quinta-feira, 25 de setembro de 2014

A Fábrica de Tecidos de São Pedro do Itabapoana

Quando o agente cultural, ou o jornalista, o memorialista e até o historiador querem demonstrar, para o visitante ou o leitor, como São Pedro do Itabapoana foi uma cidade próspera no passado, é comum que elenquem algumas das coisas que existiam por lá. Assim, falam dos jornais, do cinema, das farmácias, dentre outras coisas mais. E também falam de dois estabelecimentos fabris que existiram em São Pedro do Itabapoana: a fábrica de tecidos e a fábrica de ferraduras (que era, na verdade, fábrica "semi-artesanal" de manufatura de ferragens em geral, embora especializada na produção de ferraduras).

E hoje, em um artigo que espero não ser muito grande, resolvi falar um pouco sobre um desses estabelecimentos fabris: a Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda. E nem é possível falar muito, porque são bem escassas as fontes documentais primárias sobre essa fábrica. É possível que uma pesquisa mais apurada e específica encontre mais dados, especialmente tributários, sobre a fábrica em questão; mas, enquanto não posso "fuçar" os livros de lançamentos tributários de São Pedro do Itabapoana (que, pelo menos até a última enchente, estavam conservados no setor de arrecadação, no primeiro andar do prédio da Prefeitura) e algum registro no Arquivo Público estadual que possa ter subsistido, vamos com o que temos em mãos.

Não se sabe a data precisa da abertura da fábrica. Mas uma coisa se sabe: foi posterior à chegada da luz elétrica em São Pedro do Itabapoana, fornecida pela Usina Aparecida, da empresa Companhia de Eletricidade Muqui do Sul. A inauguração da luz elétrica em São Pedro, conforme nos informa Grinalson Medida, ocorreu no dia 04 de fevereiro de 1922. Até então, a cidade era apenas iluminada à gás acetileno, e não havia energia para alimentar estabelecimentos como, por exemplo, as fábricas ou o cinema. Qualquer empreendimento que demandasse o consumo de "muita" energia dependia, antes da chegada da energia elétrica, de geradores privados. Muitas Fazendas, por exemplo, tinham geradores próprios para iluminar suas sedes e movimentar seus engenhos ou suas máquinas de beneficiar café.

Assim, podemos apenas presumir, mais ou menos, quando foi inaugurada a fábrica. Em 1929 sabe-se, por registro contemporâneo, que a fábrica já existia. Em um memorial cuja data parece ser 1927, a fábrica, considerada "nova", já aparece como existente. Há também uma menção, embora não conclusiva, de que a fábrica já funcionava quando ainda vivia Victor Leite, fazendeiro em Mimoso. E há também um relatório da Secretaria de Agricultura, Terras e Obras do Estado, datado de 1926 (mas com dados em 1925) que não cita a existência da fábrica na "seção" que trata dos estabelecimentos fabris têxteis no Espírito Santo. Assim, com base nesses dados acima, presumo que a Fábrica de Tecidos São Pedro tenha sido fundada em algum momento entre 1926 e 1927. Mas, lembramos ao leitor, é apenas uma presunção.

Quanto ao nome da fábrica e quanto ao proprietário fundador, não há duvidas. O estabelecimento chamava-se Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda, e seu dono era o coronel Clarindo Lino da Silveira. Clarindo Lino, "chefe político" de São Pedro na década de 1920, era um rico proprietário de várias fazendas de café, que diversificou seus investimentos na época "áurea" da rubiácea. Além do café, "mola-mestra" da economia do sul do Estado e que criou ou sedimentou fortunas na década de 1920, Clarindo Lino investiu na produção de algodão (que, até a inauguração da sua fábrica de tecidos, era toda vendida para a Fábrica de Tecidos de Cachoeiro de Itapemirim), e também na pecuária (anos mais tarde a sua empresa Agropecuária Itabapoana seria uma das mais ricas não só do Estado, mas também do país). Clarindo Lino também investiu na construção da uma Usina na fazenda União (mais tarde vendida), que produzia aguardente e um pouco de açúcar. Enfim, com os enormes capitais que o café proporcionou nessa época, Clarindo Lino, que já era fazendeiro e comerciante, tornou-se também um industrial.

