Tela representando a chegada de Vasco Coutinho ao Espírito Santo. Morgana de Sá, 1999. Acervo da Casa da Memória, Vila Velha/ES. Fonte da imagem: site "Morro do Moreno". |
23 de maio de 2024 está aí; dia de memorar a colonização do solo espírito-santense. Efeméride que nos lembra da chegada dos europeus portugueses capitaneados por Vasco Coutinho nas praias da atual baía de Vitória, em 1535, e que ali fundaram seu primeiro núcleo - a então Vila do Espírito Santo, atual Vila Velha - depois de canhonear os indígenas tupi guaianases que ali habitavam na ocasião.
De Vasco Fernandes Coutinho, filho de Jorge de Mello e Branca Coutinho, o fidalgo português que, ainda muito jovem, singrou os mares, combateu nas conquistas ultramarinas portuguesas, comandou cidadelas do império português e chegou até o Japão, muito se fala. Já não tão jovem, ainda não era um homem velho quando se aventurou novamente pelo mar afora e combateu e conquistou, para Portugal, terras na América que foram por ele batizadas com o nome de Capitania do Espírito Santo em 1535. Vasco, o Capitão Donatário, foi o homem que comandou a fundação do que hoje é o nosso Estado do Espírito Santo.
Após muitos anos governando sua donataria, e já bem idoso e doente, Vasco Fernandes Coutinho legou sua sucessão a um filho de seu relacionamento com Ana Vaz de Almada, mulher com quem teve uma relação extraconjugal e constituiu família, já no Brasil. Seus filhos legítimos, fruto de seu casamento com Maria do Campo, já estavam todos falecidos quando Vasco nomeou o seu primogênito com Anna Vaz para herdar sua Casa e Capitania. Essa nomeação foi aprovada por Alvará de Dom Sebastião, Rei de Portugal, em 1567.
E hoje resolvi falar um pouco sobre esse filho bastardo, posteriormente legitimado, do Vasco pai. Trata-se de Vasco Fernandes Coutinho, o filho: homônimo, portanto, de seu genitor. Não se conhece (ainda) o ano de seu nascimento, e nem se sabe ao certo se nasceu no Brasil ou em Portugal. O que podemos afirmar com certeza é que Vasco pai veio ao Brasil e aqui se relacionou com sua concubina Ana Vaz, onde viveram maritalmente. Podem ter vindo juntos em 1535, ou iniciado sua relação na América depois: o certo é que já estavam juntos em 1540. É o que se infere dos documentos que tratei nesse BLOG sobre a Sesmaria de Brás Telles. Então, Vasco Filho teria nascido em 1535 ou depois; e antes de 1545, quando nasceu o terceiro filho de Vasco pai e Ana Vaz, chamado Ignácio de Mello. Sou inclinado a entender que Vasco filho teria nascido em Portugal, como afirmam muitos autores; mas teria vindo a luz depois de 1540, quando Vasco viajou para Portugal, e antes de 1543, data máxima que creio para a gestação de seu primeiro irmão, que seria batizado com o nome Jácome Coutinho. Assim penso fundamentado na carta de Mem de Sá escrita em 1560, quando em passagem pelo Espírito Santo encontrou "três filhos de Vasco Fernandes Coutinho moços sem barbas". Se Vasco filho tivesse nascido em Portugal e antes de 1535, estaria com mais de 25 anos em 1560, e não seria mais um "moço sem barba". Acredito que esses três filhos muito jovens de Vasco pai seriam Vasco filho, Jácome e Ignácio (este, com 15 anos na ocasião), e não os filhos do primeiro casamento que já seriam todos "barbados" nesse quadrante.
