quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Reflexões sobre o Estudo dos Povos Indígenas no Espírito Santo.

Reflexões sobre o Estudo dos Povos Indígenas no Espírito Santo.

Nos últimos anos tem sido produzida boa quantidade de trabalhos sobre os povos originários que habitaram (cujos descendentes de alguns desses povos ainda habitam) o Espírito Santo, alguns deles com grande rigor técnico e científico. Esses trabalhos enriquecem nossa historiografia capixaba preenchendo lacunas, conferindo novos entendimentos sobre a dinâmica do contato e elucidando questões controversas.

Estudo e pesquiso o Espírito Santo há mais de trinta anos, em várias temáticas, e já formulei um arcabouço sobre a história dos povos indígenas no atual território do nosso Estado. Teço aqui alguns apontamentos que considero edificantes nesses estudos. Primeiramente, a questão dos epítetos dos grupamentos indígenas: é necessário uniformizar e conjecturar certos termos. Apresento aqui, abaixo, um exemplo que induz o pesquisador em erro:

Os goitacases (com suas diversas grafias) eram indígenas que habitavam o atual norte do Estado do Rio de Janeiro e, possivelmente, pequena porção do sul do atual Espírito Santo. Há hoje certa unanimidade que esses indígenas eram do trono macro-jê, isto é, eram "tapuias" na visão dos povos tupi. Mas encontramos alguns cronistas antigos informando que os goitacases habitavam todo o litoral sul do Espírito Santo. Há um, inclusive, que coloca os goitacases habitando até as proximidades do extremo norte do Estado, vizinhanças do rio Cricaré (São Mateus atual). Claramente há aí algum erro de interpretação ou, então, a atribuição extensiva do termo para povos do tronco tupi que, afirmo com toda certeza, habitavam o litoral sul do Espírito Santo e a região da atual baía de Vitória.

Para entender esses cronistas antigos, é preciso conhecer o seu lugar (tempo, local, formação, aliança, etc) na produção do trabalho, bem como fazer comparações com outras fontes contemporâneas. Não devemos tomar o estudo de um "povo" de forma isolada: é preciso correlacionar e comparar as narrativas com outros documentos de crédito.

Assim, coligindo todas as fontes, fazendo as necessárias críticas e comparações, resta clarividente, para mim, que a população indígena que habitava a baía de Vitória e o litoral sul do Espírito Santo até o Itapemirim (ou suas proximidades) eram povos do tronco étnico e linguístico tupi-guarani. Se, porventura, algum cronista antigo os cognominou de "goitacases" (que é um termo tupi, importante informar), estava conferindo esse epíteto de forma extensiva, talvez fundamentado em algum valor que a palavra representava (que, segundo os tupinólogos, era traduzida como "andantes", ou "errantes", ou ainda de modo mais específico, como "corredores" ou "nadadores").

Assim, teríamos os goitacases étnicos propriamente ditos (os que expulsaram a primeira tentativa europeia de se fixar no litoral do Itabapoana, e que depois mantiveram-se hostis ao contato no litoral entre o rio Paraíba do Sul e Macaé, no Rio de Janeiro e que foram mais tarde repelidos em campanhas militares e mortos em grande quantidade em virtude de epidemias no século XVII, cujos remanescentes acabaram aldeados ou migraram para o interior), e teríamos grupamentos de tronco tupi que, equivocadamente (pejorativamente, ou não), foram chamados de "goitacases" por alguns cronistas. É preciso conhecer o todo, tanto no tempo, quanto no espaço, para compreender essa lógica.

Praticamente todos os nomes dos acidentes geográficos do litoral espírito-santense são de origem tupi, e já eram conhecidos dessa forma desde o século XVI (por exemplo, Itapemirim, Guarapari, Meaípe, Agá, etc.). Os poucos nomes de chefias indígenas da época que ficaram registrados, ídem. Os documentos dos jesuítas, quando tratam de epítetos, também são bem elucidativos nesse sentido.

O mesmo podemos perceber, também, nas diversas denominações dos povos indígenas que pululam os registros. Há grupos, por exemplo, que recebem mais de um nome, dependendo do ponto de observação. Um exemplo claro está com os tamoios, que chamavam a si mesmos de "tupinambá"; e seus rivais, os temiminós, que eram chamados pelos seus adversários de "margaias" (do nome de um morubixaba importante, Maracajá). Todos eles eram, porém, do tronco étnico e linguístico tupi-guarani.