Fato interessante, que pode guardar alguma relação, ou não, é que o pai de Clarindo Lino (João Lino da Silveira), bem como ele próprio por um bom tempo, foi "jeronimista"; era "seguidor" da corrente política do Partido Republicano Espírito-santense chefiada pelo ex-Presidente do Estado, e então Senador, Jerônimo Monteiro. Sabe-se do esforço industrializante levado a efeito por Jerônimo Monteiro quando governou o Estado entre 1908 e 1912 (quando João Lino tornou-se, inclusive, o "chefe político" de São Pedro), e que dentre os empreendimentos havia uma fábrica de tecidos em Cachoeiro de Itapemirim e uma usina de açúcar e aguardente em Paineiras. Foi exatamente na época que Jerônimo Monteiro passou para a oposição, em 1920, que João Lino pouco depois "entregou" o comando político do Município e "passou o bastão" para o seu filho Clarindo Lino, que sedimentou-se na liderança política de São Pedro no "bojo" da política "neutra" do Presidente Nestor Gomes (1920-1924) para a região. Se as idéias industrializantes jeronimistas influenciaram, ou não, as atividades industriais privadas de Clarindo Lino na década de 1920, talvez nunca saibamos; mas não é algo improvável.

Bom, retornemos. Inaugurada em algum momento entre os anos de 1926 e 1927, a Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda era abastecida pela pequena produção de algodão existente nos Municípios de São Pedro, Ponte de Itabapoana e vizinhos; mas precisava importar matéria prima de fora do Estado para funcionar. Há o registro, em 1927, de dois desses pequenos produtores de algodão em São Pedro do Itabapoana; curiosamente, ambos eram italianos: Quineu Quitetti e Vicente Manvetti. Clarindo Lino, inclusive, estimulava a produção de algodão em São Pedro, embora sem muito sucesso. Até a crise de 1929, poucos eram os que investiam capitais e trabalho em lavouras que não fossem a cafeeira e as de subsistência, como milho, arroz e feijão. Interessante é que, na década de 1930, buscando diversificar a produção agrícola no Estado e diminuir a dependência em relação ao café, o governo do Interventor João Punaro Bley estimulou muito a produção de algodão, com reflexos em São Pedro.

A Fábrica de Tecidos São Pedro possuía 20 teares, importados da Inglaterra. Produzia o algodão em fio, que era exportado, e tecidos grossos como brins e riscados, utilizados principalmente para a confecção de sacos, mas que também foram utilizados para confeccionar roupas mais grosseiras usadas, principalmente, por trabalhadores rurais. Para efeitos de comparação, na mesma época, a Fábrica de Tecidos em Cachoeiro de Itapemirim possuía 161 teares e empregava 287 operários (101 homens e 186 mulheres). Não há registro de quantos operários trabalhavam na fábrica de São Pedro mas, se usarmos da mesma proporção da fábrica de Cachoeiro, não seria impossível que tenha empregado até 35 pessoas em algum momento de sua existência.

Não sabemos em que medida a crise de 1929 abalou a fábrica de tecidos em São Pedro, mas é fato que não foi suficiente para abalá-la substancialmente. Na década de 1930, inclusive, a produção da fábrica e o estímulo governamental fez com que a produção de algodão crescesse no então chamado Município de João Pessoa (Mimoso do Sul), antigo São Pedro de Itabapoana. Em 1934 a fábrica ainda estava com seus 20 teares em operação, embora tenha adequado sua produção aos novos tempos. Nesse ano, a fábrica não produzia mais os tecidos, mas somente os fios que, como antes, eram todos exportados, principalmente para a fábrica de tecidos de Cachoeiro. Em 1936 havia, no Município, boas plantações de algodão, embora ainda fossem insuficientes para abastecer a fábrica de matéria prima. Os principais produtores, nesse ano, eram: Clarindo Lino (um hectare plantado com algodão), Arnaldo Costa (com meio hectare) e o Dr. Arthur Velloso (com três hectares). Para comparar, em todo o sul do Estado havia quase 240 hectares cultivados com algodão em 35 propriedades.

