal. Infelizmente, porém, seu conteúdo ainda não está digitalizado. Por várias e várias vezes, nos últimos anos, fui até o site da referida instituição, na esperança de ter acesso ao documento; mas sem sucesso: "informação não tratada arquivisticamente", era o recado que sempre aparecia. E, sem condições de viajar até Portugal apenas para tentar ter acesso ao documento, só me restava esperar.

Até que a "sorte" me contemplou, em novembro de 2013. Tive acesso à uma obra publicada no ano 2000, cujo título é: "A Capitania de São Jorge e a Década do Açúcar (1541-1550)". Seu autor é Luiz Walter Coelho Filho. É uma obra de história local de Ilhéus e com recorte temporal bem "curto"; mas, em seu trabalho, buscando comparar Ilhéus com as outras Capitanias, Coelho Filho também tratou de "pedaços" da história do Espírito Santo. E, naquele trabalho aonde nunca imaginei encontrar o documento que eu procurava, estava transcrito parte significativa do Instrumento de Doação objeto da minha procura. O próprio autor serviu como paleógrafo, pois o documento não estava "traduzido". E o que lá estava escrito é, em minha opinião, importantíssima fonte para os que estudam e pesquisam o início da história da Capitania do Espírito Santo.

Abro um adendo para explicar a minha frenética busca por este documento. Via de regra, e considerando os documentos conhecidos lavrados por Vasco Fernandes Coutinho, este costumava tecer bons arrazoados no corpo de seus escritos. Assim, os instrumentos de doação da Ilha de Santo Antônio à Duarte de Lemos, e o "tratado de limites" celebrado entre Coutinho e Pero Góis da Silveira (capitão-donatário de São Tomé), são bons exemplos da minha assertiva. Esperava eu encontrar algo interessante no documento que buscava; mas não esperava encontrar um arrazoado tão extenso e significativo (em minha opinião), como encontrei no Instrumento de Doação à Brás Teles e outros.

Para além de ser um importante documento no que toca aos procedimentos empresariais e de financiamentos da implantação de plantações de cana-de-açúcar e da construção de engenhos na Colônia, naqueles primeiros tempos, o instrumento traz em seu arrazoado relevantes informações que dirimem algumas dúvidas e confirmam fatos apenas presumidos, bem como traz uma informação antes desconhecida pela historiografia regional. Interessante, também, é constatar a importância que os colonizadores conferiam à propagação da fé católica entre os "gentios e idólatras".

Antes de adentrar aos elementos que entendo serem interessantes, importante salientar que, embora Teixeira de Oliveira e Azevedo tenham informado que a Sesmaria doada por Vasco Coutinho à Brás Teles tenha se dado em 07 de outubro de 1541, o instrumento de doação tem data anterior: 30 de agosto de 1540. Imagino que a data citada por Azevedo e reproduzida por Teixeira de Oliveira seja a do registro na Chancelaria do Rei. Assim está o trecho do documento, que cita a data e o local aonde foi feito o documento: "Deus amém saibam quantos este instrumento de emprazamento e doação deste dia para todo o sempre virem que no ano do nascimento do nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e quarenta anos em a cidade de Lisboa aos trinta e um dias do mês de agosto na rua do Barão em as pousadas do senhor Vasco Fernandes Coutinho fidalgo da Casa del Rei nosso senhor capitão e governador da capitania do Espírito Santo na terra do Brasil estando aí o dito Vasco Fernandes Coutinho e bem assim estando o senhor Brás Teles de Menezes fidalgo da Casa do dito senhor e camareiro-mor do senhor infante dom Luís (...)".

O instrumento continua com seu arrazoado, muito interessante para demonstrar como foi dura a "conquista" da região da atual baía de Vitória, e também para retratar o início do plantio da cana de açúcar na Capitania e as dificuldades para se construir e operar Engenhos: " (...) logo pelo dito senhor Vasco Fernandes Coutinho foi dito que havia seis anos que ele estava na capitania do Espírito Santo e Terras do Brasil o maltratara muita guerra com os infiéis e idólatras da terra com gente que lá tinha e lhe mataram parte dela e feriram muitos e maltrataram e suas vidas correram muito risco e seus os que ficaram começaram a plantar canaviais para açúcares e por não ser poderoso para fazer engenhos para fazer o dito açúcares pelas muitas despesas que feito tinham não tinha pessoas que destes reinos lhe o apoiasse para proverem de oficiais para fazerem os ditos açúcares e engenhos por serem muitos os que requeriam o tal mister e a maior parte dos ditos oficiais não usa vir nestes reinos e ser necessário mandar por eles a ilha da Madeira o que requeriam muitas despesas e pelos desejos que ele tem de a povoar para nela se celebrar e fazer o culto divino da nossa santa fé católica e aproveitar e trazer os idólatras e gentios a ela e fazer serviço a Deus e a el Rei nosso senhor e assim por se temer da pouca gente que tinha e os gentios serem muitos e estarem dentro da terra os tornarem a guerrear e portanto e por a terra ser nova e incerta e desabitada de cristãos e duvidosa (...).

