O MONTE AGÁ: SIGNIFICADO E HISTORIOGRAFIA
"No monte Aghá
Eu te quero, eu te vejo, eu te encontro lá
Oh! Que lindo lugar de ver Deus
Oh! Que doce lugar pra se amar"
KAUÊ, Beto. Piúma.
No lugar onde passo parte do verão no sul do Espírito Santo, tenho uma bonita vista de toda a larga enseada que começa na Ponta de Castelhanos, em Anchieta, e termina em Marataízes. Da minha varandinha, diviso ao longe a bela Ilha dos Franceses e o imponente Monte Agá. Sentado, entre um gole e outro de café, contemplo essas belezas espírito-santenses e divago em formular histórias sobre esses nossos lindos monumentos naturais. Sempre me interessei muito pela nossa história, e pesquisar a "origem" dos nomes das nossas localidades me atrai. A pesquisa toponímia, especialmente a dos lugares do nosso Estado, me desafia e me diverte.
Já há bastante tempo que a "tradução" do que significaria "Agá", do monte, me intriga. Rezam alguns que o termo "Agá" significa "lugar de se ver Deus", e é essa definição a que mais se propaga por matérias e sites pela internet afora. Tal assertiva foi eternizada poeticamente, inclusive, na canção "Piúma" de Beto Kauê, a "música símbolo" do balneário. Quem era jovem na década de 1990 e passou carnaval em Piúma, certamente já andou atrás de um trio elétrico com o Beto Kauê cantando sua música mais famosa à época.
Basta uma pequena busca no Google para observar que o famoso copy/paste sobre o significado corrente do topônimo "Monte Agá" (aproveito para informar que atualmente o monte é grafado "Aghá", mas me servirei da forma mais simples e antiga de grafá-lo) reina soberanamente em revistas e jornais, sites e blogs, dentre outros. Divergem apenas na língua de origem do termo: alguns dizem que é puri, outros que é tupi, e uns poucos misturam no mesmo balaio puri, tupi e até botocudo.
O Monte Agá faz parte da área de proteção ambiental (APA) da Lagoa Guanandy e foi tombado pelo Conselho Estadual de Cultura em 1985. (foto: site da Folha Vitória) |
É fato bem conhecido dos estudiosos mais criteriosos de nossa história que a esmagadora maioria dos nomes dos acidentes geográficos e localidades do Espírito Santo, quando de origem indígena e já nominados até o século XVIII, é de língua tupi. Assim, termos atuais como Guarapari, Itapemirim, Iriri, Meaípe, Piúma, Itaipava, etc, lugares de nosso litoral espírito-santense e com suas mais diversas grafias no curso da história, são todas de origem tupi e, logo, possuem alguma "tradução" ou "significado". O Monte Agá já é assim grafado em mapas da primeira metade do século XVII. Assim, superada discricionariamente em nossa sentença essa que poderia ser a primeira "discussão" do presente artigo, asseveramos conclusivamente que o termo "Agá" é de origem tupi. Portanto, precisamos encontrar o seu significado com base na língua tupínica.
Seria estranho se o Monte Agá não fosse representado nos mapas antigos que retratam a costa do Brasil e do Espírito Santo. Esses mapas dos séculos XVI e XVII eram feitos principalmente para a navegação, e assim eram referenciados os acidentes geográficos do litoral tais como os nomes dos rios, cabos, enseadas, baixios e serras ou montanhas próximas; essas últimas serviam como ponto de referência para balizar os navegantes. A visão dos contemporâneos para a localização era, portanto, de costas para o mar e virados para a faixa costeira. Na faixa do litoral sul espírito-santense a qual nós nos focamos presentemente, há alguns acidentes que, via de regra, estão elencados nesses mapas. A ponta dos castelhanos, a enseada do rio Benevente (antigo Ireritiba) e sua foz em Anchieta, a boca do Piúma, o rio Itapemirim, a Ilha dos Franceses, as falésias de Marataízes e, é claro, o nosso aqui estudado Monte Agá, costumam aparecer. E foi com base em alguns desses mapas e em uma escritura de acordo entre donatários, todas fontes primárias ou documentos contemporâneos, que consegui fazer a tradução.