O ocaso da Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda é ainda mais nebuloso. Como vimos, fundada provavelmente em 1926/27, com 20 teares e produzindo tecidos, a maior parte para sacos, e fios, que eram exportados, em 1934 não produzia mais os tecidos, mas somente os fios que continuavam sendo exportados. Em 1936 ainda estava em plena operação, absorvendo a crescente produção de algodão do Município. Mas, em algum momento entre essa última data e o ano de 1950, a fábrica fechou as portas. Em 1951 há registro concreto de que a fábrica não mais funcionava há alguns anos. Assim, só nos resta presumir que a Fábrica de Tecidos São Pedro tenha encerrado suas atividades em algum momento da primeira metade da década de 1940. A dificuldade para a obtenção da matéria prima que fizesse a fábrica funcionar plenamente, fato observado também em outros estabelecimentos têxteis do Estado nessa época, pode ter sido um dos motivos para seu fechamento. Também a pequena produção, se comparada com os empreendimentos maiores, pode ter tornado a fábrica obsoleta ou inviável. Não sabemos. E reiteramos: é apenas presunção; nada conclusivo.


Por fim: como pesquisador e frequentador de São Pedro do Itabapoana, sempre quis saber aonde teria funcionado a tão falada Fábrica de Tecidos. Sim, queria saber em que imóvel, ou em que parte do núcleo urbano, esteve instalada a fábrica. Nem mesmo o belo trabalho "Tombar é Preservar? Caso de São Pedro do Itabapoana" (Silva e Puppo, 1987), que traçou um "mapa" de como seria São Pedro em 1930, localizava a fábrica. Então, certa vez, saí eu cedinho de Mimoso, rumo à São Pedro, para tentar "localizar" o local. Eu só tinha uma informação concreta: de que as instalações da fábrica margeavam o ribeirão São Pedro. E uma informação presumida: de que a fábrica ficava na parte "baixa" da cidade. Pois, com essas informações e de posse de um mapa da área, perambulei pelos locais que poderiam ter abrigado a edificação. Aproveitei e "entrevistei" alguns velhos moradores, na esperança de que algum deles pudesse ter alguma ideia. Os três moradores com informes mais confiáveis (José Miguel de Souza - pai de Balbino Miguel Nunes, Maurino Vasconcelos e José de Souza - o "Seu Setenta") foram todos unânimes: a fábrica teria funcionado na parte baixa da cidade, nos "fundos" da rua da antiga Cadeia Pública, acessível por uma via sem saída perto da escada de pedras que havia ao lado da antiga residência de Grinalson Medina. E lá fui eu.

De fato, há duas edificações nessa área, uma delas claramente bem antiga. Mas esses imóveis, por algum motivo, não entraram no "rol" dos prédios tombados pelo Estado. "Rodei" por ali, encontrei vários cacos de cerâmica e de telhas e alguns pedaços de metal. Nada conclusivo. Mas, considerando os testemunhos e as evidências, é bem possível que aquelas edificações tenham abrigado a antiga Fábrica de Tecidos São Pedro Ltda. Abaixo segue uma foto aérea do local, com a possível área e edificações circundada de vermelho.

Por: Gerson Moraes França


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A Fazenda União

Antiga sede da Fazenda União - foto de Beto Barbosa

Na semana retrasada, os que advogam pela preservação do patrimônio histórico no Espírito Santo e em Mimoso do Sul receberam uma boa notícia. A Superintendência Regional do INCRA no Estado concedeu à Prefeitura de Mimoso uma área para executar um empreendimento de turismo e de lazer no Assentamento União, onde outrora existiu a mais que centenária Fazenda União. Intenta-se instalar um clube, um Museu e um Hotel Fazenda na área, preservando o imóvel que serviu de sede para o que foi uma das maiores e mais ricas fazendas de café e de cana-de-açúcar da região, e que também abrigou uma Usina, hoje em ruínas, que fabricava açúcar e, principalmente, aguardente. Chegou a ser a maior produtora de aguardente de todo o Estado, na década de 1940 ou 1950.

