quarta-feira, 13 de novembro de 2024

A Historicidade de Zacimba Gaba

 A HISTORICIDADE DE ZACIMBA GABA


Não, leitor. Esse post não foi feito para refutar ou relativizar a existência e luta da princesa africana que resistiu à escravidão aqui no Espírito Santo. Ao contrário: esse nosso escrito busca historicizar a personagem, ou seja, colocar Zacimba Gaba no contexto histórico e conferir-lhe um caráter histórico, depurando incongruências e anacronismos e separando história de mito e lenda.

Rezam as histórias contadas hoje em dia, em suma, que Zacimba Gaba era uma princesa africana de Cabinda que foi escravizada e trazida para o norte do Espírito Santo, onde foi vendida para um senhor de São Mateus. Revelando sua origem, Zacimba sofreu violências e foi castigada pelo seu proprietário e, por isso, acabou envenenando lentamente seu abusador até matá-lo. Depois, após matar todos os seus torturadores, fugiu e ajudou a formar um quilombo nas proximidades, de onde saía com seus companheiros para abordar navios negreiros que traziam escravizados para a região do porto de São Mateus. Nessa atividade acabou libertando várias pessoas da escravidão, antes de ser morta a bordo de uma embarcação abordada pelo grupo.

As histórias contadas oralmente conservaram o nome da pessoa que a comprou, e há até quem tenha posteriormente situado Zacimba Gaba no tempo. As informações hoje circulantes dizem que ela foi trazida da África para o Espírito Santo em 1690, e que seu comprador foi um senhor chamado José Trancoso, proprietário de uma fazenda em São Mateus. Assim, com base nessa data, esses fatos teriam se passado no final do século XVII; parece que tal inserção temporal foi elaborada para fazer um paralelo ou analogia com outro importantíssimo movimento de resistência à escravidão, o Quilombo dos Palmares, onde o líder quilombola Zumbi foi morto em 1695. A data da morte de Zumbi, inclusive, é hoje usada como referência para a celebração do Dia da Consciência Negra (20 de novembro).

Antes de analisarmos a historicidade de Zacimba Gaba, é importante abordarmos a questão de como sua história emergiu e foi registrada. A população de origem africana escravizada, em São Mateus, foi substancialmente significativa. Movimentos de resistência e quilombos fizeram parte da realidade histórica local. Algumas personalidades negras que a história oral preservou foram, depois, individualizadas e reveladas através de documentos, tais como Benedito Meia Légua e Negro Rugério, por exemplo. Assim, apesar de não existirem documentos (pelo menos, até hoje) que comprovem a existência de Zacimba Gaba e de sua atividade, de forma alguma contestamos a sua existência e ação, pois essa história foi preservada na memória das pessoas que passaram a mesma adiante através das gerações, juntamente com outras que restaram comprovadamente verídicas.

A história da princesa africana de Cabinda escravizada foi registrada em uma entrevista realizada em 18 de junho de 1968 (Russo, 2011). Nessa ocasião, o jovem entrevistador Sebastião Maciel de Aguiar compilou o relato de Balduíno Antônio dos Santos, um senhor descendente de escravizados que relatava ter 95 anos de idade na época e que conhecia muitas das histórias preservadas por sua comunidade através da tradição oral. Balduíno, inclusive, teria sido um dos primeiros beneficiários da Lei do Ventre Livre, segundo Maciel; o que é plenamente possível, considerando que Lei do Ventre Livre é do final de setembro de 1871 e que o ano presumível do nascimento de Balduíno é 1873. Ele já era reconhecido desde os anos 1920 por conhecer e guardar relatos da história negra local e transmiti-los em conversas. Após Maciel de Aguiar revelar essa história e publicar anos depois vários trabalhos sobre a resistência negra no Estado, (que, juntamente com dezenas de outras obras, o credenciaram a ser indicado para o Nobel de literatura no ano passado) começam a tomar feição as histórias que circulam hoje em dia.