Não é preciso ser um grande tupinólogo ou especialista na língua tupi para perceber que a expressão "lugar de se ver Deus" não é a tradução correta do significado do topônimo "Agá". Com um conhecimento rudimentar da língua tupi é possível afirmar isso com boa dose de certeza. Mas então, qual seria a tradução do termo? Para sabermos, precisamos primeiro conhecer as grafias e termos originais do nosso monte.
Logo nos primeiros anos da colonização europeia nas américas alguns nomes de localidades começaram a se firmar em topônimos que ainda hoje as nominam. Em meados do século XVI, por exemplo, no sul do Espírito Santo já estavam firmados os nomes Itapemirim e Guarapari (nomes indígenas de origem tupi, com grafias diversas) e Ilha dos Franceses (nome português para a ilha frequentada pelos franceses, também no singular). Alguns nomes de origem indígena, possivelmente, já nominavam acidentes geográficos antes mesmo da chegada dos europeus. Uns nomes, sejam da origem que for, "pegam"; outros, não. Assim, o nome Managé (atual Itabapoana), provavelmente de origem goitacá (não falante do tupi) não pegou, firmando-se depois o nome tupi Camapuã. Outros nomes se firmam, mas se transmutam em corruptelas que, por vezes, os descaracterizam a ponto de formar um termo bem diverso do original. Podemos citar para esse caso o mesmo Camapuã, que se transmutou em Cabapuan e depois em Tabapuan (atual Itabapoana) no século XIX.
Em princípio, acreditei que o termo "Agá" pudesse ser uma dessas transmutações de um nome maior, ou então parecido. E deitei-me em estudos e pesquisas nas fontes e dicionários, aproveitando o conhecimento que adquiri em um "curso rápido" de tupi que certa feita fiz. Vamos às fundamentações e conclusões.
Várias gravuras do Monte Agá em diversos mapas do século XVII, com recorte temporal entre 1640 e 1675. Fonte: site "História Capixaba" (montagem de recortes de vários mapas, pelo autor). |
A mais antiga referência que temos sobre a possível origem do nome do monte Agá é um documento firmado entre os donatários das Capitanias do Espírito Santo e de São Tomé, respectivamente Vasco Fernandes Coutinho e Pedro de Góes, que tratou dos limites das duas jurisdições em 1539. Convencionaram os dois donatários em estabelecer a divisão em um rio que os indígenas chamavam "Tapemiri" (atual Itapemirim), diante da imprecisão de se divisar como limite o Baixio dos Pargos, divisa original das duas Capitanias. Até batizaram o rio com o nome Santa Catarina, mas esse nome "não pegou"; o nome tupi prevaleceu no correr do tempo. Nesse documento citado, há menção a "uma terra do dito Vasco Fernandes que se chama Aguapé", "obra de duas léguas pouco mais ou menos" do rio Itapemirim. Obviamente, ao norte desse caudal.
Verificando os acidentes geográficos da região, observamos que ao norte do rio Itapemirim corre uma longa e funda praia de águas agitadas que começa a ser quebrada por algumas pontas pedregosas na altura das atuais Itaoca e Itaipava. Bem perto do pouco protegido abrigo de Itaipava, também ao norte, fica do monte Agá. Depois inicia-se uma calma praia em uma enseada muito rasa, que é novamente quebrada por uma formação de rocha que fecha a boca do rio Piúma. No lagamar do Piúma há melhor abrigo para as embarcações. Assim, considerando a precisão aproximada da medida de distância no mar em léguas à época, a Aguapé do documento de Vasco e Pedro só poderia ser dois acidentes: ou o nosso monte Agá, ou o estuário do Piúma. Ou até mesmo um nome comum ou aproximado para ambos.
