quarta-feira, 7 de junho de 2023

Arraial do(s) Lagarto(s) - São João do Muquy (Muqui)

 

São João do Muqui, c. 1908 (Foto: Eutychio d'Oliver)

Quem observa o grande trajeto da principal via de Muqui, via esta que tem vários nomes em seu curso, percebe algo interessante em relação às quadras de casas: na região central, onde iniciou-se o núcleo urbano, quase não as há. Considerando o trecho onde a urbe muquiense teve seu gérmen, nas atuais avenidas Vieira Machado e Getúlio Vargas (interessantemente, ambas integram essa grande via que corta a cidade, e em cujo eixo o núcleo cresceu: uma é a continuação da outra), só há duas partes com quadras urbanas bem delimitadas, que denotam um pequeno planejamento para a instalação das edificações. Uma delas é o pedaço onde estão as ruas Luís Afonso e do Quartel, junto com a rua que liga com a Coronel Mateus Paiva (retratada embaixo e à direita da foto acima). A outra é a porção da rua dos Operários e Bernardino Monteiro, cuja entrada está em frente à antiga estação ferroviária (e onde ainda hoje notamos os "restos" das antigas vias, na forma de uma viela onde não transitam automóveis). Outro fato que nos chama a atenção em relação a essas quadras, é que ambas formaram ruas que, hoje, não tem saída (embora em seu planejamento inicial, haviam de ter).

E essa conformação urbana tem uma explicação que nos ajuda a entender o processo de ocupação e expansão urbana de nossa cidade em sua zona central, com essas poucas quadras sem continuidade, e com as edificações estendidas sobre boa parte do eixo da via principal.

A formação das primeiras fazendas onde hoje a cidade de Muqui está edificada remonta à década de 1850. É nesse período que são abertas e fundadas as fazendas cafeeiras chamadas de Boa Esperança, Sabiá, Entre Morros e São Francisco, que hoje dão nome à bairros da cidade. É preciso salientar que, obviamente, a abertura dessas fazendas não significou a fundação de um núcleo urbano. Durante muito tempo a região onde hoje está assentada a cidade de Muqui foi apenas uma erma estrada de chão, que ligava Cachoeiro, Vila Nova e São Gabriel ao Itabapoana, passando pelas fazendas e indo dar no Entre Morros e no Mimoso, antes de chegar ao seu destino final no rio Itabapoana. Em 1863, quando foi feita a medição de várias fazendas no alto rio Muqui (do Norte), o terreno onde hoje está o centro da nossa cidade era apenas uma parte da fazenda Boa Esperança, e o morro atrás da atual Igreja era um pasto. Na boca do córrego Boa Esperança no rio Muqui havia plantações de milho e de feijão; ali próximo, aquém do córrego, haviam algumas árvores frutíferas (muitas goiabeiras) e capoeiras. Perto da atual pracinha da Boa Esperança havia um canavial e, é claro, bordeando as encostas dos morros adjacentes haviam as extensas lavouras de café.

Em meados da década de 1870 é que iria brotar a semente do que viria a se tornar a nossa cidade de Muqui. Reza a tradição que em 1876 foi levantada a primeira casinha no primitivo núcleo que tomaria o nome de arraial do Lagarto, ou dos Lagartos (ambas as formas eram usadas). Edificada em terras da fazenda Boa Esperança, com a permissão do proprietário João Jacintho da Silva, que demarcou uma pequena porção para formar um arraial. "Arraial" era um dos termos usados, nessa época, para nominar os nascentes núcleos urbanos; a palavra tem origem na incorporação de expressão árabe, que significava primitivamente rebanho ou ajuntamento, ao português em Portugal ainda na idade média. Esse primeiro núcleo ficava na saída da estrada que ligava a sede da Fazenda Boa Esperança à estrada de rodagem que ligava Cachoeiro ao Itabapoana, anteriormente aqui mencionada. E foi ali que surgiu o nosso arraial do Lagarto: naquelas quadras da atual junção das avenidas Vieira Machado com a Getúlio Vargas, no cruzamento desta com a rua Luís Afonso e pegando também as ruas do Quartel e ligação com a Mateus Paiva. Por volta de 1884, quando foi instalada a sua primeira casa comercial (pelo espanhol Florêncio Ribas), o arraial possuía "apenas, umas quatro casas".

Em meados da década de 1880 os estudos para a construção da estrada de ferro chegaram à região do alto Muqui. Ficou assentado que a futura estação ferroviária seria edificada no terreno aonde atualmente se encontra, e que ficava a pouco mais de trezentos metros do Arraial do(s) Lagarto(s). Era a quarta estação do trajeto (sentido Campos-Cachoeiro); segundo relatório da Estrada de Ferro de Santo Eduardo ao Caxoeiro de Itapemirim, de 1892, "a quarta [estação] (...) fica perto do arraial do Lagarto" e já estava construída nesse ano. Por volta de 1886 o dono da fazenda Boa Esperança resolveu instituir um patrimônio para o nascente arraial, juntamente com o dono da fazenda Entre Morros, e escolhem São João Baptista como orago da futura capela. Ato contínuo, são demarcadas novas quadras em frente ao terreno onde seria levantada a estação ferroviária. Essa é a origem das quadras que ficam do lado oposto da estação, nas atuais ruas dos Operários e Bernardino Monteiro, bem como da viela que ainda hoje resta. E também do patrimônio de São João, juntando a área da futura estação à área já edificada no primitivo arraial dos Lagartos. Daí nasceria o povoado de São João do Muqui, antigo arraial dos Lagartos.

Instituída mais tarde a administração do patrimônio, houve talvez um pequeno lapso ou descuido, agravado pela morte dos dois principais doadores do mesmo patrimônio: o núcleo urbano, ao invés de ser organizado em quadras regulares tanto quanto o terreno permitisse, foi se espalhando pelo eixo da ferrovia e da rodovia. E assim formou-se a atual conformação urbana na zona central da nossa cidade de Muqui.

Gerson Moraes França