Dito isso, primeiramente analisemos a verossimilhança do recorte temporal, e consideremos o relato de que Zacimba desembarcou diretamente da África em São Mateus. Não nos parece verossímil que ela tenha chegado ao norte do Espírito Santo em 1690, tal como é hoje contado. Nesses anos finais do século XVII, vésperas da descoberta do ouro, a economia açucareira passava por uma grande crise, e há muito que não havia contato comercial direto do Espírito Santo com a Europa ou África: nem de gêneros, e muito menos de escravizados. Desde a segunda metade do século que não havia rota direta entre Vitória e os continentes acima mencionados, a ponto da Alfândega local ficar desativada. O comércio do Espírito Santo tinha se reduzido a uma movimentada navegação de cabotagem, onde os comerciantes faziam seus negócios principalmente com as praças do Rio de Janeiro e de Salvador, estes sim portos de importação e exportação para a Europa e África. Além disso, em fins do século XVII o povoado de São Mateus ainda estava iniciando seu processo de ocupação, e nem estava estabelecida ainda a importante futura atividade econômica da fabricação e comercialização da farinha de mandioca. Desse modo, e considerando a memória tradicional passada pelas gerações de que Zacimba desembarcou em São Mateus, vinda de Cabinda, estaria afastada a hipótese de ter aportado no Espírito Santo em 1690.

Quando teria ocorrido a chegada de Zacimba Gaba, então? Guardado o fato narrado pela tradição de que ela desembarcou diretamente no norte do Espírito Santo, a possibilidade mais provável, e praticamente certa, é que tenha ocorrido em algum momento entre 1831 e 1850, quando o tráfico atlântico de escravizados era uma atividade ilegal. Pode ter ocorrido, também, entre 1850 e 1856, pois há notícias de desembarques e tentativas de desembarque no Espírito Santo até essa última data. Até 1831, a importação de escravizados dos portos da África era legal, e o Espírito Santo era "abastecido" principalmente com os escravos que desembarcavam no Rio de Janeiro. Com a ilegalidade do tráfico, o desembarque de africanos começou a ser feito em zonas pouco povoadas e onde havia pouca fiscalização, diante da impossibilidade legal de desembarcar escravos nos maiores portos. Assim, nesses cerca de 20 anos, os escravizados eram introduzidos no Brasil por praias ou portos ermos ou pequenos. Aqui no Espírito Santo ocorreram desembarques ilegais em grande escala, principalmente nas proximidades de São Mateus e de Itapemirim e Itabapoana.

As datas que citei acima são o entendimento dos pesquisadores e historiadores que publicaram a importante obra "Enciclopédia Negra: Biografias Afro-Brasileiras" (Gomes, Lauriano, Schwarcz, 2021), que tratam de mais de 500 personalidades negras, e está embasada historicamente com elaborados argumentos e confiáveis fontes.

Quanto à origem de Zacimba Gaba e de seu nome, penso que não nos cabe tecer teses para além de reconhecer que dificilmente a comunidade negra local de finais do século XIX e início do século XX teria preservado esses dados se fossem mera invenção. Podemos até acreditar que pode ter havido alguma corruptela em seu nome, modificando-o sutilmente, mas nunca que tenha sido criado por ficção. Quanto ao porto de seu embarque, Cabinda, sabe-se que há mais de 200 anos (à época) se fazia comércio de escravizados entre a região do Congo-Angola com o Brasil, e que Cabinda foi porto de embarque de dezenas de milhares de cativos. Das cerca de 5 milhões de pessoas escravizadas que chegaram ao Brasil durante os cerca de 350 anos de tráfico atlântico, 75% eram provenientes do Congo-Angola. Inclusive, se considerarmos que Zacimba chegou de Cabinda diretamente em São Mateus, é ainda mais provável que tenha vindo durante o período do tráfico ilegal, entre 1831 e 1850/56, pois nessa época o volume de cativos traficados aumentou substancialmente e Cabinda se tornou um dos dois principais portos de embarque de escravizados para o Brasil.