Não é impossível que a boca do Piúma pudesse ter sido chamada de um nome parecido: Iguape. Em tupi, essa palavra designa o local de uma enseada ou um lagamar que recebe a influência da água do mar e das águas do(s) rio(s) próximo(s). A formação léxica desse termo tupi vem de Y(rio) + Kuá (redondo) + 'Pe (sufixo de local). Assim, Iguape seria algo como local de enseada, lagamar ou estuário de rio. Mas, em relação ao Piúma, isso não vem ao caso. Exemplifiquei apenas para destrinchar a raiz dessa palavra tupi que tem a chave para a nossa resposta. Não há nenhuma fonte ou tese que abra a possibilidade de que a foz do Piúma possa ter sido chamada de Iguape.
Já a palavra Aguapé tem outra formação. Vem, segundo o dicionário Houaiss e outras fontes de dicionários tupi que consultei, de Agwa (redondo) + Pé (flexão de "Peva" e suas variantes: achatado, plano). É como os indígenas tupi chamam algumas plantas de águas paradas, como a linda Vitória Régia (redonda e chata). Em princípio, então, teria a Aguapé de Vasco Coutinho relação com essa palavra que designa uma planta? Parece que não, a não ser quando extraímos dessa palavra, assim como da palavra Iguape, a sua raiz. E a raiz dessas duas palavras é o termo tupi para "redondo". Desenha-se a nossa tradução.
A palavra "redondo" é dita de duas formas em tupi: Puã (e suas variantes, como puá, poá, etc), e Awa (e suas variantes que veremos). E a palavra Awa é a chave para entendermos o nome do nosso Monte Agá. Essa raiz da palavra tupi para "redondo" é flexionada de diversas formas: Akuá, Kuá, Agwa, Goá e Guá, por exemplo. A pronúncia de Awa é gutural, com a consoante oclusa K ou G manifestando-se quando a palavra é dita, principalmente quando há vogal que a precede. Assim, voltando à palavra tupi Iguape, teríamos as raízes Y (água) + Awa (redondo) + 'Pe (sufixo de local): a aglutinação de Y com Awa oblitera o primeiro A átono e faz saltar o fonema K ou G: Iguá ou Igoá. Junto com o sufixo 'Pe, forma-se a palavra Iguape, com a sílaba tônica no "Gua". Em Aguapé, as raízes são, como vimos, Awa (redondo, pronunciando-se Aguá) + Peb(v)a (plano, chato; a sílaba tônica no "Pe" faz desaparecer a sílaba final): forma-se Aguapé, com sílaba tônica no "Pé".
Antes de prosseguir, abro aqui um adendo: sou historiador e não tenho formação em linguagens. Uso da linguística como ciência auxiliar da História, e provavelmente aqui cometo erros na denominação de algum fenômeno dessa área de estudos. De todo modo, tal fato não desvirtua o presente artigo. Sigo, pois.
Vimos acima que uma das possíveis denominações antigas do Monte Agá pode ter sido Aguapé. Acredito, porém, que houve erro de tonificação da sílaba quando a palavra foi grafada naquele documento firmado entre os dois donatários vizinhos. O mais provável, considerando as outras fontes que estão nos mapas antigos e fazendo comparações, é que a palavra fosse pronunciada com a sílaba tônica no "Gua": Aguape. Explico.
Nos mapas portugueses do litoral do atual Brasil e do Espírito Santo datados do século XVII, há menção expressa do nome "Monte Agá" já com essa grafia. Mas há alguns mapas pouco anteriores, ou então mapas de autoria de estrangeiros que usavam de informações antigas, que grafam o nosso monte com nomes similares e que identificam a sua provável raiz. A propósito, a pesquisa em mapas hoje é muito facilitada devido ao belo trabalho do historiador Fabio Paiva Reis, que pesquisou, catalogou, identificou e digitalizou dezenas de mapas que retratam o Espírito Santo, e os alocou no site "História Capixaba".
Há um mapa do cartógrafo Luis Teixeira, datado de cerca de 1590, que cita o nome "Goape" entre o Espírito Santo (região da baía de Vitória) e o rio Managé (atual Itabapoana), ao norte do "Baixo dos Porgudos" (antigo Baixios dos Pargos, defronte às falésias da atual Marataízes, entre o Itabapoana e o Itapemirim). Essa localidade - Goape - não é citada como sendo um rio. Começam a aparecer as similaridades: "Goá" (uma das flexões de "Agwa", redondo), e 'Pe (sufixo de lugar).
