segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Helcio Paiva e o Futebol Mimosense

Helcio Paiva
Foto publicada em 30/05/1930, n'O Jornal
Pesquisa e recorte: arquivo Gerson França

Quando o neto do coronel Natinho visitou o povoado de Mimoso, em janeiro de 1926, vindo da capital federal (então no Rio de Janeiro), ele não era mais apenas o neto do coronel Natinho. Era agora o famoso footballer internacional da seleção nacional brasileira, campeão carioca pelo Flamengo e bi-campeão brasileiro pela seleção carioca. Full-back (zagueiro) insubstituível, considerado o melhor de sua posição, na época. Agora ele era o famoso sportsman Helcio Paiva.

Helcio Paiva nasceu em Mimoso, então distrito do município de São Pedro do Itabapoana, no dia 02 de outubro de 1902. Filho de Lincoln Ribeiro Paiva e de Maria da Conceição Rezende de Paiva. Neto materno de Nominato Ferreira de Paiva, o coronel Natinho. Bisneto, por parte de sua avó Amyntha, de Antão Ferreira da Silva e, por conseguinte, trineto do fundador da Fazenda Mimoso, o capitão Pedro Ferreira da Silva. Passou a infância na Fazenda da Serra, propriedade de seus avós, e na estação Mimoso, onde estudou as primeiras letras. Não é possível afirmar ainda, mas é bem provável que tenha aprendido e tomado gosto pelo futebol quando, na época da primeira guerra mundial (1914/18), alguns holandeses que estavam estudando a viabilidade econômica de se extrair turfa na região do Rio Preto, em São José das Torres, divertiam-se em Mimoso, nas horas de folga, praticando aquele esporte "novo" que era o foot-ball.

Em algum momento do início da década de 1920, Helcio Paiva mudou-se para o Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Empregou-se no comércio. Talvez tenha presenciado a fundação do primeiro clube de futebol de Mimoso, o Mimosense Foot-ball Club. Não se sabe, ao certo, a data de sua fundação. Os primeiros registros da existência do Mimosense são de 1921. Em dezembro deste mesmo ano, o Mimosense fez sua primeira partida fora do povoado: foi à Cachoeiro e derrotou o Estrela do Norte pelo score de 3 x 2. Em abril do ano seguinte, foi a vez da revanche clamada pelo Estrela. No jogo preliminar, disputado pelos segundos-quadros das equipes, o Mimosense venceu por 4 x 2. Iniciado o jogo principal, "representativo" como se falava à época, ás 15 horas do dia 02 de abril de 1922, "numerosa e seleta era a assistência no vasto ground do Mimosense, onde a pugna transcorreu renhida, sob excelente atmosfera de entusiasmo e alegria". O resultado, porém, foi adverso ao clube de Mimoso: o Estrela venceu por 4 x 1.

Não sabemos se Helcio presenciou, ou mesmo se jogou, essas partidas. Estaria com seus dezenove anos, nessa época. Mas, decerto, tomou conhecimento, como entusiasta que era do futebol. Mas, retornando: em algum momento do início da década de 1920, Helcio Paiva mudou-se para o Rio de Janeiro e empregou-se no comércio. Mas o futebol já estava em sua vida. Em 1923, foi jogar em um pequeno clube local: o Sport Club Mangueira (hoje, extinto), que tinha campo na Tijuca. E, na posição de full-back, destacou-se. O Mangueira terminou o campeonato carioca da série B em segundo lugar. Em 1924, uma cisão no futebol carioca fez com que houvesse dois campeonatos: um, organizado pela LMDT (Liga Metropolitana de Desportos Terrestres), que teve a participação do Mangueira (que terminou na sexta colocação) e foi vencido pelo Vasco, e outro organizado pela AMEA (Associação Metropolitana de Esportes Atléticos), que tinha os grandes clubes do Rio (à exceção do Vasco) e que foi vencido pelo Fluminense. Helcio também destacou-se, e foi convidado a jogar pelo Flamengo. Sua primeira partida pelo clube rubro-negro foi no dia 07 de setembro de 1924, em um jogo contra o Vila Nova, de Minas Gerais, que terminou com a vitória flamenguista pelo placar de 4 x 0.

Iniciava aí sua bela trajetória pelo Flamengo. Já em novembro de 1924 era "convocado" para integrar a seleção carioca. E, no ano seguinte, consagrava-se de vez tornando-se titular da seleção brasileira. A história de Helcio Paiva no Flamengo e nos selecionados carioca e brasileiro é por demais conhecida. Uma pequena pesquisa na internet suprirá a curiosidade do leitor. Nosso objetivo, na presente matéria, é relatar fatos menos conhecidos, especialmente no que toca à relação de Helcio com Mimoso. De todo modo, vamos lá à algumas informações. Helcio Paiva jogou no Flamengo, como titular absoluto de sua posição, entre os anos de 1924 e 1931. Jogou 141 partidas pelo clube rubro-negro, e marcou 6 gols. Foi campeão carioca nos anos de 1925 e 1927. Pela seleção carioca, foi duas vezes bi-campeão brasileiro, em 1924/25, e em 1927/28, no antigo e "badalado" campeonato que era organizado pela CBD (Confederação Brasileira de Desportos, atual CBF). Pela seleção brasileira, foi vice-campeão sul-americano em 1925.

Para se ter ideia da "fama" que Helcio Paiva passou a desfrutar no Espírito Santo, basta citar que em 1927 a LSES (Liga Sportiva Espírito Santente) organizou um pequeno torneio com seus clubes filiados, em benefício do Cachoeiro FC (para auxiliar na construção de seu estádio), torneio este que tomou o nome de "Taça Helcio Paiva"...

Em 1930, Helcio era não só titular absoluto do Flamengo: era também o capitão do escrete rubro-negro. Mas, já chegando aos trinta anos de idade, o veterano começava a sentir a ação do tempo. Não foi convocado para disputar a primeira Copa do Mundo, realizada no Uruguai, em 1930, apesar dos protestos de muitos críticos futebolisticos, que entendiam que Helcio continuava insubstituível. De todo modo, fez questão de se fazer presente e de abraçar todos os jogadores brasileiros quando de seu embarque para Montevideo. O capitão do Flamengo, em dezembro de 1930, quase no final de sua carreira no futebol carioca, mudou de posição: de full-back (zagueiro) tornou-se center-half (meio-campo). Mas essa mudança durou pouco e, em 1931, quando começaram a circular boatos de que Helcio deixaria o Flamengo, retornou à posição que o havia consagrado. Disputou, ainda, o campeonato carioca de 1931 pelo clube da Gávea. Neste mesmo ano, perde a condição de titular da seleção carioca. E resolve deixar o Flamengo e o Rio de Janeiro.

No final de julho de 1931, o afamado footballer Helcio Paiva reaparece em Mimoso. Mas, desta vez, não seria apenas uma rápida visita. Resolveu fixar residência na agora chamada cidade de João Pessoa. O povoado de Mimoso, após a revolução de 1930, havia tornado-se a sede do antigo município de São Pedro do Itabapoana; de povoado e estação de Mimoso, agora era cidade de João Pessoa. E, como não poderia deixar se ser, Helcio envolveu-se ativamente com o futebol em seu torrão natal.

Quando retornou, Mimoso possuía dois clubes de futebol: o Mimosense Foot-ball Club, fundado provavelmente por volta de 1920, e o Sport Club Ypiranga, clube mais recente fundado em 05 de março de 1929. Além desses, havia também dois clubes em distritos do município: o Ita Sport Club, de Ponte de Itabapoana, e o Boa Vista Foot-ball Club, da atual Apiacá. Fora o então "inativo" São Pedrense Foot-ball Club (hoje, extinto) da antiga sede municipal, São Pedro do Itabapoana. Enfim, a "vida futebolística" local estava em um bom momento; e a chegada de Helcio incrementaria, ainda mais, esse bom momento.

Helcio passou a integrar o team do Mimosense FC. A "temporada" de 1931 estava boa para o clube quando o grande zagueiro veio reforçar o escrete. O Mimosense havia disputado seis partidas, nesse ano, sem que houvesse sofrido uma só derrota. Venceu o Ita SC por 3 x 1, venceu o quadro da Estrada de Ferro por 2 x 0, empatou com o SC Comercial, de Muqui, pelo score de 3 x 3, mesmo resultado da partida contra o Nacional FC, também de Muqui. E, em Cachoeiro, alcançou duas belíssimas vitórias contra o Cachoeiro FC, seguidamente, pelos placares de 6 x 3 e de 3 x 1. Vale ressaltar que o Cachoeiro FC era o atual campeão do Sul do Estado de 1930, e vice-campeão espírito-santense do mesmo ano.

Com tão bons resultados, e contando com um ótimo time, agora reforçado por um jogador de renome internacional, o Mimosense foi convidado, pelo Vitória FC, para participar de duas partidas na capital do Estado. Helcio Paiva foi um dos grandes responsáveis pela realização dessas partidas. E em agosto de 1931, pela primeira vez, um clube de futebol de Mimoso esteve em Vitória. Interessantemente, a LSES (Liga Sportiva Espírito Santense), a qual nenhum clube de Mimoso estava filiado, considerava a fundação do Mimosense FC como tendo ocorrido em 1926, exatamente na época que Helcio Paiva esteve "organizando os papéis" do clube, quando de sua visita ao então povoado.

Foram dois jogos em Vitória, com duas derrotas. Em 15 de agosto de 1931, no campo de Jucutuquara, teve início a primeira das partidas, entre o Santo Antônio FC e Mimosense FC. O Santo Antônio venceu o Mimosense pelo score de 4 x 2. Importante dizer que o Santo Antônio sagrar-se-ia, pouco depois, campeão capixaba de 1931. O escrete mimosense formou com a seguinte equipe: Lilico; Marins e Helcio; Paiva, Valfredo e Moura; Geraldo, Abelardo, Fragoso, Arribe e Mitre. Helcio Paiva começou a peleja na zaga, mas no meio do jogo trocou de posição com Valfredo, passando a atuar no meio campo. No dia seguinte, 16 de agosto, também no campo de Jucutuquara, foi realizada a pugna entre o Vitória e o Mimosense, com nova derrota destes, também pelo placar de 4 x 2. O time de Mimoso formou com: Lilico; Marins e Helcio; Paiva, Umberto e Moura; Abelardo, Geraldo, Ibrahim, Arribe e Mitre.

Apesar das duas derrotas, o fato de ter se apresentado em Vitória foi considerado muito positivo para o futebol mimosense. Nenhum dos clubes locais era afiliado à LSES, e as partidas deram maior visibilidade aos clubes de Mimoso. Em junho de 1931, o SC Ypiranga já ha havia protocolizado junto a Liga um pedido de filiação, mas o Conselho de Julgamento da LSES não apreciou a solicitação por carência de informações na documentação.

Somente em 20 de abril de 1932 é que o Sport Club Ypiranga teria seu pedido apreciado e deferido pelo CJ/LSES. Nesse mesmo mês, o Mimosense Foot-ball Club fez sua solicitação de filiação à Liga, que foi aprovada em maio de 1932. Em junho de 1932, oficialmente, a LSES formalizava a afiliação dos dois clubes de Mimoso. Finalmente, e Helcio Paiva tomou parte verdadeiramente ativa para isso, o futebol de Mimoso, então João Pessoa, estava "organizado".

