domingo, 14 de março de 2010

Managé antigo - Itabapoana moderno - O NOME

UM ESTUDO SOBRE O NOME ANTIGO DO RIO


O MANAGÉ

Todas as pessoas que habitam os Municípios que estão inseridos na bacia do rio Itabapoana conhecem, ou certamente já ouviram falar, no Projeto Managé. É um projeto sócio-ambiental, oficialmente chamado de "Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável da Bacia Hidrográfica do Rio Itabapoana", concebido pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

O termo Managé foi tomado por causa do nome que os indígenas davam ao rio, quando os europeus tentaram se estabelecer no baixo Itabapoana, isso na primeira metade do século XVI. Foi o Donatário da Capitania de São Thomé, Pero Góis, quem grafou e registrou o nome do rio, nas cartas que remeteu ao Reino.

De acordo com os tradutores do termo, Managé significaria em tupi, grosso modo, "reunião do povo", ou "ajuntamento de pessoas". Essa foi a tradução dada pelo especialista na língua tupi, Teodoro Sampaio, em seu dicionário no livro "O tupi na geografia nacional", publicado em 1901.

A PROBLEMÁTICA

Sempre achei estranha a tradução desse termo. Não porque ele esteja equivocado; em tupi, realmente, a palavra amanajé significa "reunião", ou "ajuntamento". Mas o ploblema vem porque esse era o nome usado pelos silvícolas locais, como bem atesta Pero de Góis em suas cartas. E quem eram os indígenas locais naquela época, naquela região? A historiografia é unânime em atestar que eram os goitacases. Grafados em diferentes fontes como aitacazes, guaytacazes, waytacazes, os goitacases foram quem receberam os portugueses que tentaram se estabelecer no baixo curso do Itabapoana.

Ora; hoje, praticamente todos os estudiosos, em especial a unanimidade dos mais sérios, classificam os goitacases como sendo do tronco étnico e linguístico macro-jê; assim, os goitacases não eram do tronco tupi-guarani. Cronistas antigos já atestavam que os goitacases falavam língua diversa da língua geral dos tupis - era uma língua mais "bárbara" e "truncada" que a tupi, e estes não a compreendiam. Os tupis chamavam, de forma genérica, esses povos gês de tapuias (bárbaro, inimigo). No Brasil do século XVI, as nações indígenas tapuias eram cognominadas pelos portugueses conforme a denominação que os davam os tupis - nação que primeiro se integrou aos europeus. No Espírito Santo, duas eram as principais nações de tapuias: os guaymorés no norte e os guaitacazes no sul; hoje, aportuguesados, eles são grafados como aimorés e goitacases. Esses eram os nomes que os tupis davam, em sua língua, à essas nações que não falavam o mesmo idioma que eles.

MAS... E ENTÃO?

É fato, portanto, que os goitacases habitavam o Itabapoana, e que chamavam o rio de Managé, conforme relata e grafa o malogrado Donatário de São Thomé. Assim, o termo não seria de origem tupi-guarani, mas sim de origem macro-gê. Desse modo, não poderíamos traduzir a palavra como sendo derivada do tupi amanajé.

Importante também salientar que a letra J, na grafia portuguesa dos termos tupis, tinha muito mais a pronúncia fonética de I, do que de G (com som de J). Originalmente, a palavra amanajé era falada pelos tupis como 'manaié, com um "I meio ajotalhado". E, para escrever esse fonema, os portugueses utilizavam-se da letra J.

E, interessantemente, no português do século XVI, o fonema G (com som fonético de J) na língua lusitana era mais escrito com a letra J, do que com G. Em muitas localidades de Portugal, inclusive, as palavras grafadas com a letra G (seguidas das vogais E ou I) possuíam o som de X. A palavra grafada gente, por exemplo, era falada por muitos com o som de xente. Até hoje, mesmo no Brasil, temos pessoas, especialmente no norte/nordeste, que pronunciam o "famoso" ó xente!.

Pero de Góis grafou, usando o alfabeto da língua portuguesa, o termo que escutou da boca dos goitacases: MANAGÉ - assim mesmo, com acento no E. O problema é que se a pronúncia fosse, naquela época, como é hoje, ele escreveria MANAJÉ, e não MANAGÉ. E por que escreveu ele dessa forma? Simples: a pronúncia goitacás do termo era MANAXÉ. Como era corrente na época, Góis usou a letra G para representar o fonema X.

Assim, a palavra goitacás manaxé era a usada para dar nome ao rio que hoje conhecemos como Itabapoana. Palavra, inclusive, com raiz linguística tipicamente macro-gê, como eram os goitacases. Os tupis chamavam esse rio de Camapuan, que grosso modo significa "colina arredondada (como seios)". Nossos caboclos acabaram por adotar com o passar dos séculos, por corruptela, o nome que hoje é conhecido - Itabapoana (Camapuan - Cabapuana - Tabapoana).