Um outro mapa, elaborado por João Teixeira Albernaz e datado de 1631, muito mais detalhado, dirime quaisquer dúvidas. Nele está o rio "Itapemeri" (Itapemirim) e o rio Yrirituba (atual Benevente); entre eles, no oceano, está a ilha dos "Francezes" e, quase defronte à essa, a "Serra do Gua". Para quem conhece a geografia dessa região de nosso Estado, resta clarividente que a única elevação mais alta que existe entre esses dois rios é o Monte Agá. Portanto, podemos afirmar com certeza que essa serra do Gua (Guá, variação de A[g]wa, redondo) é certamente o Monte Agá. "Goá" ou "Guá", seguido do sufixo 'Pe (que situa localidade em tupi) ou então sem esse, com a designação portuguesa de "serra".
Há também alguns mapas de estrangeiros que nos auxiliam nessa missão de pesquisa. Um deles é de autoria do cartógrafo Antonio Francesco Lucini, datado de 1646. Nele há a representação de uma elevação ao fundo, entre o rio "Itapemeri" (Itapemirim) e a "Boca del Fiume" (Piúma), chamada de "Monte Guaipel". Considerando os erros de grafia e os pontuais deslizes de portulanos estrangeiros calcados muitas vezes em parcas ou falhas informações, é possível afirmar que essa elevação é a mesma da serra do Gua e do Goape. As similaridades vão tomando forma de razão. Aguapé, Guá, Goape e Guaipel são formas diferentes de se grafar o mesmo acidente geográfico. Há ainda outros mapas que poderíamos tratar, mas se assim for a presente fundamentação ficará ainda mais extensa. Ficarei apenas com esses que citei.
Fica bem claro, portanto, que o "Monte Agá" tem esse nome porque é um morro redondo, um monte arredondado: em tupi, "Agwá", da qual "Agá" provém. Quando era referenciado como uma localidade, o Agwá era complementado com o sufixo 'Pe. Por isso a grafia "Aguapé" que vimos no documento de Vasco Coutinho e o donatário limítrofe que, porém, tonalizou equivocadamente a última sílaba. Se o nome fosse Aguapé (redondo e chato), não seria muito plausível que a "evolução" da palavra suprimisse o "Pé", tal como ocorreu (ficando somente o "Aguá"). Em Aguape, com sílaba tônica no "Gua", tal supressão é até comum em outras palavras tupi com mesma formação (com o sufixo 'Pe).
Morro, ou monte, "Redondo"; tal como Cesar Augusto Marques, sem saber que a forma da montanha era o significado de seu nome silvícola, escreveu em seu trabalho sobre a Província do Espírito Santo datado de 1878:
"Agá, ou Aghá - morro - tem a forma arredondada e está isolado perto de Itapemirim. Por ser muito alto, serve no mar o seu pico de guia aos navegantes, que fazem a sua derrota ao sul da costa da Província. Tem muito boa água potável. (...)"
Quase vinte anos antes da publicação do trabalho de Marques, o Imperador Dom Pedro II, em visita que fez ao Espírito Santo, em fevereiro de 1860 escreveu em seu diário de viagem, percebendo que o nosso monte não deveria ter seu nome inspirado na letra "H": "(...) vi o morro Agá que nada se parece com essa letra (...).
A poesia é linda. A "tradução", ou tradição, tombada e cantada por Beto Kauê na música "Piúma", é bela e grandiosa. "Lugar de se ver Deus" é poético. Mas aprendi, com o tempo, que os significados e/ou origens dos topônimos costumam ser mais singelas: a explicação é, quase sempre, a mais simples. No caso, o nosso Monte Agá é, simplesmente e lindamente, um morro arredondado: o "Monte Redondo".
Pesquisa e texto:
Gerson Moraes França
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