Helcio Paiva continuou atuando pelo Mimosense até 1932. Em novembro do ano anterior, inclusive, iniciou com uma nova atividade: passou a atuar como árbitro de partidas, e chegou a ser designado pela LSES para apitar a "final" do campeonato capixaba de 1931, decidido em uma partida entre o Santo Antônio e o Vitória. Só não arbitrou essa partida porque o Santo Antônio não aceitou, temendo alguma parcialidade do famoso zagueiro. Interessante, porém, foi a alegação do Santo Antônio para recusar o nome de Helcio; talvez não querendo ser descortês, assim arrazoou a diretoria: "(...) reconhecer no grande crack capixaba bastante critério e muita competência técnica". O Santo Antônio recusava o nome de Helcio por este ser... bom demais para aquela partida! A propósito: o Santo Antônio venceu o Vitória por 3 x 1.

Helcio Paiva no SC Ypiranga. Foto de outubro de 1932.
Pesquisa e recorte: arquivo Gerson França

Pouco após a filiação dos dois clubes de Mimoso à LSES, Helcio Paiva mudou de agremiação. Deixou o Mimosense e passou para o Ypiranga. Em setembro de 1932, inclusive, Helcio Paiva foi eleito e tomou posse como novo presidente do SC Ypiranga. Mas a estada de Helcio em Mimoso não seria longa, apesar de ter sido consideravelmente profícua. Em 1933, dois anos após ter aportado ao seu torrão natal, o afamado footballer muda-se para Lavras, em Minas Gerais, onde passa a jogar no clube local. Em 1935, Helcio Paiva, atuando então pelo SC Juiz de Fora, foi convocado para atuar como titular da seleção mineira que disputaria o campeonato brasileiro de seleções estaduais. Em 1936 voltou à jogar pelo Lavras SC. Na década de 1940 mudou-se para a capital mineira, Belo Horizonte, onde chegou à treinar pelo América. E, em 1942, atuou como técnico do próprio América.

Helcio Paiva, em 1944, de chapéu. Fonte: O Jornal.
Pesquisa e recorte: arquivo Gerson França.
Um fato curioso na vida de Helcio Paiva foi sua nomeação, pelo governador de Minas Gerais, Benedito Valadares, para o cargo de Prefeito da pequena cidade mineira de Itumirim, próxima à Lavras. Isso deu-se em 1944, quando o grande craque já havia passado dos quarenta anos. Certa feita, nesse mesmo ano, Helcio visitou o Rio de Janeiro. Como sempre ocorria, era logo cercado de fãs e de fotógrafos assim que era reconhecido. Ao observar que seria fotografado, Helcio colocou seu chapéu na cabeça; não queria que as objetivas flagrassem sua cada vez mais calva cabeça. Desejava ser lembrado pelos fãs tal como era quando jogava. Persuadido que foi, após, pelo fotógrafo e pelo repórter, que o disseram que "Helcio Paiva sempre seria o famoso full-back internacional", independente da calvície que se avizinhava, o agora Prefeito baixou a guarda e aceitou ser fotografado sem o chapéu.

Helcio Paiva, sem chapéu. Fonte: O Jornal, 1944.
Pesquisa e recorte: arquivo Gerson França.
Após a passagem "meteórica", porém "iluminada", de Helcio Paiva pelos dois clubes de futebol de Mimoso do Sul entre 1931 e 1933, o futebol local continuou seu caminho. O Mimosense, após uma derrota em casa no dia 07 de fevereiro de 1933 para o Viminas, pelo placar de 3 x 0, entrou em um período de maus resultados. Em 1936, o Ypiranga, premido por uma crise política interna, rachou: um segmento saiu do clube e uniu-se ao que "restava" do Mimosense, para em 16 de abril do mesmo ano fundarem o Independente Atlético Clube. Extinguia-se o Mimosense FC, absorvido pelo Independente. Ainda em 1936, Ypiranga e Independente participaram do campeonato de futebol do sul do Estado (espécie de precursor do campeonato sulino); participaram desse campeonato, além dos clubes mimosenses, o Estrela, o Cachoeiro, o Comercial de Castelo, o Comercial de Alegre, o Castelo e o Rio Branco de Alegre. O Independente foi muito bem; o Ypiranga, foi mal. Foi nesse campeonato que seria realizada a primeira partida oficial entre os dois hoje tradicionais clubes de futebol de Mimoso do Sul. No dia 25 de outubro de 1936, um domingo, em João Pessoa (Mimoso), o Independente bateria o Ypiranga pelo largo resultado de 5 x 0. Nesse mesmo ano, em novembro, o Independente bateria, em Vitória, o Rio Branco, então tri-campeão capixaba. Mas aí entramos em "novos tempos" do futebol mimosense, que retrataremos em uma outra oportunidade.

Por fim:
O sucesso do Independente em seu primeiro ano de fundação, combinado com influências políticas locais, foi responsável pela aprovação de uma Lei, datada de 31 de dezembro de 1936, pela qual o Estado doou vinte contos de réis para auxiliar na construção de um stadium para o Independente, que serviria também como "praça esportiva" para outras atividades.
E o nosso eterno crack Helcio Paiva, o neto do coronel Natinho, o full-back mais importante e respeitado do Flamengo na década de 1920 e comecinhos da década de 1930, o footballer internacional da seleção brasileira, abnegado incentivador do futebol mimosense, teve, infelizmente, uma trágica morte. Radicado há anos em Belo Horizonte, faleceu no dia 31 de agosto de 1970 quando, indo da capital mineira para o Rio de Janeiro (para assistir a uma partida do Flamengo, segundo alguns), sofreu um acidente automobilístico. Seu fusca capotou nas proximidades de Barbacena. Foi sepultado no dia seguinte, no cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte.

Por:
Gerson Moraes França

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A Fábrica de Tecidos de São Pedro do Itabapoana

Quando o agente cultural, ou o jornalista, o memorialista e até o historiador querem demonstrar, para o visitante ou o leitor, como São Pedro do Itabapoana foi uma cidade próspera no passado, é comum que elenquem algumas das coisas que existiam por lá. Assim, falam dos jornais, do cinema, das farmácias, dentre outras coisas mais. E também falam de dois estabelecimentos fabris que existiram em São Pedro do Itabapoana: a fábrica de tecidos e a fábrica de ferraduras (que era, na verdade, fábrica "semi-artesanal" de manufatura de ferragens em geral, embora especializada na produção de ferraduras).

E hoje, em um artigo que espero não ser muito grande, resolvi falar um pouco sobre um desses estabelecimentos fabris: a Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda. E nem é possível falar muito, porque são bem escassas as fontes documentais primárias sobre essa fábrica. É possível que uma pesquisa mais apurada e específica encontre mais dados, especialmente tributários, sobre a fábrica em questão; mas, enquanto não posso "fuçar" os livros de lançamentos tributários de São Pedro do Itabapoana (que, pelo menos até a última enchente, estavam conservados no setor de arrecadação, no primeiro andar do prédio da Prefeitura) e algum registro no Arquivo Público estadual que possa ter subsistido, vamos com o que temos em mãos.

Não se sabe a data precisa da abertura da fábrica. Mas uma coisa se sabe: foi posterior à chegada da luz elétrica em São Pedro do Itabapoana, fornecida pela Usina Aparecida, da empresa Companhia de Eletricidade Muqui do Sul. A inauguração da luz elétrica em São Pedro, conforme nos informa Grinalson Medida, ocorreu no dia 04 de fevereiro de 1922. Até então, a cidade era apenas iluminada à gás acetileno, e não havia energia para alimentar estabelecimentos como, por exemplo, as fábricas ou o cinema. Qualquer empreendimento que demandasse o consumo de "muita" energia dependia, antes da chegada da energia elétrica, de geradores privados. Muitas Fazendas, por exemplo, tinham geradores próprios para iluminar suas sedes e movimentar seus engenhos ou suas máquinas de beneficiar café.

Assim, podemos apenas presumir, mais ou menos, quando foi inaugurada a fábrica. Em 1929 sabe-se, por registro contemporâneo, que a fábrica já existia. Em um memorial cuja data parece ser 1927, a fábrica, considerada "nova", já aparece como existente. Há também uma menção, embora não conclusiva, de que a fábrica já funcionava quando ainda vivia Victor Leite, fazendeiro em Mimoso. E há também um relatório da Secretaria de Agricultura, Terras e Obras do Estado, datado de 1926 (mas com dados em 1925) que não cita a existência da fábrica na "seção" que trata dos estabelecimentos fabris têxteis no Espírito Santo. Assim, com base nesses dados acima, presumo que a Fábrica de Tecidos São Pedro tenha sido fundada em algum momento entre 1926 e 1927. Mas, lembramos ao leitor, é apenas uma presunção.

Quanto ao nome da fábrica e quanto ao proprietário fundador, não há duvidas. O estabelecimento chamava-se Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda, e seu dono era o coronel Clarindo Lino da Silveira. Clarindo Lino, "chefe político" de São Pedro na década de 1920, era um rico proprietário de várias fazendas de café, que diversificou seus investimentos na época "áurea" da rubiácea. Além do café, "mola-mestra" da economia do sul do Estado e que criou ou sedimentou fortunas na década de 1920, Clarindo Lino investiu na produção de algodão (que, até a inauguração da sua fábrica de tecidos, era toda vendida para a Fábrica de Tecidos de Cachoeiro de Itapemirim), e também na pecuária (anos mais tarde a sua empresa Agropecuária Itabapoana seria uma das mais ricas não só do Estado, mas também do país). Clarindo Lino também investiu na construção da uma Usina na fazenda União (mais tarde vendida), que produzia aguardente e um pouco de açúcar. Enfim, com os enormes capitais que o café proporcionou nessa época, Clarindo Lino, que já era fazendeiro e comerciante, tornou-se também um industrial.

Fato interessante, que pode guardar alguma relação, ou não, é que o pai de Clarindo Lino (João Lino da Silveira), bem como ele próprio por um bom tempo, foi "jeronimista"; era "seguidor" da corrente política do Partido Republicano Espírito-santense chefiada pelo ex-Presidente do Estado, e então Senador, Jerônimo Monteiro. Sabe-se do esforço industrializante levado a efeito por Jerônimo Monteiro quando governou o Estado entre 1908 e 1912 (quando João Lino tornou-se, inclusive, o "chefe político" de São Pedro), e que dentre os empreendimentos havia uma fábrica de tecidos em Cachoeiro de Itapemirim e uma usina de açúcar e aguardente em Paineiras. Foi exatamente na época que Jerônimo Monteiro passou para a oposição, em 1920, que João Lino pouco depois "entregou" o comando político do Município e "passou o bastão" para o seu filho Clarindo Lino, que sedimentou-se na liderança política de São Pedro no "bojo" da política "neutra" do Presidente Nestor Gomes (1920-1924) para a região. Se as idéias industrializantes jeronimistas influenciaram, ou não, as atividades industriais privadas de Clarindo Lino na década de 1920, talvez nunca saibamos; mas não é algo improvável.

Bom, retornemos. Inaugurada em algum momento entre os anos de 1926 e 1927, a Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda era abastecida pela pequena produção de algodão existente nos Municípios de São Pedro, Ponte de Itabapoana e vizinhos; mas precisava importar matéria prima de fora do Estado para funcionar. Há o registro, em 1927, de dois desses pequenos produtores de algodão em São Pedro do Itabapoana; curiosamente, ambos eram italianos: Quineu Quitetti e Vicente Manvetti. Clarindo Lino, inclusive, estimulava a produção de algodão em São Pedro, embora sem muito sucesso. Até a crise de 1929, poucos eram os que investiam capitais e trabalho em lavouras que não fossem a cafeeira e as de subsistência, como milho, arroz e feijão. Interessante é que, na década de 1930, buscando diversificar a produção agrícola no Estado e diminuir a dependência em relação ao café, o governo do Interventor João Punaro Bley estimulou muito a produção de algodão, com reflexos em São Pedro.