E O QUE SIGNIFICA, AFINAL?

Infelizmente, não nos foi legado nenhum dicionário escrito goitacás-português. Um padre jesuíta chegou à confeccionar um, entre os goitacases estabelecidos em um Aldeamento tupi, mas essa obra não sobreviveu ao tempo. Inclusive, esses goitacases aculturados deixaram de falar sua língua, para falar a língua geral; as crianças eram instruídas em tupi, e em uma geração a língua havia se perdido.

Mas goitacases haviam que tinham se retirado para o sertão. Segundo grande parte dos estudiosos modernos, os goitacases falavam uma língua parecida com o puri, e, ainda segundo os mesmos, puris e coropós seriam os descendentes da mescla entre goitacases e gês do sertão. Assim, a língua dos puris seria bem parecida com a língua dos goitacases, lembrando que ambos eram do tronco macro-gê, e viveram na mesma região geográfica, embora em tempos diferentes.

E, da língua puri, existe dicionário - o mais famoso é o confeccionado por Alberto Torrezão, em 1889. É certo que as línguas vão mudando com o tempo, mas elas mantém uma certa similaridade quando comparadas com a mesma no passado, se não for tão distante. É plenamente possível um brasileiro, por exemplo, ler os textos escritos pelos portugueses do século XV. O tupi falado hoje em dia não difere substancialmente do falado no século XVI.

Desse modo, não seria incorreto tentar traduzir a palavra goitacás MANAXÉ, usando dos dicionários da língua puri. Como aqui foi dito e fundamentado, as duas línguas eram, com grande probabilidade, parecidas. Obviamente que fica esse estudo ainda no campo das hipóteses, mas acreditamos que não devemos desmerecer a interpretação.

O MANAXÉ

A palavra água, em puri, era falada m'nhamã. Dessa palavra derivavam as palavras rio e lagoa, respectivamente, m'nhama-rôra e m'nhama-rorá. A palavra peixe, ao que tudo indica, também deriva daquela: nhama-quê. Assim, resta bem claro que a raiz MANA, de MANAxé, significaria "água".

Mas é o "XÉ", o que significaria? Ou seria manaxé uma expressão derivada, simplesmente, como eram as palavras rio, lagoa e peixe?

Duas são as hipóteses que encontrei.

Ou "manaxé" significava simplesmente "peixe", o que seria plausível pois no baixo curso do Itabapoana sempre houve boa pescaria - a palavra nhama-quê é bem parecida com manaxé, e teria se corrompido após a passagem de mais de 300 anos.

Ou então poderia ser a junção das palavras "água" e "lábio/boca", que eram faladas tsché (txé, ou ché). Essa hipótese é mais plausível que a primeira, embora não possamos desqualificar nenhuma delas. As palavras morder, beber, dente, entre outras, eram todas derivadas da raiz tsché.

Assim, qual seria o significado, grosso modo?
Poderia ser "água de beber", denotando que esse curso d'água era fonte de água "bebível"; lembremos que os goitacases habitavam zonas de brejos e pântanos, onde nem sempre existia água própria para consumo.

Mais ficam todas elas apenas no campo das meras hipóteses...

MAS E O PROJETO?

O nome "Managé" foi escolhido para intitular o projeto da UFF, principalmente, por causa da tradução tupi de "amanajé", que significa "reunião do povo"; pois uma de suas metas é REUNIR, em um mesmo programa, diversos projetos de ensino e de meio-ambiente dos Municípios que integram a bacia do antigo rio "Managé".

Mas, mesmo demonstrando que a tradução do nome antigo do rio Itabapoana encontra-se equivocada, de modo algum este perde o glamour simbólico. Afinal, como projeto voltado para a área da educação sócio-ambiental, um de seus objetivos é preservar a bacia do rio. Preservar o rio é deixá-lo saudável, limpo. E num rio limpo, a água é limpa. Quem sabe um dia o Itabapoana não seja tão limpo, que possamos beber diretamente de suas águas?

"Água de beber", diriam os antigos goitacases.

Gerson Moraes França

EDIT (25/05/2009)

Interessantemente, no tocante ao nome tupi "Camapuana", cujo significado é, grosso modo, "colina arredondada (como seios)", temos um similar muito interessante na língua portuguesa.

É o termo "mamelão". Em desuso no coloquial atual, ainda é muito usado entre os militares em seus relatórios. É sinônimo de "colina" e "outeiro". Também é grafado como "mamilão", e significa "montículo arredondado". A raiz da palavra é "mamilo", que significa tanto "bico do peito", como "outeiro terminado em bico".

Assim, coincidência ou não, tanto a língua tupi, quanto a língua portuguesa, temos palavras derivadas de "seios" para designar "colinas arredondadas".

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