Após todo o arrazoado, segue o trecho da doação em si. Importante salientar que Brás Teles de Menezes já era um "empresário" envolvido com a exploração e o comércio de açúcar nas ilhas portuguesas do Atlântico, conforme se infere de vários documentos arquivados na Torre do Tombo em Portugal. Não custa lembrar, também, que o primeiro navio que embarcou açúcar exclusivamente do Espírito Santo para Portugal, em 1545, era de sua propriedade. O instrumento concede à Brás Teles, já citado, e aos seus "associados" Francisco Sernige e Diogo Fernandes, este um mercador natural da cidade de Viana, e aquele um mercador natural da cidade de Lisboa, "a terra de sesmaria deste dia para sempre", bem como lhes aforava "a exploração da força de certas águas" para a construção de um engenho. E, quando localiza a Sesmaria dada aos três "sócios", o documento traz um "fato novo". Assim está o trecho que localiza a sesmaria doada: " (...) cortando direto ao sul e toda a mais terra que houver até o rio dos gajonases a que ora põe o nome de rio da Victoria assim (...)".

A tradição regional reza que, em 1551, uma vitória dos colonos sobre os indígenas foi o motivo para se mudar o nome da Vila recém fundada na Ilha de Santo Antônio, que tornar-se-ia a nova sede da Capitania. Assim, surgia a Vila de Nossa Senhora da Vitória, núcleo formador da atual Cidade de Vitória. Teixeira de Oliveira, em sua obra, demostrou através de documentos primários que a Vila de Victoria já existia pouco antes, em 1550. Assim, foi provavelmente nessa última data que Vasco Coutinho elevou a primitiva povoação à categoria de Vila e, ato contínuo ou não, transferiu a sede da Capitania da Vila do Espírito Santo (atual Vila Velha) para Vitória.

O instrumento de doação que ora tratamos, porém, traz uma nova informação: uma vitória anterior à 1550 ou 1551, que serviu como fundamento para se mudar o nome do que até então era chamado de "rio dos Gajonases" (provavelmente corruptela do termo gentílico "guaianases", muito comum na época para classificar os tupis que habitavam partes do litoral) que era, possivelmente, o nome primeiro que os colonizadores deram à baía de Vitória. Importante lembrar que a baía interna de Vitória era chamada de "rio" nos primeiros séculos de existência da Capitania. Desse modo, a ideia de se dar o nome de "Vitória" à uma região geográfica na Capitania é anterior à 1540, quando foi celebrado o instrumento de doação da Sesmaria. O que nos faz presumir que a vitória que os colonizadores portugueses obtiveram sobre os silvícolas locais também ocorreu antes desta data.

Observo, porém, que a cognominação do "rio da Victoria" não significa que o arraial, ou povoado, que viria mais tarde a ser batizado de Vitória, tenha sido formado antes de 1540, embora tal presunção seja verossímil. A preocupação de Vasco Coutinho em "corrigir" o instrumento de doação da Ilha de Santo Antônio, feita em retificação na "carta de doação" também em 1540, no que toca à questão dos povoados, é um indício de que pouco antes, ou depois, dessa "vitória", tenha sido formado o arraial de Duarte de Lemos nas terras de sua sesmaria, na atual ilha de Vitória. Acredita-se que a formação daquele arraial tenha ocorrido entre 1537 (doação da Ilha de Santo Antônio à Duarte de Lemos) e 1540 (retificação da referida carta de doação).

Por fim, quando da ratificação do instrumento de doação da sesmaria à Brás Teles, surge também uma informação que serve para sacramentar a versão de que Ana Vaz, companheira de Vasco Coutinho, estava na Capitania do Espírito Santo antes de 1540. Não podemos, porém, afirmar que ela tenha chegado na primeira "expedição" que chegou na Caravela Glória, em 1535. De todo modo, fica confirmada a versão de que Vasco Coutinho e Ana Vaz estavam juntos durante a primeira estada de Vasco no Espírito Santo, entre 1535 e 1540, e que sua esposa, Maria do Campo, já conhecia tal fato em 1540, pois já havia acionado judicialmente o marido que era "querelado". Assim está o trecho que trata da questão do adultério de Vasco Coutinho: "(...) e porquanto ele tinha procuração de Dona Maria do Campo sua mulher e ora ausente por ser dela querelado por lhe cometer adultério estando ele no Brasil e para este concurso ser firme e por ser feito bom proveito (...)".

Termino aqui esse artigo, embora saiba eu que os elementos presentes no documento tratado podem ser ainda muito mais e melhor explorados. Destarte, por se tratar de um pequeno artigo, resolvi abordar apenas os temas que mais me chamaram a atenção, e que entendi serem os mais relevantes para a História Geral do Espírito Santo, em uma primeira leitura.

Gerson Moraes França

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