A Fábrica de Tecidos São Pedro possuía 20 teares, importados da Inglaterra. Produzia o algodão em fio, que era exportado, e tecidos grossos como brins e riscados, utilizados principalmente para a confecção de sacos, mas que também foram utilizados para confeccionar roupas mais grosseiras usadas, principalmente, por trabalhadores rurais. Para efeitos de comparação, na mesma época, a Fábrica de Tecidos em Cachoeiro de Itapemirim possuía 161 teares e empregava 287 operários (101 homens e 186 mulheres). Não há registro de quantos operários trabalhavam na fábrica de São Pedro mas, se usarmos da mesma proporção da fábrica de Cachoeiro, não seria impossível que tenha empregado até 35 pessoas em algum momento de sua existência.

Não sabemos em que medida a crise de 1929 abalou a fábrica de tecidos em São Pedro, mas é fato que não foi suficiente para abalá-la substancialmente. Na década de 1930, inclusive, a produção da fábrica e o estímulo governamental fez com que a produção de algodão crescesse no então chamado Município de João Pessoa (Mimoso do Sul), antigo São Pedro de Itabapoana. Em 1934 a fábrica ainda estava com seus 20 teares em operação, embora tenha adequado sua produção aos novos tempos. Nesse ano, a fábrica não produzia mais os tecidos, mas somente os fios que, como antes, eram todos exportados, principalmente para a fábrica de tecidos de Cachoeiro. Em 1936 havia, no Município, boas plantações de algodão, embora ainda fossem insuficientes para abastecer a fábrica de matéria prima. Os principais produtores, nesse ano, eram: Clarindo Lino (um hectare plantado com algodão), Arnaldo Costa (com meio hectare) e o Dr. Arthur Velloso (com três hectares). Para comparar, em todo o sul do Estado havia quase 240 hectares cultivados com algodão em 35 propriedades.

O ocaso da Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda é ainda mais nebuloso. Como vimos, fundada provavelmente em 1926/27, com 20 teares e produzindo tecidos, a maior parte para sacos, e fios, que eram exportados, em 1934 não produzia mais os tecidos, mas somente os fios que continuavam sendo exportados. Em 1936 ainda estava em plena operação, absorvendo a crescente produção de algodão do Município. Mas, em algum momento entre essa última data e o ano de 1950, a fábrica fechou as portas. Em 1951 há registro concreto de que a fábrica não mais funcionava há alguns anos. Assim, só nos resta presumir que a Fábrica de Tecidos São Pedro tenha encerrado suas atividades em algum momento da primeira metade da década de 1940. A dificuldade para a obtenção da matéria prima que fizesse a fábrica funcionar plenamente, fato observado também em outros estabelecimentos têxteis do Estado nessa época, pode ter sido um dos motivos para seu fechamento. Também a pequena produção, se comparada com os empreendimentos maiores, pode ter tornado a fábrica obsoleta ou inviável. Não sabemos. E reiteramos: é apenas presunção; nada conclusivo.


Por fim: como pesquisador e frequentador de São Pedro do Itabapoana, sempre quis saber aonde teria funcionado a tão falada Fábrica de Tecidos. Sim, queria saber em que imóvel, ou em que parte do núcleo urbano, esteve instalada a fábrica. Nem mesmo o belo trabalho "Tombar é Preservar? Caso de São Pedro do Itabapoana" (Silva e Puppo, 1987), que traçou um "mapa" de como seria São Pedro em 1930, localizava a fábrica. Então, certa vez, saí eu cedinho de Mimoso, rumo à São Pedro, para tentar "localizar" o local. Eu só tinha uma informação concreta: de que as instalações da fábrica margeavam o ribeirão São Pedro. E uma informação presumida: de que a fábrica ficava na parte "baixa" da cidade. Pois, com essas informações e de posse de um mapa da área, perambulei pelos locais que poderiam ter abrigado a edificação. Aproveitei e "entrevistei" alguns velhos moradores, na esperança de que algum deles pudesse ter alguma ideia. Os três moradores com informes mais confiáveis (José Miguel de Souza - pai de Balbino Miguel Nunes, Maurino Vasconcelos e José de Souza - o "Seu Setenta") foram todos unânimes: a fábrica teria funcionado na parte baixa da cidade, nos "fundos" da rua da antiga Cadeia Pública, acessível por uma via sem saída perto da escada de pedras que havia ao lado da antiga residência de Grinalson Medina. E lá fui eu.

De fato, há duas edificações nessa área, uma delas claramente bem antiga. Mas esses imóveis, por algum motivo, não entraram no "rol" dos prédios tombados pelo Estado. "Rodei" por ali, encontrei vários cacos de cerâmica e de telhas e alguns pedaços de metal. Nada conclusivo. Mas, considerando os testemunhos e as evidências, é bem possível que aquelas edificações tenham abrigado a antiga Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda. Abaixo segue uma foto aérea do local, com a possível área e edificações circundada de vermelho.

Por: Gerson Moraes França


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A Fazenda União

Antiga sede da Fazenda União - foto de Beto Barbosa

Na semana retrasada, os que advogam pela preservação do patrimônio histórico no Espírito Santo e em Mimoso do Sul receberam uma boa notícia. A Superintendência Regional do INCRA no Estado concedeu à Prefeitura de Mimoso uma área para executar um empreendimento de turismo e de lazer no Assentamento União, onde outrora existiu a mais que centenária Fazenda União. Intenta-se instalar um clube, um Museu e um Hotel Fazenda na área, preservando o imóvel que serviu de sede para o que foi uma das maiores e mais ricas fazendas de café e de cana-de-açúcar da região, e que também abrigou uma Usina, hoje em ruínas, que fabricava açúcar e, principalmente, aguardente. Chegou a ser a maior produtora de aguardente de todo o Estado, na década de 1940 ou 1950.

A notícia pode ser lida no site do INCRA, clicando-se no link abaixo:

O Assentamento União é o mais antigo assentamento de reforma agrária em Mimoso do Sul. Foi implementado em 1998, na esteira de um crescente movimento social dos trabalhadores sem-terra no Município. Após isso, a mobilização dos sem-terra, capitaneadas em Mimoso principalmente pela FETAES e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais local, e com participação também do MST, tomou uma enorme proporção. Nos anos 2000, Mimoso do Sul foi, por um período, o Município do Estado com o maior número de acampados de todo o Espírito Santo, com centenas de famílias à espera de uma gleba.

Lembro-me bem desses anos. Como esquecer os barracos de lona, alinhados lado a lado na estrada, então de terra, que liga Mimoso à São Pedro, Santo Antônio e Conceição de Muqui? Eram quilômetros de barracos, à espera de que fosse repartida a Fazenda Palestina, também desapropriada para a reforma agrária. Lembro-me quando, na Fazenda Catuné, os acampados entraram no terreno e repartiram suas glebas. E na Fazenda Independência, quando algumas dezenas de acampados ocuparam as entradas da fazenda, também à espera de uma gleba que, por lá, não saiu; os proprietários conseguiram reverter a desapropriação na Justiça, provando que a Fazenda era produtiva.

À esquerda, a antiga sede da Fazenda União;
à direita, as ruínas da Usina do Engenho Central de União Ltda.

É até interessante, mas todas essas propriedades eram o que restavam de ricas e enormes fazendas cafeeiras surgidas no século XIX, e que prosperaram até a época da erradicação dos cafezais velhos, na década de 1960. União, Palestina, Independência e Catuné foram riquíssimas fazendas, propriedades de "capitães" e "coronéis" do passado. E, ironia do destino, foram o alvo de centenas de famílias de trabalhadores sem-terra que, muitas delas, expulsas do campo nas décadas de 1950 e 1960 devido à crise do café e ao aumento das pastagens, agora retornavam para a atividade que seus avós exerciam. Mas, dessa vez, como proprietários.

Quando criança, a "roça" sempre me chamou a atenção, mas de uma forma estranha. O período áureo do café e da intensa vida rural não mais existia nas regiões que eu frequentava quando pequeno, e nem quando adolescente. O campo era, para mim, uma extensa zona vazia e deserta, sem gente e sem vida, onde pastavam alguns poucos bois. À noite, era sinônimo de silêncio e de escuridão.  Lembro-me que era comum ver pequenas casinhas abandonadas, a maior parte em ruínas. Pensava eu: "alguém já teria morado ali?". Não imaginava eu que, à vinte ou trinta anos atrás, a população rural daquelas regiões era a maioria: cerca de noventa porcento dos habitantes de Mimoso do Sul e de Muqui.  Nascido e vivendo em Vitória, quando criança minha concepção de campo era, interessantemente, um núcleo urbano: Muqui, cidade onde meus avós viviam. Para mim, o "rural" era uma "cidade pequena". Só fui ter contato mais direto com o campo quando, adolescente, comecei a frequentar Mimoso e as fazendas da família de minha antiga madrasta. Foi lá que, pela primeira vez, vi um trabalhador rural em seu ambiente de trabalho. Lembro-me quando um dos filhos dela, meu "meio-irmão" Daniel, apontou para um deles e disse; "- é um colono". Eu, na minha "ignorância escolarizada", perguntei:  "- ele é de que nacionalidade?". Todos riram, inclusive o "colono". Hoje, ao descer a serra do Catuné ou dobrar a grande curva da União, à noite, observamos diversos pontos de luz espalhados no meio do que, antes, era só escuridão.

Depois desse "primeiro contato direto", vivi intensamente, embora por um curto período, a "vida rural". Não só em lazer, passeando de cavalo ou de moto pelos morros e matas, tomando banho de rio ou aproveitando as cachoeiras, mas também "trabalhando" eventualmente. Subi morros e ajudei à cortar e puxar capim para misturar com cana, que servia de ração para os bois e vacas no curral. Até hoje eu adoro aquele cheiro de "bosta de boi" misturado com o aroma doce da cana moída com capim. Ajudei à espalhar café no terreiro. Tomei café torrado e moído na hora, e fazia meu próprio caldo-de-cana em uma pequena "moenda" que havia embaixo da sede da fazenda. Ajudei à "desmontar" uma casinha e "transportar" os tijolos e telhas para outro local. Ajudei a caiar a casa de um colono. Joguei milho para as galinhas, e "catei" ovos. Andei pelas terras de uma fazenda que meu pai havia adquirido, e que servia para "engordar" os bois da fazenda de minha madrasta. Enfim, pude ter contato direto com um pouco daquela vida. No ano que morei em Mimoso, meu "castigo", quando eu faltava a aula do Guimarães Rosa em Cachoeiro, era ir pra fazenda "ajudar na roça"; mal sabiam que eu adorava aquele "castigo"...

Mas, afinal... falava eu sobre a Fazenda (hoje, Assentamento) União e da boa notícia acerca da possibilidade concreta da preservação de sua antiga sede mais que centenária. Deixemos de divagações de lembranças pessoais, e vamos para o cerne do que pretendia escrever.

O costume parece não ser tão recente, mas hoje é muito mais comum as assessorias de imprensa e/ou de divulgação de órgãos públicos ou de empresas privadas "darem mancada" quando precisam escrever algo que envolva História, embora isso não seja regra geral. Às vezes são "pequenas mancadinhas"; às vezes, são "mancadas homéricas". Hoje isso piorou, pois, com a Internet e o Google à disposição, tudo parece estar muito mais fácil e acessível. Há as exceções, mas basta "navegar" e "guglar" que... "pimba"! "- Encontrei a informação histórica que eu precisava! Pronto, trabalho feito". Esquecem-se de que o papel (ou a tela) aceita qualquer coisa. Mas, para eles, esses pequenos erros ou equívocos não são significantes, pois esses informes são vistos como mero "floreamento". Não desvirtuam a informação que, em essência, querem transmitir. E, de certo modo, não estão errados.