A notícia pode ser lida no site do INCRA, clicando-se no link abaixo:

O Assentamento União é o mais antigo assentamento de reforma agrária em Mimoso do Sul. Foi implementado em 1998, na esteira de um crescente movimento social dos trabalhadores sem-terra no Município. Após isso, a mobilização dos sem-terra, capitaneadas em Mimoso principalmente pela FETAES e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais local, e com participação também do MST, tomou uma enorme proporção. Nos anos 2000, Mimoso do Sul foi, por um período, o Município do Estado com o maior número de acampados de todo o Espírito Santo, com centenas de famílias à espera de uma gleba.

Lembro-me bem desses anos. Como esquecer os barracos de lona, alinhados lado a lado na estrada, então de terra, que liga Mimoso à São Pedro, Santo Antônio e Conceição de Muqui? Eram quilômetros de barracos, à espera de que fosse repartida a Fazenda Palestina, também desapropriada para a reforma agrária. Lembro-me quando, na Fazenda Catuné, os acampados entraram no terreno e repartiram suas glebas. E na Fazenda Independência, quando algumas dezenas de acampados ocuparam as entradas da fazenda, também à espera de uma gleba que, por lá, não saiu; os proprietários conseguiram reverter a desapropriação na Justiça, provando que a Fazenda era produtiva.

À esquerda, a antiga sede da Fazenda União;
à direita, as ruínas da Usina do Engenho Central de União Ltda.

É até interessante, mas todas essas propriedades eram o que restavam de ricas e enormes fazendas cafeeiras surgidas no século XIX, e que prosperaram até a época da erradicação dos cafezais velhos, na década de 1960. União, Palestina, Independência e Catuné foram riquíssimas fazendas, propriedades de "capitães" e "coronéis" do passado. E, ironia do destino, foram o alvo de centenas de famílias de trabalhadores sem-terra que, muitas delas, expulsas do campo nas décadas de 1950 e 1960 devido à crise do café e ao aumento das pastagens, agora retornavam para a atividade que seus avós exerciam. Mas, dessa vez, como proprietários.

Quando criança, a "roça" sempre me chamou a atenção, mas de uma forma estranha. O período áureo do café e da intensa vida rural não mais existia nas regiões que eu frequentava quando pequeno, e nem quando adolescente. O campo era, para mim, uma extensa zona vazia e deserta, sem gente e sem vida, onde pastavam alguns poucos bois. À noite, era sinônimo de silêncio e de escuridão.  Lembro-me que era comum ver pequenas casinhas abandonadas, a maior parte em ruínas. Pensava eu: "alguém já teria morado ali?". Não imaginava eu que, à vinte ou trinta anos atrás, a população rural daquelas regiões era a maioria: cerca de noventa porcento dos habitantes de Mimoso do Sul e de Muqui.  Nascido e vivendo em Vitória, quando criança minha concepção de campo era, interessantemente, um núcleo urbano: Muqui, cidade onde meus avós viviam. Para mim, o "rural" era uma "cidade pequena". Só fui ter contato mais direto com o campo quando, adolescente, comecei a frequentar Mimoso e as fazendas da família de minha antiga madrasta. Foi lá que, pela primeira vez, vi um trabalhador rural em seu ambiente de trabalho. Lembro-me quando um dos filhos dela, meu "meio-irmão" Daniel, apontou para um deles e disse; "- é um colono". Eu, na minha "ignorância escolarizada", perguntei:  "- ele é de que nacionalidade?". Todos riram, inclusive o "colono". Hoje, ao descer a serra do Catuné ou dobrar a grande curva da União, à noite, observamos diversos pontos de luz espalhados no meio do que, antes, era só escuridão.