O tronco puri-coroado também "padece" desses "problema". Puri, Coroados, Coropó, Guarulhos, Guarus, Guaramomi, Maramomi, etc, eram todos epítetos dados em tempos e espaços diversos à grupamentos do tronco étnicos e linguístico puri-coroado. Eram, grosso modo, do mesmo povo, embora de tribos diferentes, muitas vezes inimigas umas das outras, e em estágios diferentes de contato e/ou aliança com os colonizadores europeus.

Paro, agora, por aqui.

Gerson Moraes França

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Sobre o nome dos indígenas coroado

 SOBRE O NOME DOS INDÍGENAS COROADO

Já há muito tempo que tenho uma "tese" para a origem do nome "coroado", que designa tanto grupamentos indígenas do tronco étnico e linguístico puri-coroado, quanto genericamente grupos de indígenas distintos em territórios diversos e tempos diferentes. Associava-se esse termo ao corte de cabelo, e essa tese é a mais difundida e encontrada em várias fontes.

Há um outro termo usado para designar os coroados: é o nome "croato" e suas diversas formas (coroato, coroata, croata, croá, etc). Há quem entenda que esses últimos termos derivaram de corruptelas do termo original "coroado". Mas eu entendo que foi o contrário: o termo "coroado" é que derivou de "croato". Embora seja verdade que as primeiras menções a esses indígenas os grafem como "coroados", depois que o contato se consolidou se firma o termo "croato" nas regiões onde primeiramente foram aldeados. Somente mais tarde é que o termo "coroado" retorna, já aí em nova conjuntura e designando genericamente também grupos indígenas de outras regiões.

Durante muito tempo acreditei que estava só nessa interpretação. Até que encontrei os relatos de Taunay, do final do século XIX, que teve contato com os coroados do Paraná (os caingang) e resolveu pesquisá-los e problematizar o epíteto. Ele, quase século e meio antes de mim, chegou a conclusão que o termo "coroado" é corruptela de "croá". Abaixo transcrevo o texto que traz essa interpretação:

"Desde principio, porém, me impressonára o appelido de coroados, pelo qual são esses índios quasi exclusivamente conhecidos em toda a província do Paraná.

Como e porque razão tivera esse nome de caracter meramente portuguez a força e valor de eliminar do conhecimento geral a denominação de etymologia indígena e especial, que essa grande tribu devia, sem constestação possível, possuir e conservar?

Bem sabia eu que provinha aquella especificação do modo porque esses primitivos filhos do Brasil costumam cortar o cabello, e nehuma relação immediata os prendia aos coroados de Matto Grosso.

Com effeito, ahi procede o nome idêntico de simples e facil corruptela, transformação da palavra croás, que designa, em sua língua os indios do sertão intermédio a Goyaz e Matto Grosso.

No Paraná, porém, apezar das minhas indagações, ninguém sabia de outro alcunha de feição autochtona, e fiquei muito admirado quando, na cidade de Guarapuava, onde cheguei a 7 de abril de 1886, pela primeira vez ouvir da boca de um índio mais ladino a palavra caingang, como denominação geral da tribu e, do interrogatório a que o submetti, deprehendi que tenham certo desgosto em ser chamados corôados.

Causou-se espécie esta novidade, e, insistindo então interessante ponto pude verificar, depois de me entender com outros homens e mulheres da partida que viera esperar-me,que esse sentimento de desprazer lhes era commum, ficando muito satisfeitos pelo vocábulo portuguez.

Communiquei esta observação ás pessoas que me rodeavam, e nas minhas conversações com os moradores mais antigos da localidade a ella de continuo alludi, mostrando-se ignorantes do verdadeiro nome da tribu, que mantém contudo, desde os primeiros annos deste século (1816), relações mais ou menos seguidas com aquelle centro de população.

Dahi me proveiu certa ufania – poder reintregrar na grande família tupy esse ramo dos coroados, dando lhes a legitima e verdadeira appellidação indígena (RIHGB, 1888, p. 255-256)"

Esse texto encontrei há uns cinco anos no trabalho de doutorado de Dantielli Assumpção Garcia. A citação acima está às páginas 234 e 235 do referido trabalho, cuja ficha segue abaixo:

Garcia, Dantielli Assumpção. A Revista do IHGB e o saber linguístico: um gesto de documentação / Dantielli Assumpção Garcia. - São José do Rio Preto: [s.n.], 2011. 300 f.; 30 cm. 

Por hoje, é só. Talvez um dia eu fundamente mais detalhadamente de que modo eu cheguei à mesma conclusão de Taunay.

Gerson Moraes França