Mas, como historiador que pretendo ser, os "pequenos errinhos", por menores que sejam, "doem na minha vista". E foi o caso da matéria que o INCRA publicou em seu site, e que coloquei o link de acesso mais acima. Vamos lá, acertar os equívocos. Coisa de pretenso historiador chato.

Antiga sede da Fazenda União
Embora eu não seja arquiteto, e nem estudioso dos estilos arquitetônicos na História, uma coisa parece patente e correta na matéria: o estilo de construção da sede da Fazenda União é "colonial". Edificação bem típica da segunda metade do século XIX no sul do Espírito Santo, que lembra algumas construções do Vale do Paraíba fluminense, bem como algumas edificações de fazendas mineiras. O que não faz dela, porém, "uma antiga fazenda colonial". A Fazenda União, bem como todas as antigas fazendas do século XIX em Mimoso do Sul foram "abertas" somente a partir da década de 1840. Assim, não datam da época da Colônia, mas sim, da época do Império. O Brasil já era um Estado independente.

Outra coisa é o nome do fundador da referida fazenda. Detalhe inútil para alguns, talvez. Mas não para mim e para meus olhos. E, afinal, aposto que os descendentes do fundador da fazenda também prefeririam que seu nome correto fosse lembrado. Brincadeiras à parte, seria o mesmo que daqui a cento e cinquenta anos alguém escrevesse que o superintendente do INCRA no Espírito Santo em 2014 fosse um tal "João Cândido Costa da Silva" (observação: seu nome é José Cândido Costa Rezende). =P

Embora fosse um felizardo membro de uma importante família proprietária de terras na região de Oliveira, em Minas Gerais, e herdeiro de uma pequena fortuna, seu nome não era Felizardo Ribeiro de Castro, mas sim Felisberto Ribeiro da Silva Junior. A confusão com o "Castro" deve ter ocorrido por causa de sua esposa: Felisberto era casado com Maria Cândida de Castro. Ambos, inclusive, tinham parentesco entre si: eram primos, embora não o fossem de primeiro grau. Corrigidos esses dois pequenos equívocos, discorramos agora um pouco sobre os fundadores e os primeiros proprietários, bem como sobre a própria Fazenda União no passado.

A família "Ribeiro de Castro", com ou sem o "Silva" no meio, foi das primeiras que abriu fazendas cafeeiras na região do "médio ribeirão São Pedro". Assim como outros naturais de Oliveira/MG, compraram posses em terras que, atualmente, fazem parte do Município de Mimoso do Sul. Não se sabe ainda, ao certo, o ano exato que Felisberto e Maria Cândida vieram viver em sua fazenda; mas sabe-se o período que vieram morar nas terras do ribeirão São Pedro: ocorreu em algum momento entre 1855 e 1860.

Felisberto Ribeiro da Silva concorreu, também, para a vinda posterior de membros da família de sua esposa. Para se ter ideia, o chamado "decano" da família na década de 1880, Inácio Ribeiro da Silva Castro, só chegou à região de São Pedro depois de 1862. Olímpio Ribeiro da Silva Castro (sobrinho de Dona Maria Cândida) e seu padastro Leopoldino Gonçalves Castanheira - o tão ilustre futuro Comendador e ele mesmo filho de uma Castro -, só chegariam à região do córrego Independência, afluente do ribeirão São Pedro, em 1873, para em sociedade fundarem a Fazenda Independência. Idem com alguns descendentes de Venâncio José Vivas, avô de Leopoldino e progenitor da família Vivas. E não é impossível que tenha concorrido também para a vinda de uma outra interessante personagem da história local: Silvestre Coelho dos Santos, pai do ilustre Dr. José Coelho dos Santos. A família Coelho dos Santos, de onde provavelmente "mestre" Silvestre (ex-escravo que comprou a própria liberdade) retirou o sobrenome, também tinha relações de parentesco com os Vivas, os Castanheira e os Ribeiro da Silva Castro. Todos eles, interessante lembrar, são originários de Oliveira, em Minas Gerais. A própria localização da fazenda que Silvestre adquiriu, antes de 1877, é um indício dessas relações, pois ficava encravada no meio das fazendas da família Castro.

Outra questão interessante que podemos salientar, e que o leitor já deve ter percebido, é a afluência de parentes, amigos ou agregados, que abriam suas fazendas em terras de uma mesma "grande posse" inicial. Isso era muito comum naquela época em que se "desbravavam" as extensas terras de matas virgens dos afluentes do médio Itabapoana espírito-santense. Um só proprietário não possuía, via de regra, recursos para explorar todo o terreno que adquiria ou posseava; assim, era corrente a "fragmentação" dessas grandes posses em várias fazendas, que eram exploradas pelos parentes, amigos ou terceiros que compravam um "naco". Como exemplo, podemos citar a grande Fazenda Mimoso que, de seu núcleo original, foi "fracionada" em várias outras fazendas, quando ainda vivia o Capitão Pedro Ferreira da Silva, que havia comprado a posse original. E, da grande posse, surgiu não só a Fazenda Mimoso, mas também as Fazendas Santa Marta, Santa Rita (hoje situada em Muqui), Serra, Belmonte, Aparecida, Pratinha, Vinagre e até a Fazenda Sapé, mais perto do Itabapoana. Assim também, no caso das terras da família Silva Castro, surgiram várias fazendas como a União, Independência, Recreio, Sant'anna, Rocinha, Lageado, São Carlos, Harmonia, Concórdia, Santa Rosa, Feliz Destino e São Sebastião.

Retornemos, agora, à Fazenda União e seu fundador, Felisberto Ribeiro da Silva. Como dissemos, Felisberto chegou ao Itabapoana e formou sua fazenda em algum momento entre os anos de 1855 e 1860. Como quase todas as propriedades da região fundadas nessa época, utilizava mão-de-obra escrava. Não se sabe ao certo quando foi edificada a sede da Fazenda União, mas ela já estava construída em 1870; acredita-se que tenha sido levantada por volta de 1864. Felisberto foi Tenente da Guarda Nacional e exerceu o cargo de Subdelegado do Distrito de Barra do Muquy, nome que era dado ao primeiro Distrito Policial na região da Freguesia de São Pedro de Itabapoana. Faleceu em 28 de outubro de 1875, na grande casa que servia de sede para a Fazenda e que, se tudo der certo, será restaurada em breve. A viúva, Maria Cândida de Castro, passou a administrar a fazenda com a ajuda de seus genros Bernardo José da Silveira (dono da Fazenda Santa Rosa), José Gomes de Souza (Fazenda Feliz Destino) e José Antônio de Castro (Fazenda Rocinha), e também de seu jovem filho Lindolfo Ribeiro da Silva. José Gomes de Souza, inclusive, foi o tutor dos órfãos de Felisberto, e José Antônio Castro foi quem registou a fazenda na Diretoria de Terras do Estado, em 1894.

Em 1893, pouco antes da primeira crise de preços do café, a Fazenda União, de propriedade da viúva Maria Cândida de Castro, tinha 240 alqueires de terra, dois sítios que eram arrendados e estavam incrustados dentro de suas terras, 120 mil pés de café, pastos, produzia 4 mil arrobas de café por ano e valia 140 contos de réis. Uma fortuna para a época. A propriedade sofreu com a crise, e foi no início do século XX que iniciou com as atividades de plantio de cana-de-açúcar, embora não tenha abandonado as lavouras de café. Em 1915, seu proprietário era Felisberto Gomes de Souza, filho de José Gomes de Souza e neto de Felisberto Ribeiro da Silva. Nessa época, a Fazenda União possuía três moendas, um centro com eixo de roda hidráulica e um alambique com capacidade para produzir uma pipa (480 litros) diária de aguardente. Tinha início a atividade que descambaria na construção da Usina União, que na década de 1940 e 1950 seria grande produtora de açúcar e aguardente.

Ruínas da Usina do Engenho Central de União Ltda
Algumas curiosidades: Felisberto Gomes de Souza, que iniciou com as atividades de plantação de cana-de-açúcar e produção de aguardente na Fazenda União, era casado com Jovita de Castro Souza, tia da poetisa Maria Antonieta de Castro Siqueira Tatagiba. Felisberto e Jovita são pais do médico e oficial do Exército Lécio Gomes de Souza, que também é escritor e poeta e primo de Maria Antonieta. Lécio, nascido na Fazenda Feliz Destino em 1909, foi criado na Fazenda União. Na década de 1920 (depois de 1924, pois neste ano a fazenda ainda pertencia à Felisberto), a Fazenda União passou para a propriedade do coronel Clarindo Lino da Silveira. Daí pra frente, é história mais recente e nos estenderíamos ainda mais nessa já extensa matéria. Abandonada na década de 1970, improdutiva, tinha quase 564 hectares quando foi desapropriada em 1998.


Gerson Moraes França


Primeira foto: Beto Barbosa/Arquivo da PMMS; disponível em:
http://www.mimosoinfoco.com.br/noticiario/incra-concede-cessao-de-uso-da-fazenda-uniao-para-a-prefeitura/
Demais fotos: "prints" de trechos do vídeo "A Folia de Reis na Fazenda União em Mimoso do Sul"; disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=yGCpoVt2TgY
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terça-feira, 26 de agosto de 2014

A Sesmaria de Brás Teles


Não é novidade, para as pessoas que acompanham meu BLOG, a paixão que possuo pela história do Espírito Santo. Minha paixão é extensiva para todos os períodos de nossa história regional; mas os momentos primeiros da colonização portuguesa na Capitania do Espírito Santo possuem um espaço especial em meus estudos e leituras. Penso que esse sentimento deve ser partilhado por muitos de nossos pesquisadores e estudiosos, pois se trata de um marco do processo histórico que descambou no que nosso Estado é atualmente.

Nesses estudos, queria eu entender a dinâmica daqueles tempos primevos da Capitania, e também do Brasil. Do geral, gosto de "descer" ao específico e aos detalhes, para novamente "subir" ao geral; e assim compreender o período, bem como o processo. Desse modo, procurava ter acesso aos documentos primários que fundamentavam os trabalhos de nossa história regional. E deles, tirava minhas próprias conclusões. Dentre esses documentos, havia um que eu não conseguia ter acesso. Tratava-se de um Instrumento de Doação de uma Sesmaria, feito por Vasco Fernandes Coutinho, para Brás Teles de Menezes e mais outros dois portugueses; documento este citado, mas não transcrito, na obra de José Teixeira de Oliveira ("História do Estado do Espírito Santo").

Teixeira de Oliveira, por sua vez, havia retirado essa informação do trabalho de Pedro de Azevedo ("Os Primeiros Donatários  - História da Colonização Portuguesa"). Azevedo, porém, não transcreveu essa fonte em sua obra; apenas referenciou aonde a encontrou: "Chancelaria de D. João III, Livro 47, folha 01". Esse documento está guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal. Infelizmente, porém, seu conteúdo ainda não está digitalizado. Por várias e várias vezes, nos últimos anos, fui até o site da referida instituição, na esperança de ter acesso ao documento; mas sem sucesso: "informação não tratada arquivisticamente", era o recado que sempre aparecia. E, sem condições de viajar até Portugal apenas para tentar ter acesso ao documento, só me restava esperar.