Mas são somente ilações longe de serem comprovadas; talvez nunca sejam e, por isso, presumimos e tecemos nossas considerações com base em indícios. Seria até legal se "Vasquinho" tivesse nascido no nascente Espírito Santo: seria um dos primeiros europeus vindos a luz no "novo mundo". Mas, nascido no Brasil ou em Portugal, o fato é que veio ao mundo possivelmente entre 1535 e 1544, e provavelmente entre 1540 e 1543 em solo lusitano. Tudo indica que a família retornou ao Espírito Santo posteriormente, juntos ou depois de Vasco pai, e não só porque estavam os três irmãos no Brasil em 1560: há documento que comprova que o irmão mais novo, Ignácio, falava "la lengua brasílica muy bien" - isto é, falava o idioma indígena tupi-guarani, língua corrente em terras espírito-santenses naqueles primevos tempos. Possivelmente Vasco filho também conhecia o tupi, e isso só seria crível se os filhos do Donatário tivessem vivido parte de sua infância e/ou adolescência no Brasil.
Em algum momento da primeira metade da década de 1560, Vasco filho retornou para Portugal. Por qual motivo? Estudos? Alguma querela? Não sabemos. Seu irmão mais novo foi residir em Lisboa, ingressando na Companhia de Jesus no final de 1562. Sem mais fontes, sou forçado a acreditar que Vasco filho teria ido para Portugal em data próxima à essa. "Vasquinho" volta a figurar nos registros históricos, dessa vez expressamente, em 1565: em 25 de março desse ano, presente em Lisboa, zarpou com a frota da carreira das Índias que partiu para o oriente com quatro embarcações na armada comandada por Francisco Sá de Meneses. Em princípio de setembro chegaram em Goa. No início de janeiro do ano seguinte, a frota iniciou viagem de retorno. Em setembro de 1566 uma das naus chegou em Lisboa; outras duas tiveram que invernar em Moçambique, chegando em Lisboa apenas em abril de 1567. Uma quarta embarcação se perdeu. Não sabemos se Vasco filho retornou na primeira ou nas últimas que chegaram em Lisboa. O que sabemos é que em novembro de 1567 ele estava em Portugal, quando iniciou-se o processo de reconhecimento de Vasco Fernandes Coutinho, o filho, nomeado que foi por seu pai Vasco Fernandes Coutinho para sucedê-lo na sua Casa e Donataria.
Abro aqui um rápido adendo: não entrarei em pormenores sobre a data da morte do primeiro Capitão Donatário e fundador do Espírito Santo. Há apenas uma documentação que informa que Vasco pai havia falecido em 1561, e que nos parece ter sido um grave erro do copista. Ao contrário, existem vários documentos que provam que Vasco pai estava vivo depois desse ano, e um documento expresso que atesta que o Donatário faleceu em fevereiro de 1571. Esse é o entendimento de sérios pesquisadores que se debruçaram sobre essa temática, tais como o ilibado Serafim Leite e a saudosa Nara Saletto.
Sanada essa questão da data da morte do Donatário, até mesmo o processo de sucessão que envolve os dois Vascos, trazidos à luz na historiografia capixaba por João Eurípedes Leal, faz todo sentido. Não conhecemos a data do instrumento de legitimação lavrado por Vasco pai, mas creio ser verossímil ter sido confeccionada depois de 1566. Isso porque em março de 1564 ainda havia comprovadamente um filho legítimo vivo de Vasco pai. Esse herdeiro legal embarcou em uma frota da carreira das Índias, e provavelmente faleceu durante a viagem: das quatro naus, duas se perderam, e uma doença dizimou boa parte dos viajantes. As que tornaram viagem para Lisboa chegaram em abril e junho de 1566, quando possivelmente chegou a notícia do óbito. Faz sentido, portanto, que em algum momento depois dessas datas o Donatário Vasco Coutinho tenha tomado conhecimento do falecimento de seu último herdeiro legal, e nomeado seu primogênito do relacionamento extra conjugal para o suceder.