Depois desse "primeiro contato direto", vivi intensamente, embora por um curto período, a "vida rural". Não só em lazer, passeando de cavalo ou de moto pelos morros e matas, tomando banho de rio ou aproveitando as cachoeiras, mas também "trabalhando" eventualmente. Subi morros e ajudei à cortar e puxar capim para misturar com cana, que servia de ração para os bois e vacas no curral. Até hoje eu adoro aquele cheiro de "bosta de boi" misturado com o aroma doce da cana moída com capim. Ajudei à espalhar café no terreiro. Tomei café torrado e moído na hora, e fazia meu próprio caldo-de-cana em uma pequena "moenda" que havia embaixo da sede da fazenda. Ajudei à "desmontar" uma casinha e "transportar" os tijolos e telhas para outro local. Ajudei a caiar a casa de um colono. Joguei milho para as galinhas, e "catei" ovos. Andei pelas terras de uma fazenda que meu pai havia adquirido, e que servia para "engordar" os bois da fazenda de minha madrasta. Enfim, pude ter contato direto com um pouco daquela vida. No ano que morei em Mimoso, meu "castigo", quando eu faltava a aula do Guimarães Rosa em Cachoeiro, era ir pra fazenda "ajudar na roça"; mal sabiam que eu adorava aquele "castigo"...

Mas, afinal... falava eu sobre a Fazenda (hoje, Assentamento) União e da boa notícia acerca da possibilidade concreta da preservação de sua antiga sede mais que centenária. Deixemos de divagações de lembranças pessoais, e vamos para o cerne do que pretendia escrever.

O costume parece não ser tão recente, mas hoje é muito mais comum as assessorias de imprensa e/ou de divulgação de órgãos públicos ou de empresas privadas "darem mancada" quando precisam escrever algo que envolva História, embora isso não seja regra geral. Às vezes são "pequenas mancadinhas"; às vezes, são "mancadas homéricas". Hoje isso piorou, pois, com a Internet e o Google à disposição, tudo parece estar muito mais fácil e acessível. Há as exceções, mas basta "navegar" e "guglar" que... "pimba"! "- Encontrei a informação histórica que eu precisava! Pronto, trabalho feito". Esquecem-se de que o papel (ou a tela) aceita qualquer coisa. Mas, para eles, esses pequenos erros ou equívocos não são significantes, pois esses informes são vistos como mero "floreamento". Não desvirtuam a informação que, em essência, querem transmitir. E, de certo modo, não estão errados.

Mas, como historiador que pretendo ser, os "pequenos errinhos", por menores que sejam, "doem na minha vista". E foi o caso da matéria que o INCRA publicou em seu site, e que coloquei o link de acesso mais acima. Vamos lá, acertar os equívocos. Coisa de pretenso historiador chato.

Antiga sede da Fazenda União
Embora eu não seja arquiteto, e nem estudioso dos estilos arquitetônicos na História, uma coisa parece patente e correta na matéria: o estilo de construção da sede da Fazenda União é "colonial". Edificação bem típica da segunda metade do século XIX no sul do Espírito Santo, que lembra algumas construções do Vale do Paraíba fluminense, bem como algumas edificações de fazendas mineiras. O que não faz dela, porém, "uma antiga fazenda colonial". A Fazenda União, bem como todas as antigas fazendas do século XIX em Mimoso do Sul foram "abertas" somente a partir da década de 1840. Assim, não datam da época da Colônia, mas sim, da época do Império. O Brasil já era um Estado independente.