Até que a "sorte" me contemplou, em novembro de 2013. Tive acesso à uma obra publicada no ano 2000, cujo título é: "A Capitania de São Jorge e a Década do Açúcar (1541-1550)". Seu autor é Luiz Walter Coelho Filho. É uma obra de história local de Ilhéus e com recorte temporal bem "curto"; mas, em seu trabalho, buscando comparar Ilhéus com as outras Capitanias, Coelho Filho também tratou de "pedaços" da história do Espírito Santo. E, naquele trabalho aonde nunca imaginei encontrar o documento que eu procurava, estava transcrito parte significativa do Instrumento de Doação objeto da minha procura. O próprio autor serviu como paleógrafo, pois o documento não estava "traduzido". E o que lá estava escrito é, em minha opinião, importantíssima fonte para os que estudam e pesquisam o início da história da Capitania do Espírito Santo.

Abro um adendo para explicar a minha frenética busca por este documento. Via de regra, e considerando os documentos conhecidos lavrados por Vasco Fernandes Coutinho, este costumava tecer bons arrazoados no corpo de seus escritos. Assim, os instrumentos de doação da Ilha de Santo Antônio à Duarte de Lemos, e o "tratado de limites" celebrado entre Coutinho e Pero Góis da Silveira (capitão-donatário de São Tomé), são bons exemplos da minha assertiva. Esperava eu encontrar algo interessante no documento que buscava; mas não esperava encontrar um arrazoado tão extenso e significativo (em minha opinião), como encontrei no Instrumento de Doação à Brás Teles e outros.

Para além de ser um importante documento no que toca aos procedimentos empresariais e de financiamentos da implantação de plantações de cana-de-açúcar e da construção de engenhos na Colônia, naqueles primeiros tempos, o instrumento traz em seu arrazoado relevantes informações que dirimem algumas dúvidas e confirmam fatos apenas presumidos, bem como traz uma informação antes desconhecida pela historiografia regional. Interessante, também, é constatar a importância que os colonizadores conferiam à propagação da fé católica entre os "gentios e idólatras".

Antes de adentrar aos elementos que entendo serem interessantes, importante salientar que, embora Teixeira de Oliveira e Azevedo tenham informado que a Sesmaria doada por Vasco Coutinho à Brás Teles tenha se dado em 07 de outubro de 1541, o instrumento de doação tem data anterior: 30 de agosto de 1540. Imagino que a data citada por Azevedo e reproduzida por Teixeira de Oliveira seja a do registro na Chancelaria do Rei. Assim está o trecho do documento, que cita a data e o local aonde foi feito o documento: "Deus amém saibam quantos este instrumento de emprazamento e doação deste dia para todo o sempre virem que no ano do nascimento do nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e quarenta anos em a cidade de Lisboa aos trinta e um dias do mês de agosto na rua do Barão em as pousadas do senhor Vasco Fernandes Coutinho fidalgo da Casa del Rei nosso senhor capitão e governador da capitania do Espírito Santo na terra do Brasil estando aí o dito Vasco Fernandes Coutinho e bem assim estando o senhor Brás Teles de Menezes fidalgo da Casa do dito senhor e camareiro-mor do senhor infante dom Luís (...)".

O instrumento continua com seu arrazoado, muito interessante para demonstrar como foi dura a "conquista" da região da atual baía de Vitória, e também para retratar o início do plantio da cana de açúcar na Capitania e as dificuldades para se construir e operar Engenhos: " (...) logo pelo dito senhor Vasco Fernandes Coutinho foi dito que havia seis anos que ele estava na capitania do Espírito Santo e Terras do Brasil o maltratara muita guerra com os infiéis e idólatras da terra com gente que lá tinha e lhe mataram parte dela e feriram muitos e maltrataram e suas vidas correram muito risco e seus os que ficaram começaram a plantar canaviais para açúcares e por não ser poderoso para fazer engenhos para fazer o dito açúcares pelas muitas despesas que feito tinham não tinha pessoas que destes reinos lhe o apoiasse para proverem de oficiais para fazerem os ditos açúcares e engenhos por serem muitos os que requeriam o tal mister e a maior parte dos ditos oficiais não usa vir nestes reinos e ser necessário mandar por eles a ilha da Madeira o que requeriam muitas despesas e pelos desejos que ele tem de a povoar para nela se celebrar e fazer o culto divino da nossa santa fé católica e aproveitar e trazer os idólatras e gentios a ela e fazer serviço a Deus e a el Rei nosso senhor e assim por se temer da pouca gente que tinha e os gentios serem muitos e estarem dentro da terra os tornarem a guerrear e portanto e por a terra ser nova e incerta e desabitada de cristãos e duvidosa (...).

Após todo o arrazoado, segue o trecho da doação em si. Importante salientar que Brás Teles de Menezes já era um "empresário" envolvido com a exploração e o comércio de açúcar nas ilhas portuguesas do Atlântico, conforme se infere de vários documentos arquivados na Torre do Tombo em Portugal. Não custa lembrar, também, que o primeiro navio que embarcou açúcar exclusivamente do Espírito Santo para Portugal, em 1545, era de sua propriedade. O instrumento concede à Brás Teles, já citado, e aos seus "associados" Francisco Sernige e Diogo Fernandes, este um mercador natural da cidade de Viana, e aquele um mercador natural da cidade de Lisboa, "a terra de sesmaria deste dia para sempre", bem como lhes aforava "a exploração da força de certas águas" para a construção de um engenho. E, quando localiza a Sesmaria dada aos três "sócios", o documento traz um "fato novo". Assim está o trecho que localiza a sesmaria doada: " (...) cortando direto ao sul e toda a mais terra que houver até o rio dos gajonases a que ora põe o nome de rio da Victoria assim (...)".

A tradição regional reza que, em 1551, uma vitória dos colonos sobre os indígenas foi o motivo para se mudar o nome da Vila recém fundada na Ilha de Santo Antônio, que tornar-se-ia a nova sede da Capitania. Assim, surgia a Vila de Nossa Senhora da Vitória, núcleo formador da atual Cidade de Vitória. Teixeira de Oliveira, em sua obra, demostrou através de documentos primários que a Vila de Victoria já existia pouco antes, em 1550. Assim, foi provavelmente nessa última data que Vasco Coutinho elevou a primitiva povoação à categoria de Vila e, ato contínuo ou não, transferiu a sede da Capitania da Vila do Espírito Santo (atual Vila Velha) para Vitória.

O instrumento de doação que ora tratamos, porém, traz uma nova informação: uma vitória anterior à 1550 ou 1551, que serviu como fundamento para se mudar o nome do que até então era chamado de "rio dos Gajonases" (provavelmente corruptela do termo gentílico "guaianases", muito comum na época para classificar os tupis que habitavam partes do litoral) que era, possivelmente, o nome primeiro que os colonizadores deram à baía de Vitória. Importante lembrar que a baía interna de Vitória era chamada de "rio" nos primeiros séculos de existência da Capitania. Desse modo, a ideia de se dar o nome de "Vitória" à uma região geográfica na Capitania é anterior à 1540, quando foi celebrado o instrumento de doação da Sesmaria. O que nos faz presumir que a vitória que os colonizadores portugueses obtiveram sobre os silvícolas locais também ocorreu antes desta data.

Observo, porém, que a cognominação do "rio da Victoria" não significa que o arraial, ou povoado, que viria mais tarde a ser batizado de Vitória, tenha sido formado antes de 1540, embora tal presunção seja verossímil. A preocupação de Vasco Coutinho em "corrigir" o instrumento de doação da Ilha de Santo Antônio, feita em retificação na "carta de doação" também em 1540, no que toca à questão dos povoados, é um indício de que pouco antes, ou depois, dessa "vitória", tenha sido formado o arraial de Duarte de Lemos nas terras de sua sesmaria, na atual ilha de Vitória. Acredita-se que a formação daquele arraial tenha ocorrido entre 1537 (doação da Ilha de Santo Antônio à Duarte de Lemos) e 1540 (retificação da referida carta de doação).

Por fim, quando da ratificação do instrumento de doação da sesmaria à Brás Teles, surge também uma informação que serve para sacramentar a versão de que Ana Vaz, companheira de Vasco Coutinho, estava na Capitania do Espírito Santo antes de 1540. Não podemos, porém, afirmar que ela tenha chegado na primeira "expedição" que chegou na Caravela Glória, em 1535. De todo modo, fica confirmada a versão de que Vasco Coutinho e Ana Vaz estavam juntos durante a primeira estada de Vasco no Espírito Santo, entre 1535 e 1540, e que sua esposa, Maria do Campo, já conhecia tal fato em 1540, pois já havia acionado judicialmente o marido que era "querelado". Assim está o trecho que trata da questão do adultério de Vasco Coutinho: "(...) e porquanto ele tinha procuração de Dona Maria do Campo sua mulher e ora ausente por ser dela querelado por lhe cometer adultério estando ele no Brasil e para este concurso ser firme e por ser feito bom proveito (...)".

Termino aqui esse artigo, embora saiba eu que os elementos presentes no documento tratado podem ser ainda muito mais e melhor explorados. Destarte, por se tratar de um pequeno artigo, resolvi abordar apenas os temas que mais me chamaram a atenção, e que entendi serem os mais relevantes para a História Geral do Espírito Santo, em uma primeira leitura.

Gerson Moraes França

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quarta-feira, 9 de julho de 2014

A Construção do Mito da Origem Antiga



Vez por outra esbarro em obras, normalmente gerais, tratando da história local de um Município e que buscam, também de forma geral e algumas vezes superficial, a "origem histórica" da localidade. É o fetiche da origem, que está firmemente arraigada em nossa concepção linear de historia. E nas considerações sobre essa origem, encontramos muitas vezes teses sem o mínimo respaldo documental. Comumente isso ocorre quando uma pessoa resolve "positivar a tradição", ou até por simples presunção carente de fundamento. E daí ocorre uma "bola de neve", com os escritores posteriores reproduzindo os que o precederam. E, de tanto repetir-se a mesma equivocada história, cria-se uma veracidade fictícia, respalda por "antigos escritores" que iniciaram o "erro". Não busca-se mais revolver o que deu "origem àquela história da origem", pois ela se torna uma verdade sedimentada e inconteste. E, algumas vezes, mexer com isso até se torna uma espécie de "sacrilégio".

Abro um parênteses para aglutinar dois fatores que correm, quase sempre, "colados" com esse fetiche da origem. É a questão da "antiguidade" e da "nobreza". Busca-se, o máximo possível, fazer a "ponte" entre a origem e a antiguidade; quanto mais antigo, mais "legal". Idem em relação a nobreza: quanto mais nobre (e, aqui, considero a palavra "nobre" de modo extensivo, podendo ser uma personalidade "famosa", religiosa, civil, ou até mesmo um "povo ordeiro"), mais "bacana". Tenta-se colar, ao máximo, a origem com um, ou com ambos fatores.

Vou citar alguns exemplos, sem citar os autores e as obras pois, nesse "meio intelectual", costuma-se muito facilmente ferirem-se os egos. E, como esse pretenso "artigo" não é acadêmico, não há porque especificar as obras. Todos os Municípios citados são do Estado do Espírito Santo, pois posso falar com mais propriedade.


Um exemplo é a história do Município de São Mateus. Vá até a Wikipedia e constate: São Mateus é, de acordo com o site, "o segundo município mais antigo" do Espírito Santo. Fundamenta-se essa tese em uma obra da História Geral do município que, por sua vez, reproduziu uma presunção que firmou-se durante a década de 1930 e 1940. Essa presunção não pauta-se em nenhum documento primário contemporâneo, nem em algum documento "secundário" com data menos distante.