Em novembro de 1567, como dissemos, inicia-se o processo de legitimação de Vasco Fernandes Coutinho, o filho. O procedimento caminha morosamente; em dezembro de 1568 e janeiro de 1569 movimenta-se, mas ainda faltam sanar alguns impedimentos. Em janeiro de 1570 toma impulso: sanadas todas as questões pendentes, é lavrada a provisão real para que Vasco filho possa tomar posse da governança da Capitania do Espírito Santo. É possível que o sucessor do já bem idoso e doente Vasco tenha embarcado para o Brasil em 05 de julho de 1570, na armada de Luís Fernandes Vasconcelos, que foi nomeado governador do Brasil para suceder Mem de Sá. Mas essa viagem foi desastrosa. Ventos e correntes contrárias, bem como a presença de navios de piratas huguenotes franceses, acabam por impedir que a frota atingisse as terras brasileiras. Uma embarcação foi assaltada pelos piratas, que executaram dezenas de religiosos jesuítas. Os barcos foram parar nas Antilhas, retornando depois para as ilhas oceânicas portuguesas e espanholas e, por fim, à Lisboa para esperar nova oportunidade de seguir com a derrota.
Em 06 de setembro de 1571 Luís Vasconcelos zarpa em nova empreitada rumo ao Brasil. Caso não tenha embarcado naquela primeira frota e reiniciado a viagem, Vasco Coutinho filho embarcou nessa nova partida. Mas o destino também não foi benéfico nessa segunda feita: em 13 de setembro a nau capitânia, onde estavam o governador Luís Vasconcelos e Vasco filho, foi atacada novamente por piratas franceses. O governador foi morto na peleja, e "um fidalgo chamado Vasco Fernandes Coutinho" foi detido, "a quem ataram com vista a um futuro resgate". Ainda em setembro os franceses retornaram à La Rochelle, levando consigo "o fidalgo Coutinho que foi posto em resgate por 1.200 cruzados".
Assim, o nosso "Vasquinho" esteve retido em La Rochelle, na época dos intensos conflitos religiosos que ocorriam na França. Quando teria retornado à Portugal? Em que condições? Teria alguém pago o resgate, ou Vasco filho teria realizado alguma fuga? Questões ainda sem resposta. O mais provável é que algum (ou alguns) parente da família de seu pai tenha satisfeito esse resgate. Esses sucessos explicariam o porquê de Vasco filho ter feito um testamento antes de sua próxima viagem para assumir a Capitania do Espírito Santo, e porque de ter legado sua sucessão a um ramo colateral e legítimo da família de seu pai. Esse testamento foi lavrado em abril de 1573, e sua viagem não deve ter tardado muito pois em 14 de agosto do mesmo ano o fidalgo Vasco Fernandes Coutinho tomava posse, na Vila de Nossa Senhora da Vitória, do governo da Capitania do Espírito Santo.
Há muitos outros fatos e pormenores interessantes sobre o filho bastardo que foi legitimado e que assumiu como o segundo Capitão Donatário do Espírito Santo. Seu casamento com Luiza Grimaldi, a futura "capitoa", sua outra relação marital e seus parentes (irmãs e cunhados), sua boa administração em relação aos colonos, jesuítas e indígenas, sua relação familiar com espanhóis importantes, entre outras coisas mais, dariam mais um bom tanto de parágrafos. Mas o presente artigo não intenta ser uma biografia do primogênito de Vasco pai e Ana Vaz. Quis eu apenas registrar algumas interessantes peripécias vividas pela nossa personagem histórica.
Vasco Fernandes Coutinho, o filho, faleceu em Vitória no ano de 1589 e foi sepultado na Igreja dos padres da Companhia de Jesus. Estaria próximo aos 50 anos de idade. Sua mãe ainda vivia. De Vasco pai, podemos dizer que foi o conquistador e fundador do Espírito Santo. De Vasco filho, podemos dizer que foi o consolidador da Capitania que, desde então, nunca mais periclitou seriamente em relação a sua própria existência.
Gerson Moraes França