Outra coisa é o nome do fundador da referida fazenda. Detalhe inútil para alguns, talvez. Mas não para mim e para meus olhos. E, afinal, aposto que os descendentes do fundador da fazenda também prefeririam que seu nome correto fosse lembrado. Brincadeiras à parte, seria o mesmo que daqui a cento e cinquenta anos alguém escrevesse que o superintendente do INCRA no Espírito Santo em 2014 fosse um tal "João Cândido Costa da Silva" (observação: seu nome é José Cândido Costa Rezende). =P

Embora fosse um felizardo membro de uma importante família proprietária de terras na região de Oliveira, em Minas Gerais, e herdeiro de uma pequena fortuna, seu nome não era Felizardo Ribeiro de Castro, mas sim Felisberto Ribeiro da Silva Junior. A confusão com o "Castro" deve ter ocorrido por causa de sua esposa: Felisberto era casado com Maria Cândida de Castro. Ambos, inclusive, tinham parentesco entre si: eram primos, embora não o fossem de primeiro grau. Corrigidos esses dois pequenos equívocos, discorramos agora um pouco sobre os fundadores e os primeiros proprietários, bem como sobre a própria Fazenda União no passado.

A família "Ribeiro de Castro", com ou sem o "Silva" no meio, foi das primeiras que abriu fazendas cafeeiras na região do "médio ribeirão São Pedro". Assim como outros naturais de Oliveira/MG, compraram posses em terras que, atualmente, fazem parte do Município de Mimoso do Sul. Não se sabe ainda, ao certo, o ano exato que Felisberto e Maria Cândida vieram viver em sua fazenda; mas sabe-se o período que vieram morar nas terras do ribeirão São Pedro: ocorreu em algum momento entre 1855 e 1860.

Felisberto Ribeiro da Silva concorreu, também, para a vinda posterior de membros da família de sua esposa. Para se ter ideia, o chamado "decano" da família na década de 1880, Inácio Ribeiro da Silva Castro, só chegou à região de São Pedro depois de 1862. Olímpio Ribeiro da Silva Castro (sobrinho de Dona Maria Cândida) e seu padastro Leopoldino Gonçalves Castanheira - o tão ilustre futuro Comendador e ele mesmo filho de uma Castro -, só chegariam à região do córrego Independência, afluente do ribeirão São Pedro, em 1873, para em sociedade fundarem a Fazenda Independência. Idem com alguns descendentes de Venâncio José Vivas, avô de Leopoldino e progenitor da família Vivas. E não é impossível que tenha concorrido também para a vinda de uma outra interessante personagem da história local: Silvestre Coelho dos Santos, pai do ilustre Dr. José Coelho dos Santos. A família Coelho dos Santos, de onde provavelmente "mestre" Silvestre (ex-escravo que comprou a própria liberdade) retirou o sobrenome, também tinha relações de parentesco com os Vivas, os Castanheira e os Ribeiro da Silva Castro. Todos eles, interessante lembrar, são originários de Oliveira, em Minas Gerais. A própria localização da fazenda que Silvestre adquiriu, antes de 1877, é um indício dessas relações, pois ficava encravada no meio das fazendas da família Castro.

Outra questão interessante que podemos salientar, e que o leitor já deve ter percebido, é a afluência de parentes, amigos ou agregados, que abriam suas fazendas em terras de uma mesma "grande posse" inicial. Isso era muito comum naquela época em que se "desbravavam" as extensas terras de matas virgens dos afluentes do médio Itabapoana espírito-santense. Um só proprietário não possuía, via de regra, recursos para explorar todo o terreno que adquiria ou posseava; assim, era corrente a "fragmentação" dessas grandes posses em várias fazendas, que eram exploradas pelos parentes, amigos ou terceiros que compravam um "naco". Como exemplo, podemos citar a grande Fazenda Mimoso que, de seu núcleo original, foi "fracionada" em várias outras fazendas, quando ainda vivia o Capitão Pedro Ferreira da Silva, que havia comprado a posse original. E, da grande posse, surgiu não só a Fazenda Mimoso, mas também as Fazendas Santa Marta, Santa Rita (hoje situada em Muqui), Serra, Belmonte, Aparecida, Pratinha, Vinagre e até a Fazenda Sapé, mais perto do Itabapoana. Assim também, no caso das terras da família Silva Castro, surgiram várias fazendas como a União, Independência, Recreio, Sant'anna, Rocinha, Lageado, São Carlos, Harmonia, Concórdia, Santa Rosa, Feliz Destino e São Sebastião.