Essa presunção é a seguinte: por volta de 1544, os colonos que estavam estabelecidos na atual baía de Vitória debandaram, e refugiaram-se em Capitanias vizinhas, ante o ataque dos silvícolas. Daí um pequeno grupo em fuga teria se estabelecido na região onde mais tarde surgiria São Mateus: "(...) Alguns desses colonos poderiam ter rumado para o norte, em direção ao rio São Mateus." Dessa presunção, sem base documental alguma, ter-se-ia construído o "mito da origem antiga" de São Mateus, conferindo-lhe a antiguidade tão "regozijantemente" desejada. E dava-se à essa origem antiga uma continuidade comunitário-social que seguiria, linearmente, até o presente.

Nada mais equivocado. Primeiro, por uma questão de poucos anos: em 1545 os documentos primários demonstram que a Capitania do Espírito Santo estava "indo de vento em popa". As guerras mais cruentas entre o gentio e os colonos, que quase colocaram a Capitania a perder, teriam ocorrido, segundo se infere dos documentos contemporâneos e de alguns pouco posteriores, em algum momento entre os anos de 1546 e 1549. Mas, até aí, tudo bem. Bastaria "esticar" a data, e mudá-la de 1544 para, por exemplo, 1547. Continuaria a origem tão antiga quanto, e com base naqueles colonos que fugiram da baía de Vitória.

O "problema" surge, porém, com o silêncio posterior da falta de documentos e, mais significativo, com o silêncio posterior dos documentos existentes. Em 1558, por exemplo, em uma expedição que foi razoavelmente documentada para a época, os portugueses estiveram no Rio Cricaré, que é o atual São Mateus, e pelejaram com os índios que habitavam o local. Saíram-se derrotados os portugueses que, ante ao grande número de silvícolas, tiveram que deixar o local. Não há nenhum relato documental de que havia algum grupo de colonos por ali em 1558. E, caso houvesse, acredito ser muito difícil que não tivessem sido citados. De todo modo, considerando-se que havia colonos por ali nessa época, é muitíssimo improvável que tenham permanecido após a derrota da expedição portuguesa.

Assim, mesmo que houvesse por ali algum grupo de colonos refugiados, eles certamente não teriam permanecido. É preciso '"ler o silêncio"; e o silêncio posterior, até que por ali passasse o Padre Anchieta, é, em minha opinião, bem revelador. Posso ainda citar outros fatores que desabonariam uma suposta presença de portugueses estabelecidos no São Mateus nas décadas de 1540 e 1550, mas aí vou estender demais o presente artigo.

Mais tarde, e aí sim, temos um relato mais confiável de presença de portugueses no Cricaré. Foi quando o Padre José de Anchieta esteve por ali e celebrou uma missa para uns náufragos que ali estavam, além de "criar" um aldeamento com os índios da região. Esse fato teria ocorrido em 1566, embora essa data ainda seja um pouco controversa. De todo modo, nem assim poderíamos dizer que, a partir daquele momento, colonos portugueses ter-se-iam estabelecido no Cricaré. Primeiro, porque eles eram náufragos, e nada nos faz presumir que se fixaram na região. Segundo, porque em uma viagem documentada e datada de 1583, do Padre Fernão Cardim, o mesmo cita a aldeia de São Mateus mas informa que seus habitantes são todos índios. Ele não encontra portugueses estabelecidos por ali. Destarte, com ou sem colonos portugueses, nessa data há prova documental da existência da aldeia de São Mateus. E, aí sim, poderíamos adotar a tese de continuidade comunitário-social que, incrementada mais tarde por levas de colonos que se estabeleceram em São Mateus no século XVIII, conferiria o liame que une o passado ao presente.


Outro exemplo é a história do Município de Mimoso do Sul. Algumas poucas obras locais, também gerais, debruçaram-se sobre o tema da "origem". E, novamente, o fetiche da origem se intercala com as pretensões fatoriais da antiguidade e da nobreza. Assim como em São Mateus, deseja-se distender a origem para o "máximo de passado" possível, e conferir um "espírito de nobreza" com a participação dos jesuítas. Diz-se que, em 1581, Anchieta teria fundado a Capela de Nossa Senhora das Neves, no atual Município de Presidente Kennedy; e que em 1587 teria subido o atual rio Itabapoana e fundado um aldeamento para os índios da região, que foi chamado de "6ª Aldeia de Camapuana". Este suposto aldeamento ficaria na região das primeiras cachoeiras do rio, em cuja margem norte está situado hoje o Município de Mimoso do Sul.

Tratei desse tema anos atrás, ainda imbuído de certa "contaminação intelectual" pela história que aprendi desde novo. Quem quiser ler, basta clicar no link abaixo:

O desejo era conferir antiguidade e nobreza à origem, que seguiria, assim como em São Mateus, por uma "evolução linear" comunitário-social que descambaria na criação do Município de São Pedro do Itabapoana, cuja sede mais tarde foi transferida para a atual Mimoso do Sul. Nada, também, mais equivocado.

Primeiro, porque hoje é melhor conhecida a fundação de Nossa Senhora das Neves e da Fazenda da Muribeca, que pertenceu aos jesuítas. A tese da origem quinhentista de Neves e Muribeca foi anterior às pesquisas feitas por Serafim Leite e por Alberto Lamego; e ambos são bem concisos e seus fundamentos são, em primeira análise, incontestes, pois são fulcrados com ampla base documental primária. Neves e Muribeca tiveram início nas décadas de 1620 ou 1630. Bem depois, portanto, da suposta "origem" quinhentista. Esse "equívoco" foi "construído" no final do século XIX, por César Augusto Marques, em seu Dicionário Histórico sobre o Espírito Santo, talvez fundamentado em alguma tradição oral local; a transmutação do nome do Padre André de Almeida, para "Padre Almada", é um indicativo disso, embora não conclusivo.

Segundo, porque não há registro documental algum, contemporâneo ou pouco posterior, da existência da tal "6ª Aldeia de Camapuana", e nem mesmo no século XVII e XVIII, quando os Jesuítas administravam a grande Fazenda da Muribeca. Essa suposta aldeia, ao que parece, nunca existiu. Eu possuo uma tese sobre a "construção" desse "mito de origem", mas não posso provar, ainda, com certeza. Mas, imagino, foi construída com base em uma das Cartas Ânuas que os jesuítas enviavam para seus superiores. Há uma delas, datada da década de 1580, que dizia existirem dez aldeias de índios no Espírito Santo, duas delas sob a administração direta dos padres. Das oito restantes, quatro estavam ao sul daquelas duas citadas, e quatro estavam ao norte. Tudo indica, por incrível que pareça, que o "construtor" da "6ª Aldeia de Camapuana" simplesmente fez uma conta: duas aldeias de padres, mais quatro ao sul, igual à seis; e como o Itabapoana, na época chamado de Camapuana, é o último rio ao sul, deveria abrigar a última dessas aldeias. Portanto, simples: na falta de um nome, cria-se um. E veio à luz a suposta "6ª Aldeia de Camapuana".

Claro que a tese acima exposta ainda carece de fundamento mais sólido. Destarte, independente de ter existido, ou não, a suposta "6ª Aldeia de Camapuana", há prova documental de que Neves e Muribeca são do século XVII; não sendo, portanto, quinhentistas, como quiseram alguns. Bem improvável que uma aldeia encravada no curso médio do Itabapoana existisse antes de Neves e Muribeca. E, em minha opinião, considerando a grande minúcia dos jesuítas ao escreverem seus relatórios e cartas, o absoluto silêncio em relação à uma aldeia de índios no Itabapoana é bem revelador. Simplesmente não há documento primário algum, jesuíta ou não, que cite a tal aldeia.


Por fim, trataremos agora da história do Município de Castelo. No início do século XX surgiu uma "teoria da conspiração" com base em literatura "jesuitofóbica", que entendia que os jesuítas eram grandes mineradores que queriam monopolizar toda a extração aurífera da região do Caparaó e das conhecidas Minas do Castelo. Essa teoria "refinou-se" com o tempo, deixando para trás a jesuitofobia, mas mantendo a tese. Assim, segundo essas obras, inclusive segundo uma obra bem recente, as Minas do Castelo teriam sido exploradas clandestinamente pelos jesuítas já no século XVI. Desse modo, vislumbra-se, novamente, o "fetiche da origem" baseada em maior antiguidade (século XVI) e em nobreza (jesuítas).

Abrindo um adendo, foi por coincidência que os três exemplos que resolvi escrever possuem os jesuítas como parte do "fator nobreza". Mas, no caso de Castelo, esse fator é fictício, como irei demonstrar. Em São Mateus e em Mimoso do Sul buscou-se dar maior elasticidade à antiguidade; mas, de fato, foram os jesuítas que "fundaram" a aldeia de São Mateus e a Fazenda da Muribeca. Em Castelo, porém, para além de intentar-se conferir maior antiguidade, intricou-se a origem com uma suposta "teoria da conspiração" de "jesuítas clandestinos".

Segundo essa tese de origem quinhentista jesuítica da história de Castelo, os jesuítas, já em 1551, teriam clandestinamente iniciado a prospecção de ouro na região. Assim, no mesmo ano em que se estabeleceram em território capixaba, e antes mesmo de fundarem o aldeamento de Reriritiba (atual cidade de Anchieta), os jesuítas teriam dado início à exploração de ouro em uma localidade no interior do Espírito Santo. Não há prova documental alguma que fundamente essa tese; mas, ante a falta de documentos, os criadores dessa proposta se justificam de modo muito simples: não há documentos porque a atividade era clandestina. Assim fica difícil, não é?

Até o final do século XVII, quando foram feitas as primeiras descobertas de ouro em Minas Gerais, foram dezenas e dezenas as expedições despachadas para o sertão em busca de pedras e de metais preciosos. Algumas pouco providas, outras com mais recursos; algumas "oficiais", outras "oficiosas". Enfim, desde o litoral de Porto Seguro, passando pelo Espírito Santo e indo até São Paulo, foi um "sem número" de entradas ao sertão. E somente no finalzinho do século XVII foi que um paulista de Taubaté conseguiu descobrir ouro que, inclusive, foi "apresentado" em Vitória pelo "bandeirante". Já nas primeiras "descobertas"  a "coisa sempre vazava". Era literalmente impossível  guardar segredo sobre a descoberta de ouro no sertão que mais tarde seria Minas Gerais; mas os criadores da teoria da origem jesuíta quinhentista da história de Castelo acreditam que foi possível aos jesuítas lavrarem clandestinamente ouro, em segredo, durante cerca de 150 anos, sem serem "molestados" pelas autoridades que, "coniventes", lesavam o fisco "numa boa" e mantinham o "segredo". E isso na região de Castelo, que era muito mais próxima do litoral do que as "brenhas mineiras". "Sério, cara"...

Essa teoria se relativizou em obras mais recentes, tamanha era a dificuldade de mantê-la. Assim, com base em um livro tombo da Paróquia de Itapemirim, "resgatou-se" a "verdadeira" história dos jesuítas nas Minas do Castelo. Segundo esse Livro Tombo, em 1625 havia na região de Castelo quatro aldeamentos indígenas, chamados de "Missões Jesuíticas dos Montes do Castelo". Essas missões tinham três mil habitantes. Ante a falta de registros em documentos primários, porém, manteve-se a tese de clandestinidade. Pois observem, leitores: não há nenhum registro primário, ou pouco posterior, da existência desses aldeamentos indígenas fundados pelos jesuítas em Castelo. Não há registro por parte de nenhuma autoridade capitanial ou superior. Nem mesmo os jesuítas, que registravam até quantas arrobas de presunto defumado haviam adquirido para uma Casa qualquer, deixaram registro sobre a existência desses supostos aldeamentos. Mas um Livro Tombo da Paróquia de Itapemirim, escrito no século XIX em estilo narrativo, foi usado como fundamento para manter a tese, modificando-se somente a data do século XVI para o século XVII.