Tudo caminha nessa direção: Zacimba Gaba teria chegado ao Brasil no segundo quartel (ou meados) do século XIX, embarcada no porto de Cabinda e desembarcada ilegalmente nas proximidades da vila de São Mateus, onde foi comprada por um fazendeiro local de nome José Trancoso; o nome desse fazendeiro pode ter sofrido, também, alguma corruptela: precisaríamos investigar melhor a sua existência para tecer qualquer afirmação. E quanto a sua etnia e condição de "princesa"? Sabemos que os africanos escravizados que chegavam ao Brasil não eram, via de regra, chamados pelo nome de sua etnia, mas sim pelo porto ou região de seu embarque. Assim, Zacimba, seria certamente de alguma etnia do Congo, onde está o enclave de Cabinda. A história de que ela e seu grupo conheciam técnicas de navegação torna ainda mais provável essa hipótese, pois os habitantes do baixo Congo eram bons navegadores e muitos escravizados dessa região foram, no Brasil, utilizados como marinheiros. Já em relação à Zacimba fazer parte da elite dirigente da região que habitava na África, também não é improvável, como bem reza a obra supra citada que abaixo reproduzo:

"Não são incomuns relatos a respeito de reis, princesas e rainhas africanos que acabaram escravizados e trazidos para as Américas. Tampouco são inverossímeis, posto que o comércio negreiro alcançava os sertões africanos, incentivava guerras internas e processos de banimento sociais associados à escravização e à venda de inimigos" (Gomes, Lauriano, Schwarcz, 2021).

Diante de todos esses argumentos e fontes, creio que historicizamos a existência e as ações de Zacimba Gaba. Uma mulher da elite de sua comunidade africana que, escravizada, foi trazida ao Brasil em algum momento do segundo quartel (ou meados) do século XIX e vendida em São Mateus, no Espírito Santo. Por essa época, inclusive, a maior parte das pessoas escravizadas trazidas ao Brasil eram crianças, jovens ou mulheres. Em São Mateus ela sofreu violências e, depois de fugir do cativeiro, formou uma comunidade quilombola que resistiu à escravidão. Possivelmente atuou por pouco tempo para libertar escravizados recém chegados ao Brasil, mas acabou sendo morta em uma dessas ações. Não há documentos contemporâneos que a individualizam ou que tratam das ações específicas de seu grupo, mas há muitas fontes que asseveram a substancial existência de quilombos, escravos fugidos e ações desses grupamentos na região de São Mateus. Sua história, porém, perpetuou-se na memória dos locais e fundiu-se com elementos de mito e lenda. Balduíno, o descendente de escravos que nos legou essa história através da pena de Maciel de Aguiar, dizia que tudo lhe fora contado pelo seu avô. Teria esse último ouvido falar dos feitos de Zacimba Gaba por ter sido contemporâneo aos fatos?

Por fim, a resistência de Zacimba Gaba também pode ser denotada pela preservação de seu nome, ainda em vida e na condição de escravizada; os africanos cativos, ao embarcar nos navios negreiros, eram batizados e recebiam um nome cristão. Quando não o fossem no embarque, o eram fatalmente no desembarque. Assim, sua identidade e sua religião eram invisibilizados, e depois apagados. Zacimba era conhecida pelo seu nome africano, e a preservação de seu nome e de sua memória através dos tempos é um vitorioso símbolo de resistência.

Gerson Moraes França

Fontes:

Brincantes & Quilombolas. Maciel de Aguiar. 2005.

Zacimba Gaba - Princesa, Escrava e Guerreira. Maciel de Aguiar. A Tribuna, 2007.

Maria do Carmo de Oliveira Russo. A Escravidão em São Mateus; Economia e Demografia (1848-1888). São Paulo, 2011.

Enciclopédia Negra: Biografias Afro-Brasileiras. Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz. Companhia das Letras, 2021.