Retornemos, agora, à Fazenda União e seu fundador, Felisberto Ribeiro da Silva. Como dissemos, Felisberto chegou ao Itabapoana e formou sua fazenda em algum momento entre os anos de 1855 e 1860. Como quase todas as propriedades da região fundadas nessa época, utilizava mão-de-obra escrava. Não se sabe ao certo quando foi edificada a sede da Fazenda União, mas ela já estava construída em 1870; acredita-se que tenha sido levantada por volta de 1864. Felisberto foi Tenente da Guarda Nacional e exerceu o cargo de Subdelegado do Distrito de Barra do Muquy, nome que era dado ao primeiro Distrito Policial na região da Freguesia de São Pedro de Itabapoana. Faleceu em 28 de outubro de 1875, na grande casa que servia de sede para a Fazenda e que, se tudo der certo, será restaurada em breve. A viúva, Maria Cândida de Castro, passou a administrar a fazenda com a ajuda de seus genros Bernardo José da Silveira (dono da Fazenda Santa Rosa), José Gomes de Souza (Fazenda Feliz Destino) e José Antônio de Castro (Fazenda Rocinha), e também de seu jovem filho Lindolfo Ribeiro da Silva. José Gomes de Souza, inclusive, foi o tutor dos órfãos de Felisberto, e José Antônio Castro foi quem registou a fazenda na Diretoria de Terras do Estado, em 1894.

Em 1893, pouco antes da primeira crise de preços do café, a Fazenda União, de propriedade da viúva Maria Cândida de Castro, tinha 240 alqueires de terra, dois sítios que eram arrendados e estavam incrustados dentro de suas terras, 120 mil pés de café, pastos, produzia 4 mil arrobas de café por ano e valia 140 contos de réis. Uma fortuna para a época. A propriedade sofreu com a crise, e foi no início do século XX que iniciou com as atividades de plantio de cana-de-açúcar, embora não tenha abandonado as lavouras de café. Em 1915, seu proprietário era Felisberto Gomes de Souza, filho de José Gomes de Souza e neto de Felisberto Ribeiro da Silva. Nessa época, a Fazenda União possuía três moendas, um centro com eixo de roda hidráulica e um alambique com capacidade para produzir uma pipa (480 litros) diária de aguardente. Tinha início a atividade que descambaria na construção da Usina União, que na década de 1940 e 1950 seria grande produtora de açúcar e aguardente.

Ruínas da Usina do Engenho Central de União Ltda
Algumas curiosidades: Felisberto Gomes de Souza, que iniciou com as atividades de plantação de cana-de-açúcar e produção de aguardente na Fazenda União, era casado com Jovita de Castro Souza, tia da poetisa Maria Antonieta de Castro Siqueira Tatagiba. Felisberto e Jovita são pais do médico e oficial do Exército Lécio Gomes de Souza, que também é escritor e poeta e primo de Maria Antonieta. Lécio, nascido na Fazenda Feliz Destino em 1909, foi criado na Fazenda União. Na década de 1920 (depois de 1924, pois neste ano a fazenda ainda pertencia à Felisberto), a Fazenda União passou para a propriedade do coronel Clarindo Lino da Silveira. Daí pra frente, é história mais recente e nos estenderíamos ainda mais nessa já extensa matéria. Abandonada na década de 1970, improdutiva, tinha quase 564 hectares quando foi desapropriada em 1998.


Gerson Moraes França


Primeira foto: Beto Barbosa/Arquivo da PMMS; disponível em:
http://www.mimosoinfoco.com.br/noticiario/incra-concede-cessao-de-uso-da-fazenda-uniao-para-a-prefeitura/
Demais fotos: "prints" de trechos do vídeo "A Folia de Reis na Fazenda União em Mimoso do Sul"; disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=yGCpoVt2TgY
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