Em minha opinião, o livro tombo da Paróquia de Itapemirim não deveria ser usado como fundamento "ao pé da letra". Sabe-se, por fontes quase contemporâneas, que os mineradores de Castelo abandonaram a região, na segunda metade do século XVIII, e migraram para a região de Itapemirim. Nesse caso, o livro tombo poderia ser uma espécie de registro das memórias que certamente ainda existiam; mas ele precisaria ser tomado com critério, usando-se da crítica das fontes e "peneirando" o que poderia ser anacrônico ou "irreal". Enfim, a única fonte que fundamenta a tese jesuítica mais recente da fundação das missões das Minas do Castelo é um livro tombo escrito quase duzentos anos depois da suposta fundação.

Com base no supra exposto, acredito que a história "tradicional" escrita que foi fundamentada em documentos primários contemporâneos aos fatos é, ainda, a mais confiável e, certamente, é a verdadeira. As Minas do Castelo foram "descobertas" no início do século XVIII por um "bandeirante" paulista, na "esteira" de movimentos semelhantes de descobertas auríferas que, das primeiras regiões mineradoras da atual Minas Gerais, se espalhara por outras regiões da própria Minas Gerais, e por outros lugares muito mais distantes, como Mato Grosso e Goiás. O descobridor das Minas do Castelo, o taubateano Pedro Bueno Cacunda, deixou razoável relato sobre suas descobertas e atividades, que não devem ser postas em cheque sem uma fundamentação muito bem arrazoada. E, pedindo escusas aos defensores da tese jesuíta clandestina para a "fundação" de Castelo, não podemos considerar seus fundamentos como razoáveis ou confiáveis. Devemos, mais uma vez, "ler o silêncio" e confiar nas fontes primárias existentes.


Concluindo.
Tentei, juro que tentei, tecer um texto pequeno, objetivo e conciso, espelhando o que desejava expôr. Mas, parece, ser prolixo é minha sina. Destarte, fiz o que pude para demonstrar que esse "fetiche" pelas origens, muitas vezes combinado com o desejo de se dar maior antiguidade à datas e nobreza aos agentes, acaba por ser prejudicial à História. Sedimentam-se verdades que distorcem o real, e atrapalham estudos sérios sobre a História local, tanto municipal, quando regional. Isso porque faz-se necessário um esforço do pesquisador para "desconstruir" uma suposta realidade que, em verdade, foi "montada" e "mitificada".

Gerson Moraes França

quinta-feira, 26 de junho de 2014

A Imprensa em São Pedro do Itabapoana

Por Gerson Moraes França

São Pedro do Itabapoana. Outrora com foros de cidade, atualmente tombada como patrimônio histórico do Estado e anfitriã de famoso festival de sanfona e viola. Foram esses os dois principais marcos da celebração de São Pedro como sítio histórico. O tombamento em 1987 e o festival em 1998. E, desde então, muito se falou sobre São Pedro.

Desde que me interessei por estudar São Pedro do Itabapoana que vejo certos exageros sobre seu passado. Não que os são-pedrenses não tiveram um passado próspero e glorioso. A ex-sede municipal teve, realmente, grandes momentos. Mas, no afã de promover o sítio histórico, deparei-me algumas vezes com a elevação de São Pedro à patamares deveras fantasiosos.

A primeira coisa que havia me chamado a atenção, nesse sentido, tinha sido a "questão" do calçamento em pé-de-moleque, que é um dos principais atrativos e belo resquício do seu passado. Os jornais publicavam, no início da década de 1990, que o antigo calçamento havia sido construído por escravos. Pesquisei à respeito, e consegui provar que o calçamento em pé-de-moleque foi construído no início do século XX, sem usar mão de obra servil. Isso foi em 2005. Ainda demorou uns poucos anos até que os jornais parassem de cometer aquele erro. Mas pararam. E, por falar em jornais...

Um outro assunto que, em meu entender, é um exagero para glorificar o passado, é a questão da imprensa local. São Pedro teve diversos jornais, com boa circulação no sul do Estado, isso é verdade. Mas, ao apresentar o tema, os divulgadores e intermediários culturais caem em exagero, dizendo sempre assim:
"- São Pedro tinha mais de dez jornais!".
Isso leva o visitante a pensar que, em São Pedro, chegaram a circular cerca de uma dezena de jornais ao mesmo tempo. E isso não é correto. Em São Pedro houve momentos que circularam, na mesma época, até três jornais; o que, com certeza, é abonador para uma pequena cidade do sul do Estado do início do século XX. E é sobre a história da imprensa em São Pedro do Itabapoana que, agora, vou discorrer.

Uma oficina tipográfica antiga


A IMPRENSA EM SÃO PEDRO DO ITABAPOANA

Ao findar do século XIX, poucas eram as cidades e vilas que tinham jornais locais. Montar e manter um jornal era trabalhoso e custoso. Nos dias de hoje, basta apenas um abnegado jornalista escrever e editar seu jornal em um computador, arrumar alguns anunciantes, remeter para uma gráfica e voilà! Está pronto um jornal.

No final do século XIX e inicio do século XX não era assim tão simples. Para publicar um jornal era necessário ter todo um equipamento de tipografia (typographia, como era escrito antigamente...) que, muitas vezes, era importado. Era necessário ter linotipos, clichês e fazer a manutenção das máquinas. Era necessário ter profissionais para editar e, literalmente, "montar" cada palavra do que seria publicado. O papel também era, muitas vezes, importado. Era necessário ter ou alugar uma casa para abrigar as máquinas, os tipos e o papel. O trabalho era grande, e os custos para sua manutenção eram elevados. Por isso, pouquíssimos eram os jornais que conseguiam se manter apenas com anunciantes privados e com a receita de seus assinantes e de suas vendas.

Desse modo, no Espírito Santo, a maioria dos jornais dependia de subvenções governamentais ou privadas para manter sua circulação. Os jornais, assim, eram antes de tudo órgãos de governo ou de partido. Especialmente nas pequenas cidades e vilas do interior.

O Município de São Pedro do Itabapoana foi instalado em novembro de 1890, desmembrado de Cachoeiro do Itapemirim. Até então, os assuntos locais eram tratados principalmente pelos jornais cachoeirenses e campistas. Os jornais do Rio de Janeiro, então capital da República, e de Vitória, capital do Estado, também circulavam em São Pedro. Os do Rio de Janeiro eram os que mais tinham assinantes na região.

Após a instalação do Município e da Comarca, logo se tornou patente a necessidade de se criar um órgão de imprensa local. A instabilidade política reinante após os primeiros anos da proclamação da República e as mudanças de governo que, em curto lapso temporal, se sucederam, atrasaram a execução da ideia. Somente quando foi empossado o primeiro governo constitucional são-pedrense, em dezembro de 1892, e quando se sedimentou a estabilidade político-institucional local, é que se "criou" o ambiente favorável à empreitada.

O PRIMEIRO JORNAL

Para reunir o capital necessário para a aquisição da tipografia e dos outros apetrechos necessários para se editar um jornal, foi formada uma associação anônima, cujos membros se tornaram acionistas da empresa. Um dos principais acionistas e abnegado pela empreitada foi o Capitão Manoel Teixeira de Oliveira, vulgarmente conhecido como Neca Teixeira, que escreveria futuramente seu nome nos anais da história como um dos maiores fundadores de jornais do Estado.

E em 30 de setembro de 1894, um domingo, circulou o primeiro número do periódico hebdomadário (semanal) O MUNICÍPIO, órgão imparcial e propriedade de uma associação. Seu primeiro redator-chefe foi o ex-promotor de justiça da Comarca, bacharelando em Direito, Gabriel Lessa. Antônio Pedrosa, tipógrafo, que administrou a oficina de "O Cachoeirano", exercia também a gerência. Posteriormente, o professor Manoel Antônio Franco assumiu como redator-chefe. A existência desse jornal foi, porém, curta. Em 1897 suspendia sua publicação, para nunca mais voltar. Ao que parece, sua extinção deveu-se à divergências políticas entre os principais acionistas.

Primeiro número de O Município (Arquivo de Renato Pires Mofati)

SURGE A EVOLUÇÃO

Em 02 de janeiro de 1898, domingo, é publicado o primeiro número do segundo jornal de São Pedro do Itabapoana, também semanário, A EVOLUÇÃO, órgão do Partido Construtor Autonomista. Seu primeiro proprietário foi o agora Coronel Manoel Teixeira, e seu redator o professor Manoel Franco. Em agosto do mesmo ano, o jornal passou a ser propriedade de uma associação, tornando-se redatores os Drs. Olegário Ribeiro da Silva e José Coelho dos Santos. Em setembro de 1899 o jornal passou à propriedade de uma nova empresa, e o professor Manoel Franco reassumiu a redação. A tiragem do jornal era de 500 exemplares.

Novamente, divergências políticas serão responsáveis pelo fim desse jornal. Dessa vez, dentro do próprio Partido Construtor Autonomista local. Em 1900, Manoel Franco entra em divergência com o Juiz da Comarca e com o Coronel Neca Teixeira. Outras cisões e dissidências abrem-se no seio do Partido.

Na madrugada do dia 09 de novembro de 1901, um sábado, antes que fosse ao prelo a edição que seria publicada no dia seguinte, o Coronel Neca Teixeira, à frente de numeroso grupo de capangas armados com carabinas, "invadiu" a cidade e ameaçou Manoel Franco. A polícia não pode agir, pois era reduzido seu efetivo de praças. O Coronel Teixeira "intimou" Manoel Franco à deixar a cidade.

Esse fato foi narrado muitos anos depois por José Olympio de Abreu da seguinte forma:
"Por volta de 1898 ou 1900 era professor público em São Pedro de Itabapoana o campista Manoel Franco, homem inteligente e culto. Montou um jornal com o nome de "Evolução". E logo após os primeiros números rompeu em franca hostilidade com o juiz de direito e promotor público. Certa madrugada, entrou na cidade um carro de bois, coberto por um grande toldo, parando em frente da residência do professor Franco. Pensaram os moradores da cidade que se travava de um carro carregado de mercadorias e que se destinava à estação ferroviária de Itabapoana. Foi surpresa geral quando de dentro do carro saltaram diversos capangas para empastelarem o jornalzinho, culminando a proeza com a deportação do professor".

Paradoxalmente, um dos maiores expoentes da imprensa, como fundador que seria de diversos jornais no Estado, expulsou e calou um dos mais ativos jornalistas que atuava no Espírito Santo. E assim teve fim o segundo jornal que se publicou em São Pedro do Itabapoana.

Coronel Neca Teixeira


CHEGA O PROGRESSO

No dia 13 de outubro de 1902, uma segunda-feira, é publicado o primeiro número do novo semanário local, O PROGRESSO. Seu segundo número seria publicado no dia 19 de outubro, um domingo, dia que costumava sair. Seus primeiros proprietários foram os irmãos José e Ângelo Baptista do Nascimento. José Baptista foi seu primeiro redator. Inicialmente era neutro em questão política. Em abril de 1903 o coronel Neca Teixeira torna-se sócio-proprietário, Em 21 de abril de 1903 tornou-se expressamente órgão do Partido Construtor Autonomista, e começou a publicar os atos oficiais das Câmaras Municipais de São Pedro do Itabapoana e de São José do Calçado. Pouco depois o Dr. Henrique O'Reilly de Souza tornou-se seu redator-chefe.

Em abril de 1904, findo o contrato que mantinha com a Câmara Municipal, teve sua publicação suspensa. Reapareceu no dia 01 de maio do mesmo ano. Tornou a suspender sua publicação, reaparecendo em junho de 1904, ainda como órgão do Partido Construtor Autonomista. Em julho do mesmo ano o coronel Neca Teixeira adquiriu a propriedade da tipografia e do jornal, que passou à ser órgão da dissidência do PRC local até 1905, quando mudou seu nome para A Reforma e tornou-se órgão oposicionista.

O Progresso (arquivo da Biblioteca Nacional)

PELA PRIMEIRA VEZ,
DUAS TIPOGRAFIAS

No dia 02 de junho de 1904, uma quinta-feira, é publicado o primeiro número de O REBATE, órgão do Partido Construtor Autonomista, propriedade de uma sociedade anônima. Seu primeiro redator foi o Dr. José Coelho dos Santos, e seu primeiro gerente foi João Egídio Figueira. O Rebate passou a ser o órgão que publicava os atos oficiais da Câmara de São Pedro do Itabapoana, situação que perdurou até o seu primeiro fechamento em 1912.

Em 1905 tornou-se órgão do Partido Construtor, mantendo-se como veículo que publicava os atos oficiais do governo municipal. No final de 1908, tornou-se órgão do Partido Republicano Espírito-santense, novo partido criado que absorveu o Partido Construtor. Desde 1909 que, embora controlando a linha editorial, o governo municipal passou a ter pequenos problemas com a associação proprietária do jornal, controlada pelo Dr. José Coelho dos Santos. Em setembro de 1912, um defeito em suas máquinas interrompeu a publicação de O Rebate por dois meses, que retornou apenas no dia 07 de novembro do mesmo ano.

Em janeiro de 1913 tornou-se órgão dos interesses do Governo Municipal. Suspendeu suas publicações no dia 30 de março de 1913.


O Rebate (fonte: Milton Teixeira Garcia)

À esquerda, a casa onde funcionava O Rebate (fonte: Grinalson Medina)
A rua Jerônimo Monteiro, endereço do jornal, era chamada de "rua do Rebate"

DO PROGRESSO À REFORMA

O semanário O Progresso, de propriedade do coronel Neca Teixeira e tendo como redator-chefe o Dr. O'Reilly de Souza, tornou-se oficialmente órgão oposicionista local na edição do dia 13 de julho de 1904, uma quarta-feira. Era órgão do Partido Construtor Autonomista, mas de oposição ao Governo Municipal.

No dia 26 de janeiro de 1905, uma quinta-feira, mudou seu nome para A REFORMA. Passou a ser órgão da dissidência do Partido Construtor Autonomista e se tornou órgão da oposição ligada ao ex-presidente (governador) do Estado, Muniz Freire. O coronel Neca Teixeira manteve a propriedade do jornal até o seu fechamento, em 1908. Apoiou eleição de Jerônimo Monteiro, e aderiu ao Partido Republicano Espírito-santense quando de sua fundação no final de 1908. Sua tipografia foi, em janeiro de 1909, transportada para a cidade de Benevente (atual Anchieta), onde o coronel Neca Teixeira fundou o jornal "A Opinião".

No início de 1907, quando na oposição, suas oficinas foram empasteladas e o jornal manteve-se por um período com sua publicação suspensa. Voltou a circular em 23 de maio de 1907.


A Reforma, na oposição (fonte: Milton Teixeira Garcia)


JORNAL OFICIAL

Desde a fundação das primeiras folhas da imprensa local que os jornais eram propriedade privada, de pessoas físicas ou de associações, sendo, em primeiro lugar, órgãos de partido. Os governos utilizavam-se desses jornais para publicarem os seus atos oficiais, ajudando no financiamento dos periódicos partidários que, na ocasião, estavam no poder. Assim foi com O Município, com A Evolução, com O Progresso e com O Rebate.

Foi sob o governo de João Lino da Silveira que se pôs em prática uma ideia que não era nova, mas que esbarrava no interesse dos partidos que, então, estavam no poder. Problemas em relação à associação que controlava o jornal O Rebate fez com que o governo municipal investisse na aquisição de uma tipografia própria.

E assim, no dia 03 de maio de 1913, um sábado, foi fundada A SEMANA, órgão oficial da Câmara Municipal. Seu Redator-chefe e seu Gerente eram indicados pelo presidente da Câmara, e necessitavam de aprovação pelo Plenário. Desse modo, esse jornal foi o que teve a maior duração em relação a todos os outros pré-existentes.

Foi publicado ininterruptamente até o dia 12 de outubro de 1930, quando suspendeu suas atividades em virtude da revolução de 1930. Encerrou a sua história com 741 números publicados. Com o fechamento das Câmaras Municipais e a transferência da sede municipal para o distrito de Mimoso, então rebatizado com o nome de João Pessoa, suas maquinas foram transportadas para a nova sede, onde deram origem ao jornal A VOZ DO SUL, de propriedade da Prefeitura.

O primeiro número de A Voz do Sul, órgão oficial da Prefeitura de João Pessoa, foi publicado no dia 28 de dezembro de 1930. Seu primeiro Gerente foi Julio Rainha, e seu primeiro Redator-Chefe foi o Dr. Nicodemus Cysne.

O jornal oficial A Semana (fonte: Milton Teixeira Garcia)


VEIO A LUZ

A tipografia do jornal O Rebate ficou alguns anos fechada, até que foi fundado o jornal A LUZ. Seu primeiro número foi publicado no dia 03 de julho de 1915, e seu diretor era o Dr. Argeu Coelho dos Santos, filho do Dr. José Coelho. Semanário que saia aos sábados, era órgão liberal e de oposição. Suspendeu suas publicações no final de fevereiro de 1916, quando foi "re-fundado" o jornal O Rebate. Com o novo fechamento deste, A Luz retomou suas publicações no dia 06 de junho de 1916. Encerrou suas atividades no início de 1917.

A Luz (Arquivo da Biblioteca Nacional)

O NOVO REBATE

O jornal O Rebate encerrou suas publicações no final de março de 1913, quando terminou o contrato que o Governo Municipal mantinha com a Associação proprietária do periódico. O jornal O REBATE foi "re-fundado" no dia 24 de fevereiro de 1916, quando o periódico foi relançado como órgão da oposição. O primeiro número dessa nova e curtíssima fase foi publicado no dia 04 de março do mesmo ano, e suas atividades se encerraram no final de maio de 1916. Era semanal. Seu redator-chefe era o Dr. José Coelho dos Santos, e seu redator-gerente era o Dr. Arthur Veloso da Silva.

OUTROS JORNAIS

Houve ainda outros jornais sem muita periodicidade, que eram editados nas tipografias dos principais jornais. Por se tratar de folhas avulsas e dependentes do jornal "principal", entendemos que não podem ser classificados como jornais "independentes", como o foram os acima elencados. De todo modo, interessante citar alguns deles.

A PÁTRIA, periódico mensal fundado em 11 de setembro de 1899, foi o primeiro desses jornais que eram impressos nas oficinas de outro jornal. No caso, era editado nas oficinas de A Evolução, sendo um jornal literário e noticioso cujos redatores eram jovens estudantes.
O BINÓCULO, semanário fundado em 04 de agosto de 1907, órgão crítico e noticioso, era impresso nas oficinas de A Reforma. Seus colaboradores eram importantes jornalistas locais.
O RISO, fundado em 20 de setembro de 1916, órgão crítico e noticioso, mensal, era impresso nas oficinas de A Luz.
A GAITA e A LÍNGUA, o primeiro noticioso e literário mensal fundado em 13 de outubro de 1926, e o segundo crítico e literário semanal fundado em 03 de maio de 1927, eram impressos nas oficinas de A Semana.
Todos esses jornais impressos nas oficinas dos principais periódicos tiveram existência muito curta, e sua periodicidade era instável.

A Voz do Sul, de João Pessoa (Mimoso)
(Fonte: Milton Teixeira Garcia)


EM MIMOSO

Antes da fundação do jornal A Voz do Sul, o distrito de Mimoso também viu surgir alguns periódicos que tiveram, porém, curta duração. O primeiro foi O MIMOSENSE, fundado em novembro de 1923, cujo diretor era Santino de Oliveira. No ano seguinte suspendia sua publicação. Depois surgiu o IDÉA NOVA, fundado em 1925, também extinto pouco depois. Por fim, no dia 11 de fevereiro de 1928 foi fundado O REBATE, jornal independente impresso nas oficinas da Tipografia e Papelaria Gomes & Campos, que manteve sua publicação até outubro de 1930, embora sem periodicidade regular. Em julho de 1930 circulava o jornal O ESTÍMULO, de curtíssima duração. Em 1933 foi fundado o jornal LIBERDADE, de oposição, que também teve curta existência. O jornal a Voz do Sul manteve suas publicações até o final da década de 1960.

CONCLUSÃO

Entre 1894, quando foi fundado o primeiro jornal em São Pedro do Itabapoana, até 1930, quando foi transportada para a nova sede municipal a última tipografia que se mantinha em atividade na cidade, foram mais de quinze títulos de jornais existentes em São Pedro. Em alguns períodos chegaram a circular, simultaneamente, até três títulos de jornais, impressos em duas tipografias.

Entre os anos de 1904 e 1908, e depois entre os anos de 1915 e 1917, circularam quase sem interrupção dois jornais que se "combatiam" politicamente. Os embates entre O Progresso e A Reforma contra O Rebate foram antológicos. Mais tarde, os embates entre A Luz e O Rebate contra A Semana também foram ferrenhos.

É importante salientar que os vários títulos, em tempos diversos, não expressavam novas tipografias. Fundavam-se os jornais, mudavam-se os proprietários ou associações que mantinham os periódicos, mas as oficinas continuavam poucas. As mesmas oficinas que imprimiram O Município (1894/1897), também imprimiram A Evolução (1898/1901), O Rebate (1904/1913 e 1916) e a Luz (1915/1917). As oficinas que imprimiram O Progresso (1902/1904), também imprimiram A Reforma (1905/1908) e, interessantemente, transportadas para outras cidades, imprimiram A Opinião (fundada em 1909, de Anchieta) e O Alegrense (fundado em 1911, de Alegre). As oficinas que imprimiram A Semana (1913/1930), transportadas para Mimoso, imprimiram A Voz do Sul (1930/196?).

O surgimento do primeiro jornal duradouro de Mimoso (então chamada de João Pessoa) em 1930 foi fruto do "roubo da Comarca" e da simples "tranposição" da tipografia da folha oficial de São Pedro para Mimoso. Um periódico de Muqui chegou a publicar: "(...) A Voz do Sul, surgida das cinzas de A Semana, que com a revolução desapareceu (...)".

Assim, leitor, espero que esse artigo, que mais se parece com um ensaio, tenha esclarecido essa "questão" da imprensa, que me atentava a cabeça. Por fim, informo que esse artigo/ensaio não é acadêmico, embora seja sério. As fontes onde pesquisei foram várias, e posso referenciar cada citação ou fundamentar cada conclusão. Os livros de Grinalson Francisco Medina, de Milton Teixeira Garcia e de José Antônio Martinuzzo foram importantes como ponto de partida. O trabalho de Amâncio Pereira, idem. Pesquisas feitas em diversos periódicos antigos possibilitaram detalhar um pouco mais o que os livros acima citados trataram de forma geral. De todo modo, para não estender ainda mais o presente trabalho, decidi não entrar em detalhes específicos demais. Isso ficará para outra ocasião, em trabalho que, também, será mais específico e com recorte temporal menos abrangente.

Gerson Moraes França